Presidente do STM: acampamentos golpistas
“foram tolerados por orientação” militar
Passado mais de um ano
do 8 de janeiro, não há sinal de punições militares a oficiais que permitiram a
manutenção de acampamentos golpistas em frente aos quartéis antes do ataque
extremista em Brasília (DF). Em entrevista à Agência Pública, o presidente
do Superior Tribunal Militar (STM), Francisco Joseli Parente Camelo, admitiu
que os acampamentos “foram tolerados por orientação dos chefes” das Forças
Armadas – segundo ele, graças a um “entendimento transmitido pelo próprio
governo [Bolsonaro]”.
A nota dos comandantes
militares defendendo a “manifestação crítica aos poderes
constitucionais” em plena crise golpista reforça tal
impressão, mas o presidente do STM não vê chance de desdobramentos ou punições
a oficiais envolvidos. “Pode ser que haja um caso ou outro de omissão… mas
acredito que dificilmente teremos crimes militares”, afirmou.
A fala do presidente
do STM chama atenção porque todo delito cometido em áreas administradas pelas
Forças Armadas é considerado crime militar. O Brasil todo viu bolsonaristas pregarem, por mais de dois
meses, intervenção e golpe em frente ao Comando Militar do Planalto e ao
Quartel-General do Exército. Além disso, o fracassado atentado a bomba na capital
segue sob suspeita de ter sido arquitetado no acampamento em frente ao QG.
Golpe de estado e
insurreição, conceitos usados por pesquisadores para explicar a crise que culminou no ataque de 8 de
janeiro, não são considerados crimes no Código Penal Militar. O texto-base do atual código entrou em vigor em 1969, pouco
tempo depois do Ato Institucional nº 5, que marcou a época mais violenta da
ditadura.
“Foi uma lição
importante, mas agora vamos olhar para frente e não cometer os erros do
passado”, disse à Pública o presidente do STM, Joseli Parente Camelo.
À Pública, Camelo
ainda negou que tenha colaborado com a equipe de transição do governo Lula na
seara militar – o ministério da Defesa foi o único a não constituir um grupo de trabalho à época. “Talvez pela relação que construí com o
presidente, disseram que influenciei, que falei com ele na transição. Mas não,
só conversei com o presidente no dia da diplomação [12 de dezembro de 2022], e
após eu ter tomado posse na presidência [do STM]”, disse.
O atual presidente da
Justiça Militar passou para a reserva como tenente-brigadeiro da Aeronáutica,
posto mais alto da Força Aérea Brasileira. Responsável pelo comando do avião
presidencial por 12 anos, Joseli Camelo pilotou a aeronave nos primeiros mandatos
de Lula e Dilma Rousseff (PT), somando mais de 10 mil horas de voo no período.
Ele virou ministro do STM logo depois, em 2015,
indicado pela então presidenta Dilma Rousseff.O presidente do STM recebeu a
equipe da Pública em Brasília em seu gabinete, em 15 de janeiro
passado.
<<< Confira
os principais trechos da entrevista:
·
Poderia explicar o que diferencia o crime
militar do crime civil? Qual a área de atuação – e os limites – da Justiça
Militar?
Joseli Camelo: A
Justiça Militar foi criada em 1808 com a chegada de D. João VI ao Brasil. Uma
das primeiras medidas dele foi criar, por alvará com força de lei, o Conselho
Supremo Militar e de Justiça na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Já existia uma
noção da importância de termos um Exército disciplinado, e daí veio a nossa
competência – que é tutelar a disciplina e a hierarquia no centro das Forças
Armadas. Atuamos ininterruptamente desde então, atravessando todos esses
movimentos e ‘revoluções’, procurando garantir a hierarquia e a disciplina no
seio da tropa.
Quanto aos crimes
militares, eles estão definidos em nosso Código Penal Militar. Basicamente, o
crime militar é aquele cometido por militar contra militar; em lugar sujeito à
administração militar; e também contra o patrimônio militar. Até 2017, nós julgávamos
apenas o que estava dentro do Código Penal Militar. A partir daquele ano, com a
aprovação da Lei nº 13.491, passamos a julgar toda a legislação penal
brasileira – desde que estivesse nas condições estabelecidas no artigo 9º do
código.
·
Acampamentos golpistas se espalharam em
locais administrados pelas Forças Armadas, como na frente de quartéis do
Exército em todo o Brasil, com pedidos de golpe de estado e intervenção militar
– o que é crime. O senhor acredita que a Justiça Militar poderia ter atuado
para evitar que aquilo persistisse?
Realmente, não é
normal acontecerem acampamentos como aqueles, pregando intervenção. Intervenção
militar é crime, nós sabemos. Então, não podemos aceitar isso. Mas temos que
lembrar que aquelas pessoas acampadas eram seguidores do governo Bolsonaro.
Não vou dizer que era
uma política de governo, mas aquela gestão tinha os acampamentos com uma
orientação, defendia que as pessoas estavam ali democraticamente, as definiam
como ‘patriotas’. Se fosse apenas para manifestar suas opiniões, tudo bem, mas
tínhamos faixas propondo intervenção. Realmente, isso acirrou os ânimos.
Depois, me parece que
não houve uma liderança, mas é difícil entender como eles montaram toda aquela
estrutura, com tantos ônibus, para aquele dia [8 de janeiro] se não havia uma
organização… de qualquer forma, se houve realmente alguma coisa, foi muito mal
planejada. Hoje em dia, nós temos que levar em conta que o mundo evoluiu, e
evoluiu muito, então não havia apoio popular, nem internacional, a uma ideia de
golpe.
·
Nas semanas seguintes, houve um impasse
sobre quem julgaria militares eventualmente ligados ao ataque. Houve tratativas
entre STM e STF, para que se definisse a Justiça Comum como responsável por
esse julgamento?
Os crimes contra a
ordem política e a ordem social são de competência da Justiça Comum, como diz a
Constituição. Não houve nenhuma conversa [entre as Cortes], porque tudo foi
definido dentro da lei. Nosso Ministério Público [Militar] estava levantando alguns
dados, tinha iniciado alguns processos administrativos, mas, depois, o MPM
enviou todos aqueles processos para o Supremo.
O ministro [do STF]
Alexandre de Moraes fez uma fundamentação perfeita, colocando o papel da
Justiça, mostrando que os locais onde houve vandalismo não eram sujeitos à
administração militar. Com isso, conseguimos pacificar essa posição. Era uma
coisa que as pessoas não entendiam – como militares podem ser julgados na
Justiça [Comum]? Isso é possível desde que um militar cometa um crime comum, da
mesma maneira que civis podem ser julgados na Justiça Militar se cometerem um
crime militar.
·
Como a decisão de manter o caso como um
todo – incluindo a possibilidade de julgar militares envolvidos – reverberou no
meio militar? Houve críticas ou ataques contra o STM?
Houve gente que dizia:
“os militares serão ‘sujeitados’, julgados pela Justiça Comum”? Mas estava
dentro da lei, seguindo o devido processo legal. Houve uma revolta nas redes
sociais, quiseram nos colocar contra o STF, o que não era verdadeiro. Apenas as
narrativas no campo virtual estimulavam isso – houve algumas ‘sementes’
plantadas dentro das Forças [Armadas], mas não vingaram.
[No 8 de janeiro]
tivemos um vandalismo que, pelas pesquisas que vimos, foi repudiado por algo em
torno de 90% da população brasileira. Não foi criado nenhum subterfúgio para
haver um julgamento militar. Tudo foi feito dentro do nosso direito democrático,
seguindo o processo penal democrático. Eu acho que isso foi uma coisa muito boa
que aconteceu: julgarmos de acordo com a nossa lei, de acordo com a
constituição do nosso país.
·
O senhor e outras autoridades têm defendido
que o 8 de janeiro consolidou a democracia e reforçou a necessidade dos
militares se afastarem da política no Brasil. Há outras lições para as Forças
Armadas após a crise golpista?
Ficou bem claro que os
acampamentos foram tolerados por orientação dos chefes [militares], porque o
governo [Bolsonaro] entendia que aquilo era um movimento pacífico… esse era o
entendimento que era transmitido pelo próprio governo para as Forças [Armadas].
Mas não podemos ver o
8 de janeiro isoladamente. Temos de ver que, na história, não é papel dos
militares atuar na política. As Forças Armadas têm um papel muito importante
para o país: defender a nossa soberania. Então, não é para se confundir, as
Forças Armadas têm que estar subordinadas ao poder civil. Até comentei noutro
dia: qual foi o único ministério que não teve uma equipe de transição? O
Ministério da Defesa. Isso porque temos nossas competências bem definidas pela
Constituição. A cada quatro anos, fazemos uma estratégia para trabalhar uma
política de defesa nacional, essa estratégia política é levada ao Congresso
Nacional, e assim por diante.
·
Muito se fala da necessidade de
despolitização dos quartéis e das Forças Armadas. Com mais de um ano de governo
Lula, o senhor enxerga avanços nessa questão?
Hoje, nós temos três
comandantes que estão fazendo um belíssimo papel, mas ainda continuam essas
narrativas nas redes sociais – tem gente batendo em um, batendo em outro,
falando mal… esse discurso de ódio não faz parte da nossa índole, da índole do
povo brasileiro. As narrativas das redes sociais ainda são muito fortes, isso
traz um prejuízo muito grande para a nossa nação. É como disse o ministro
Flávio Dino em sua sabatina para o STF no Senado: o mundo virtual não é uma
terra de ninguém. O mundo virtual é igual ao mundo real, você não pode fazer o
que quiser… tudo tem de ter um limite.
Agora, o fato de ter
havido um presidente [Jair Bolsonaro] que foi militar gerou uma confusão, que
seria um governo militar. Não era um governo militar. Naturalmente, tivemos
muitos militares participando daquele governo porque o presidente escolheu aquelas
pessoas da sua confiança, e como ele tinha um relacionamento com muita gente,
com militares ‘quatro-estrelas’, alguns eram seus companheiros de turma, ele
acabou levando muita gente para dentro do governo. Nós vimos que isso não é
saudável.
Acho que a maior lição
que tiramos é que nós, militares, temos de voltar ao nosso papel constitucional
– um papel sublime, que é defender a pátria, garantir os poderes
constitucionais. Se as nossas Forças Armadas se desorganizam, elas perdem a
capacidade e a competência de defender a pátria, o que põe em risco a soberania
do Estado e a estabilidade da ordem democrática. Temos de ter muito cuidado com
tudo isso. Mas eu tenho muita esperança de que essas coisas estão sendo
solidificadas. Veja: não houve nenhuma reação contra a proposta de que militares não devam estar envolvidos na
política. Nenhuma. Então, acho que estamos
caminhando para uma pacificação. Ainda estamos lutando, mas não está
consolidado porque não é algo simples de se fazer.
·
Parte da sociedade questiona o compromisso
dos militares com a democracia pela falta de punição a oficiais que se
envolveram em problemas nos últimos anos, especialmente durante a presidência
de Bolsonaro. Houve o caso do ex-ministro da Saúde e general do Exército Eduardo Pazuello na pandemia, a crise golpista e desdobramentos do 8 de janeiro. Qual sua
posição sobre isso?
Peguemos o caso do 8
de janeiro, talvez seja o mais emblemático. Nós tivemos a CPMI, o
instrumento investigativo que o Congresso tem, que dá condições de realmente
levantar os fatos e propor uma denúncia – não digo uma condenação, porque o
julgamento é posterior. Isso foi feito, houve bastante discussão e debate, mas
todos foram adiante e devem ser investigados pelo Ministério Público [Federal].
Acredito que o
Ministério Público está investigando, descobrindo até que ponto houve crimes –
porque não há julgamento sem denúncia, que é realmente onde se configuram os
indícios. É na denúncia que identificamos se há crime, se há autoria. Não é uma
situação fácil para o Ministério Público porque, para denunciar, tem que ter
provas, e no caso do 8 de janeiro ainda não houve decisões, [as investigações]
estão em curso.
Agora, ao longo do
governo [Bolsonaro], tome o caso do Pazuello: ele era um militar da ativa mas
estava em cargo político, e as coisas se misturam um pouco. Fica difícil você
definir até que ponto ele está cometendo um crime, uma indisciplina, se ele é político
ou militar. Uma hora ele respondia como militar, outra como político. Surgiu a
dúvida, ele estando em um comício [de Jair Bolsonaro], mas ele também era ministro, era
assessor do presidente. É uma situação que fica difícil você dizer se ele está
errado ou certo, se deve ou não ser condenado. Criou-se essa ‘simbiose’, havia
um limiar, algo que não ficava muito claro. Por isso que não é bom que o
militar esteja na política, como todos nós estamos defendendo a essa altura do
jogo.
São ensinamentos que
trazem muito amadurecimento, é tudo um processo. Vimos que ao longo do século
passado os militares sempre estiveram presentes nas revoltas, e agora estamos
trabalhando para que isso não aconteça, para que não se repita, porque não é o
certo. Não é só a sociedade brasileira que não aceita mais isso: o mundo não
aceita mais aventuras de ditadura. Nenhum órgão multilateral aceita isso. Mas o
ensinamento maior é esse: olha, vamos lá, cada um no seu ‘quadrado’.
·
Após decisão do STF em 2017, a Justiça
Militar tem disponibilizado áudios gravados durante julgamentos do STM no período da Ditadura
Militar. Mas tem havido relato de problemas na disponibilização do material, estariam faltando alguns áudios. Ainda restam
muitos materiais para serem divulgados? Quando pretendem concluir isso?
Em 2017 iniciamos um
processo de digitalização de todos os nossos processos, que vamos concluir
neste ano. Já determinamos que tudo, desde 1808, que trata da nossa história,
absolutamente tudo tem que ser divulgado. As pessoas que têm interesse no tema,
acadêmicos, historiadores, curiosos, todos vêm aqui e pesquisam o que desejam.
O que acontece é que, naquela época [da ditadura], as gravações não tinham a
qualidade que têm hoje. Então, há muitas gravações em que praticamente não se
aproveita nada – pela qualidade do material, ou pela ação do tempo. Às vezes a
pessoa falava e o microfone não captava, né? Mas nós já mandamos verificar esse
problema, queremos colocar tudo à disposição do público. A memória tem que ser
colocada como ela de fato é.
Fonte: Por Caio de
Freitas Paes, da Agência Pública
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