sábado, 27 de janeiro de 2024

Submarino nuclear do Brasil incomoda potências que temem avanço tecnológico do país, dizem analistas

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas em assuntos militares analisam por que o submarino nuclear brasileiro causa tanto temor em países da ONU e quais as chances de o projeto brasileiro não obter o aval da organização.

Em uma entrevista recente à mídia brasileira, o diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Rafael Grossi, afirmou que o Brasil terá dificuldades em obter o aval da Organização das Nações Unidas (ONU) para operar um submarino de propulsão nuclear.

O projeto do submarino nuclear brasileiro está previsto no Programa de Desenvolvimento de Submarinos (ProSub), o acordo militar firmado por Brasil e França em 2009, que já entregou dois dos quatro modelos de propulsão convencional baseados no modelo francês Scorpène. O modelo mais recente, o Humaitá, entrou em operação no dia 12.

No ProSub, está previsto também um modelo de propulsão nuclear, o subarino Álvaro Alberto, nome dado ao submergível em homenagem ao ex-vice-almirante da Marinha e cientista brasileiro, que morreu em 1976. O submarino de propulsão nuclear é um projeto antigo da Marinha brasileira, elaborado em 1979, que vislumbrou a chance de sair do papel após o acordo militar com a França.

Porém, conforme apontou Grossi à mídia, essa migração do sonho para realidade não será fácil. Para obter o aval da ONU, o Brasil terá de abandonar as posições históricas de resistência a inspeções detalhadas de suas instalações atômicas. Se tudo der certo, o sinal verde para o submarino deve sair em cinco anos, com chance de acontecer em menos tempo, segundo Grossi.

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas explicam por que o submarino nuclear brasileiro causa tanto temor na ONU, e o que aconteceria caso o país tenha ao aval rejeitado e decida insistir com o projeto.

Guilherme Carvalho, pesquisador da Escola de Guerra Naval, ex-militar da Marinha do Brasil aponta que "o desenvolvimento deste tipo de energia, como o modelo de propulsão em um submarino, sempre enfrentou certa resistência de potências nucleares e, no caso brasileiro, principalmente, dos Estados Unidos".

"Este incômodo pode ser explicado por um medo da expansão da utilização desta tecnologia para fins não pacíficos no futuro — o que poderia causar o surgimento de um 'fator novo' causador de desequilíbrio de forças nas Américas, bem como outro aspecto importante, que é o bom controle de instalações nucleares em aspectos de infraestrutura e segurança. Apesar de serem fatores historicamente críticos no Brasil, no caso da energia nuclear apresentam, como mencionado anteriormente, um excelente nível de organização e desenvolvimento."

Entretanto, ele destaca que "a forte parceria com a França no projeto, as excelentes relações diplomáticas com o Reino Unido em geral, e especificamente na aquisição de meios navais e armamentos, uma boa relação com a Rússia e, principalmente, China podem garantir um caminho mais tranquilo ao Brasil no desenvolvimento e conclusão do seu programa".

Austrália pode ultrapassar o Brasil e obter antes a aprovação para seu projeto?

A Austrália entrou com um pedido semelhante ao do Brasil na ONU para a construção de submarinos de propulsão nuclear em solo australiano, no âmbito da aliança AUKUS, firmada com os Estados Unidos e o Reino Unido.

Na entrevista à mídia brasileira, Grossi afirmou que deu o mesmo prazo de cinco anos ao país da Oceania para obter o aval da ONU. Questionados se a cooperação com EUA e Reino Unido poderia beneficiar a Austrália, fazendo o país obter o aval antes do Brasil, Carvalho afirma considerar o oposto.

"Acredito ser um pouco mais difícil, ou ao menos mais longa, as negociações [da Austrália] para a aprovação do projeto pela AIEA, uma vez que China e Rússia possuem fortíssima influência e presença na atuação do órgão. Como exemplo, declarações recentes do governo chinês claramente não desaprovam o projeto brasileiro, mas se opõem veementemente à AUKUS, por entenderem que este projeto afeta sua zona de influência na Ásia e Oceania."

Ele acrescenta que, embora tenham o mesmo objetivo, a construção de submarinos dotados de propulsão nuclear, mas possuidores de armamento convencional, não nuclear, as origens e as motivações dos projetos diferem claramente.

"Enquanto o projeto brasileiro já possui quase meio século de maturação, debate e desenvolvimento, o projeto australiano é bastante recente e abertamente definido como uma estratégia de contenção da influência de Pequim na Ásia e Oceania, além de envolver um acordo geral de desenvolvimento das relações de defesa entre os países, que trespassam o próprio projeto do submarino nuclear. Outro aspecto diferente e interessante do AUKUS é que ele se baseará na classe Astute de submarinos britânicos, mas será dotado de armamentos e sistemas oriundos dos Estados Unidos."

·        Quando o Brasil vai ter um submarino nuclear?

Em 2004, Lula vetou a AIEA de inspecionar ultracentrífugas que promovem a transformação de gás urânio em combustível nuclear, e possibilitam o enriquecimento de urânio de forma a ser usado em combustível ou em bombas. Esse histórico de rejeição a inspeções foi um dos principais entraves apontado por Grossi.

Questionado se algo semelhante poderia acontecer no cenário atual, Carvalho argumenta que "naturalmente, as inspeções e processos da AIEA são bastante rígidas e completas, e no caso de um submarino nuclear, envolvem questões militares e tecnológicas extremamente sensíveis, que basearam o primeiro veto".

Porém, ele diz acreditar que o estágio atual do projeto, somado à postura diplomática construída ao longo do início deste século "resultem na autorização das inspeções ainda que com algum tipo de ressalva ou reedição das atividades da AIEA, que poderão ser construídas, ainda que um pouco difíceis de serem obtidas".

Como está o projeto do submarino nuclear brasileiro?

Em entrevista à Sputnik Brasil, Jéssica Germano, doutora em Estudos Marítimos, pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos, da Escola de Guerra Naval (PPGEM/EGN), explica que para entender o incômodo que o submarino nuclear brasileiro causa em grandes potências, primeiro é preciso analisar o perfil do Brasil em relação ao mundo.

"O Brasil é um país do Sul Global que possui destaque e prestígio no cenário internacional. A economia cada vez mais vem apresentando sinais de crescimento, a gente tem um elevado contingente populacional, uma abundância de recursos, e o Brasil é um país que está em diversas mesas de diálogo. E, como posso dizer, na projeção internacional também. Então, isso já põe o Brasil numa condição, digamos que, estratégica para o mundo. E, nos últimos anos, o Brasil tem estabelecido nessas parcerias estratégicas no desenvolvimento da tecnologia nuclear para os fins pacíficos, inclusive de forma autóctone", afirma Jéssica.

"Então, não necessariamente o Brasil ter esse tipo de tecnologia é algo interessante para outras potências, sobretudo na possibilidade de utilizar esse tipo de tecnologia para a propulsão de uma submarino, o que dá ao país o poder de dissuasão também. Então, creio que seja sobretudo por questões geopolíticas que o ProSub cause incômodo a grandes potências", complementa.

Segundo a especialista, o Brasil, tendo a capacidade de possuir um submarino que tem capacidade de ocultação, eleva o status de defesa do próprio país, e também é uma garantia de defesa da soberania. "Porque nós temos a Amazônia Azul, um espaço marítimo bastante vasto, que temos que proteger, e nesse sentido o submarino será muito bem empregado."

Porém, ela acrescenta que "um submarino com função nuclear dá uma capacidade mais elevada de dissuasão para o país, visto que é um meio bastante ágil, que possui fácil ocultação, uma detecção mais difícil e também uma elevada autonomia".

"Ou seja, uma vez que o submarino submergir, ele não tem a necessidade de emergir novamente para recarregar suas baterias como nos modelos convencionais, então isso já causa uma dúvida de onde estaria esse submarino, então isso em si já causa essa dissuasão, porque ele pode estar em qualquer lugar, claro, qualquer lugar que tenha mar. Então causa essa dúvida, o que para as potências não é algo interessante, por mais que seja apenas um único exemplar", afirma.

·        AUKUS vs. Brasil: diálogo como caminho para o aval

Sobre a possibilidade de o Brasil ser ultrapassado pela Austrália na busca pelo aval da ONU, Jéssica Germano diz que o projeto do AUKUS se diferencia do brasileiro por uma questão geopolítica.

"Eu observo essa aliança do AUKUS como uma questão bastante fundamentada na geopolítica também e no equilíbrio de poder nessa região do Oceano Pacífico. E destacando também que essa parceria de segurança tem o apoio de dois dos países que fazem parte dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Atualmente, eles são Estados Unidos, Rússia, China, Inglaterra e França, sendo que Inglaterra, Reino Unido e Estados Unidos estão presentes nessa parceria com a Austrália. Então, já podemos ver o interesse das grandes potências nesse tipo de acordo."

Jéssica afirma considerar improvável que o Brasil decida insistir no projeto, caso não receba o aval da ONU. Ela afirma que o fato de o Brasil ser signatário do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TPN) mostra "tanto nacionalmente quanto internacionalmente que o país não é um possível proliferador", o que é um fator positivo para a aprovação. Ademais, ela cita que a tradição diplomática do país preza pela busca do diálogo.

"Eu acredito que o Brasil seja um país que vá buscar o diálogo antes de simplesmente dar uma negativa, sobretudo nesse governo que aponta que o diálogo é a melhor solução para as controvérsias. Eu creio que ele vá buscar esse instrumento para tentar conseguir dialogar e negociar com a própria AIEA, demonstrando esses interesses pacíficos do país em relação à propulsão do submarino."

Sobre as inspeções da AIEA, ela destaca que as ultracentrífugas, alvo da crise entre o governo Lula e a AIEA em 2004, tiveram a inspeção negada por ser um tema sensível.

"Essas ultracentrífugas foram desenvolvidas com tecnologia brasileira, ou seja, de forma autóctone, e elas envolvem segredos industriais e comerciais. Então essas inspeções, basicamente, são verificações da AIEA para garantir que o país não esteja proliferando, ou seja, de alguma forma desviando material nuclear ou enriquecendo urânio para além dos níveis permitidos", explica a especialista.

Então eu creio que essa possibilidade de ameaça à soberania nacional pode se configurar justamente pela exposição desses segredos industriais a terceiros. Se nós pensarmos, o país lutou tanto, pesquisou tanto, empregou tantos recursos para conseguir desenvolver esse tipo de tecnologia e deixar que outros países, outras pessoas [tenham acesso], por mais que sejam, claro, técnicos credenciados da organização, é algo complicado realmente para a soberania do país. Então, eu creio que essa questão repousa justamente nesse sentido", conclui.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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