Paulo Kliass: O desconforto de Haddad
Os tradicionais artigos e programas de final de ano
dedicam parte de sua extensa pauta a um balanço do primeiro ano do terceiro
mandato de Lula. Ao dar cabo dessa tarefa encomendada pelos responsáveis das
principais editorias, os grandes meios de comunicação nem se preocupam em
dissimular sua estratégia. Em quase todos os espaços, percebe-se um uníssono:
trata-se de promover a defesa intransigente de Haddad no comando da economia e
de propagar as conhecidas críticas ao Presidente da República por sua suposta
falta de compromisso com a responsabilidade fiscal.
O candidato que havia sido derrotado em 2018 na
disputa contra Bolsonaro recebe agora uma acolhida bastante diferente daquela
que lhe havia sido oferecida à época pelos representantes do financismo. Em
2023, superado o estranhamento inicial, logo em seguida a grande imprensa
aceitou os termos da boa convivência proposto pelo novo Ministro da Fazenda.
Haddad deixou para trás todas as promessas e as expectativas que haviam disso
criadas durante a campanha de Lula. No comando da economia, ele incarnou de forma
surpreendente a persona do professor do espaço do neoliberalismo representado
pelo INSPER e deixou escondida em alguma gaveta de seu apartamento de São Paulo
a fantasia de seu antigo personagem - o professor da Faculdade de Filosofia da
USP.
Não devemos jamais nos esquecer que as elites
brasileiras fizeram uma opção explícita por apoiar o candidato defensor da pena
de morte e muito conhecido por suas relações umbilicais com o esquema das
milícias no Rio de Janeiro. Depois de terem conseguido impedir a candidatura de
Lula por meio das injustiças e ilegalidades cometidas pela quadrilha da
Operação Lava Jato em Curitiba, os representantes do sistema financeiro abriram
suas portas para que Paulo Guedes angariasse suporte político e eleitoral para
alguém que propunha abrir o caminho para o retrocesso civilizatório em nosso
País.
• Haddad:
nas mãos de O Globo e do financismo?
Ora, uma vez consumado o fato da vitória de
Bolsonaro, o Brasil sofreria seis anos seguidos de uma tragédia política,
social e econômica. Assim, somou-se aos dois anos de Temer e Henrique Meirelles
o quadriênio do genocida e seus asseclas no comando do desmonte e da destruição
de quase tudo por estas terras. Durante a campanha, aos olhos do financismo
Haddad teria representado a herança dos governos do Partido dos Trabalhadores
(PT) e o candidato Lula. Esse era o candidato que as elites desejavam ver derrotado
de qualquer maneira. Como sempre, os grandes meios de comunicação assumiram o
encargo e colaboraram de maneira fundamental para que um saudoso da ditadura
voltasse a subir a rampa do Palácio do Planalto.
Pois agora, na primeira segunda-feira de 2024,
Haddad recorre ao principal jornal das forças conservadoras para expor algumas
de suas opiniões a respeito do ano que se encerrou e das tarefas colocadas para
o período que se inicia. Em entrevista exclusiva concedida ao “O Globo”, o
Ministro da Fazenda não faz questão alguma de esconder seu desconforto frente a
uma situação relativamente paradoxal que ele atravessa no momento. O chefe da
economia reclama que as principais lideranças do PT e as direções do movimento
social reconhecem os créditos do “governo Lula”, mas elas não atribuem a ele o
mérito por tais mudanças no quadro social e econômico.
O entrevistado vê-se em uma verdadeira saia justa
montada pelo jornalista, que pergunta se as principais críticas a ele viriam do
PT ou do Ministro da Casa Civil, o também petista Ruy Costa. Haddad não foge da
armadilha e assume o incômodo que a situação inusitada tem lhe provocado.
(...) “Olha, é curioso ver os cards que estão sendo
divulgados pelos meus críticos sobre a economia, agora por ocasião do Natal. O
meu nome não aparece. O que aparece é assim: ‘A inflação caiu, o emprego subiu.
Viva Lula’. E o Haddad é um austericida. Então, ou está tudo errado ou está
tudo certo. Tem uma questão que precisa ser resolvida, que não sou eu que
preciso resolver.” (...) [GN]
Ocorre que o quadro é totalmente o oposto do
apresentado por Haddad. O desempenho do ex-prefeito de São Paulo à frente da
economia é que tem provocado um enorme desconforto para boa parte das forças
políticas que se envolveram na campanha de Lula em outubro do ano passado. O
próprio Presidente Lula nada fez para camuflar suas discordâncias com seu
colaborador em algumas situações. No início do ano, quando o subordinado
pretendia reduzir o reajuste do salário mínimo e não autorizar que o benefício
alcançasse os R$ 1.320. Agora no final do ano, quando Lula reconheceu em
entrevista coletiva para jornalistas que a meta de equilíbrio fiscal para 2024
defendida por Haddad dificilmente seria cumprida.
• O PIB
de 2023 não é mérito de Haddad.
Se os números da economia realmente melhoraram em
2023 na comparação com 2022, o fato inequívoco é que isso não decorreu de
alguma gestão extraordinária do novo Ministro da Fazenda. Aliás, muito pelo
contrário. Se as propostas de Haddad para o triênio que sobra pela frente
tivessem sido implementadas no ano que veio a se encerrar há pouco, muito
provavelmente os números do PIB não teriam atingido os 3% que deverão ser
divulgados pelo IBGE quando a contabilidade for oficialmente apurada. A
obsessão monocórdica de Haddad com o tema da austeridade fiscal e com a
obtenção do equilíbrio das contas públicas direciona os fundamentos da dinâmica
econômica para a contenção de despesas públicas e para a estagnação no ritmo de
crescimento das atividades de forma geral.
Essa foi a orientação do Ministro quando da
elaboração no Novo Arcabouço Fiscal. Esta foi, inclusive, uma armadilha que ele
mesmo criou para seu próprio governo. Ao invés de propor a pura e simples
revogação do absurdo representado pelo teto de gastos, tal como prometido por
Lula durante a campanha, ele condicionou este fim à aprovação de uma lei
complementar disciplinando a austeridade de novo tipo. Assim, o País saiu da
tragédia representada pela Emenda Constitucional nº 95 para novas regras
fiscais que mantêm, em sua essência, os princípios da austeridade, da contenção
de despesas e da busca sistemática do superávit primário. Isto é o que se pode
depreender da leitura da Lei Complementar n° 200, peça para a qual o Ministro
só recebeu propostas e sugestões que foram a ele apresentadas pelo Presidente
do Banco Central (BC) e por um punhado de dirigentes de bancos privados.
A polêmica mais recente apresentada por Haddad
refere-se ao tema do equilíbrio fiscal para 2024. O Ministro assumiu, desde o
mês de abril do ano passado, uma missão de zerar o déficit primário para o
período entre janeiro e dezembro do presente ano. Uma loucura, que nem mesmo os
políticos mais conservadores julgam ser possível de ser alcançada. Mas o bom
mocismo dele foi mais forte do que as próprias desconfianças externadas por
Lula. Assim, essa verdadeira cruzada contra os gastos públicos e contra a possibilidade
de qualquer forma de recuperação do protagonismo do Estado foi vitoriosa nas
disputas internas dos corredores da Esplanada.
• Incômodo
de Haddad ou de Lula?
Mas Haddad segue no mesmo tom de desconforto no
restante da entrevista. Na verdade, ele pretende que as forças políticas e a
sociedade em seu conjunto creditem a ele os rumos que o Brasil adotou em 2023,
quando os principais fatores causadores de tais melhorias foram as
possibilidades de realização de despesas públicas apresentadas por Bolsonaro no
desespero do segundo semestre de 2022 e pelo orçamento negociado em torno da
PEC da Transição - neste caso, grande parte do mérito é mesmo do futuro
Ministro da Fazenda.
(...) “Não dá para celebrar Bolsa, juros, câmbio,
emprego, risco-país, PIB que passou o Canadá, essas coisas todas, e
simultaneamente ter a resolução que fala ‘está tudo errado, tem que mudar tudo’
“ (...)
No entanto, o fato é que se a política fiscal para
2023 tivesse se orientado pelas diretrizes haddadianas, a austeridade imposta
teria sido muito mais extrema do que a que se vislumbra para 2024. E a economia
teria seguido uma trilha mais próxima à estagnação do que ao crescimento que
está sendo verificado. O Ministro precisa se convencer de que a sua gestão à
frente da Fazenda agrada muito aos interesses do financismo e se afasta
bastante das reais necessidades do Brasil e da maioria de sua população.
Talvez o Ministro tenha exagerado um pouco em seu
próprio ato falho, ao imaginar que os críticos consideram que “está tudo
errado, tem que mudar tudo“. É bem verdade que a Resolução do Diretório
Nacional do PT avalia que a política econômica do governo Lula pode ser
caracterizada como um exercício de austericídio fiscal. É possível fazer uma
correção de rumo alterando aspectos relevantes da política econômica, em
especial de sua dimensão fiscal. É recomendável mudar alguns elementos, mas nem
tudo. Por outro lado, é forçoso reconhecer que há muito equívocos nas
orientações do Ministério da Fazenda, mas nem tudo está errado.
Lula terá o período da passagem do ano para
refletir a respeito das necessidades de mudança em seu governo. Podem ser
mudanças de nomes ou apenas de correção de rumo de seus programas. O que não
devem ter faltado a ele são os elogios vindos da Faria Lima e da nata da banca
privada ao desempenho de Haddad. Ao mesmo tempo que a absoluta maioria dos
movimentos e lideranças do campo democrático e popular estão alertando para os
riscos de se continuar com a tecla da austeridade, especialmente durante um ano
tão estratégico como esse que se iniciou há poucos dias. Aguardemos, pois, as
resoluções de Lula para o Ano Novo.
PT
reage a queixas de Haddad e volta a criticar política fiscal
Petistas reagiram a declarações do ministro
Fernando Haddad (Fazenda) ao jornal O Globo sobre críticas do partido à
política econômica e a respeito da resolução aprovada pela legenda, na qual o
PT defende que "o Brasil precisa se libertar do austerícidio fiscal".
A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR)
disse que o PT tem o direito de apontar "desafios" que possam
"ter implicações negativas" e voltou a reclamar da meta de déficit
zero defendida por Haddad.
Gleisi ainda afirmou que a resolução aprovada pelo
partido não diz que "está tudo errado", ao contrário do que afirmou
Haddad, e que a maior parte do documento contém elogios e celebra medidas do
governo.
Em entrevista ao jornal O Globo, Haddad disse, sem
dar nomes, que os seus críticos celebram os resultados da economia em 2023 ao
mesmo tempo em que apontam erros.
"Olha, é curioso ver os cards que estão sendo
divulgados pelos meus críticos sobre a economia, agora por ocasião do Natal. O
meu nome não aparece. O que aparece é assim: 'A inflação caiu, o emprego subiu.
Viva Lula!' E o Haddad é um austericida", afirmou.
"Não dá para celebrar bolsa, juros, câmbio,
emprego, risco-país, PIB que passou o Canadá, essas coisas todas, e
simultaneamente ter a resolução que fala 'está tudo errado, tem que mudar
tudo'", continuou o ministro.
O documento a que Haddad se refere foi aprovado em
dezembro pelo diretório nacional do PT. O texto critica o que chama de pressão
por arrocho fiscal exercida pelo "comando do Banco Central, rentistas e
seus porta-vozes na mídia e no mercado".
"O Brasil precisa se libertar, urgentemente,
da ditadura do BC 'independente' e do austericídio fiscal, ou não teremos como
responder às necessidades do país", afirma a resolução petista.
A presidente do PT rebateu o comentário de Haddad
sobre o documento e disse que talvez o ministro "não tenha tido tempo de
ler a resolução."
"[O documento] Faz um balanço positivo do
conjunto de avanços do governo do Lula, destacando os indicadores
principalmente da economia. Não há uma linha dizendo que está tudo errado que
precisa mudar tudo."
"Nós criticamos na resolução severamente a
política monetária do Banco Central, que é uma herança que nós recebemos do
[ex-presidente Jair] Bolsonaro, e sempre fomos críticos, e uma política que
venha para 2024 de contracionismo fiscal, que, junto com o contracionismo da
política monetária, vai ser
Gleisi foi uma das defensoras da flexibilização da
meta do déficit fiscal zero, sob o argumento de que mantê-la pode obrigar o
governo a fazer um alto contingenciamento de verbas e impactar o crescimento.
A presidente do PT defendeu publicamente a mudança
na política fiscal, contrariando Haddad.
"O PT comemora os avanços do governo, mas se
dá o direito de colocar preocupações que podem acontecer no horizonte e isso
ter implicação negativa", afirmou a deputada à reportagem nesta
terça-feira (2).
Gleisi também comentou a declaração de Haddad na
entrevista sobre a sucessão de Lula. O ministro afirmou que o candidato à
presidência em 2026 será o próprio Lula e que ele não pensa em disputar o
cargo.
Haddad ponderou, porém, que deve haver "certa
preocupação" com quem substituirá o presidente no futuro.
"Ao mesmo tempo que é um trunfo ter uma figura
política dessa estatura por 50 anos à disposição do PT, também é um desafio
muito grande pensar o 'day after' [dia seguinte]. Mas, excluído 2026, o fato é
que a questão vai se colocar. E penso que deveria haver uma certa preocupação
com isso", declarou na entrevista.
Gleisi, porém, avalia que essa discussão sobre a
sucessão do presidente é "extemporânea" e não deve ser feita agora.
"É extemporânea essa discussão. O que nós
precisamos nos concentrar no governo para fazer as entregas que o povo precisa
e espera de nós, cada vez mais crescentes."
Também nesta terça-feira, o deputado Lindbergh
Farias (RJ) reagiu à entrevista de Haddad. O parlamentar afirmou nas redes
sociais que o resolução do PT "não diz que está tudo errado" e
reiterou a crítica à manutenção da meta de déficit zero para 2024.
O parlamentar é um dos mais críticos à meta.
"A resolução do PT não fala que 'está tudo errado, tem que mudar tudo'.
Pelo contrário, o governo teve muitos acertos na área econômica, mas o déficit
zero não é um deles", avaliou Lindbergh.
O deputado aponta que a meta de zerar o déficit vai
travar o orçamento e diminuir o crescimento do país, "que na melhor das
hipóteses, só vai poder crescer 0,6%".
"Quando o PT aponta preocupações e desafios
não é para fazer oposição ao ministro Haddad, mas para chamar atenção sobre
problemas que poderemos ter com uma política fiscal contracionista."
Lindbergh avalia que a extrema-direita ainda é
forte no país e acusa o Congresso de atuar como "semipresidencialismo,
retirando atribuições e boa parte do orçamento do controle do Executivo".
"Se a economia desacelerar, essa turma vai querer engolir o governo",
disse.
"Temos que parar de dar tanta atenção aos
sábios da Faria Lima e olhar mais para a sabedoria do Lula que governou
ampliando investimentos, melhorando a vida do povo pobre com um crescimento
médio por ano de 4,1%."
Fonte: Brasil 247/FolhaPress
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