O pouco conhecido genocídio cometido pela
Alemanha na África antes do Holocausto
Cerimônias neste
sábado (27/1) em diversos países vão marcar o Dia Internacional em Memória das
Vítimas do Holocausto — uma data estipulada pelas Nações Unidas para lembrar as
atrocidades cometidas pelos nazistas contra judeus, além de outras minorias.
Em 27 de janeiro de
1945, tropas soviéticas libertaram o campo de concentração de Auschwitz.
Neste ano, as
cerimônias ganharam mais peso diante da guerra em Gaza e do ataque do Hamas
contra Israel em outubro do ano passado — que matou 1,3 mil pessoas e fez 240
reféns.
A reação de Israel
provocou a morte de mais de 25 mil pessoas em Gaza, segundo o Ministério da
Saúde controlado pelo Hamas.
No Tribunal
Internacional de Justiça em Haia, a África do Sul acusa Israel de cometer um
genocídio contra os palestinos.
A discussão
internacional sobre Israel acabou jogando luz sobre outro genocídio perpetrado
pela Alemanha além do Holocausto — e que ainda causa controvérsias e desavenças
nos dias de hoje.
A Alemanha manifestou
apoio a Israel no tribunal de Haia — e isso despertou críticas da Namíbia, país
africano que sofreu com atrocidades alemãs no início do século 20.
"Tendo em conta a
história da Alemanha e o crime contra a humanidade do Holocausto, o governo
considera-se particularmente comprometido com a convenção do genocídio",
afirmou em nota o governo alemão durante os procedimentos jurídicos no tribunal
de Haia.
O presidente da
Namíbia, Hage Geingob, fez um apelo para que a Alemanha a reconsiderasse sua
decisão.
Em 2021, após mais de
100 anos, Berlim reconheceu ter cometido um genocídio na Namíbia.
Os colonizadores
alemães massacraram mais de 70 mil pessoas dos povos herero e nama entre 1904 e
1908. Historiadores consideram este o primeiro genocídio do século 20.
Geingob disse que a
Alemanha não poderia "expressar moralmente o compromisso com a Convenção
das Nações Unidas contra o genocídio, incluindo a reparação pelo genocídio na
Namíbia" e ao mesmo tempo apoiar Israel.
"O governo alemão
ainda não reparou totalmente o genocídio que cometeu em solo namibiano",
acrescentou.
• Genocídio alemão na Namíbia
São profundas e
antigas as feridas deixadas pela Alemanha na Namíbia após o que agora é
reconhecido como um genocídio perpetrado por forças coloniais.
Em 2021, ao reconhecer
oficialmente as atrocidades que cometeu, a Alemanha ofereceu ao país africano
uma quantia em dinheiro como compensação.
Mas como se compensa a
destruição de uma sociedade inteira? Que preço colocar?
A Alemanha concordou
em pagar mais de US$ 1 bilhão.
"À luz da
responsabilidade histórica e moral da Alemanha, pediremos desculpas à Namíbia e
aos descendentes das vítimas", disse o então ministro das Relações
Exteriores, Heiko Maas, em 2021.
O ministro acrescentou
que seu país, em um "gesto de reconhecimento ao imenso sofrimento
infligido às vítimas", apoiaria o desenvolvimento da nação africana
através de um programa que deve custar mais de US$ 1,3 bilhões.
A quantia será paga em
30 anos e investida em infraestrutura, assistência médica e programas de
treinamento que beneficiam comunidades afetadas.
Na época, alguns
líderes namibianos se recusaram a apoiar o acordo. Descendentes de vítimas e
colonos debateram ferozmente sobre o valor financeiro associado ao genocídio.
• A colônia alemã no sudoeste africano
"Ao longo de toda
essa praia havia um campo de concentração", diz Laidlaw Peringanda,
ativista e chefe da Associação sobre o Genocídio da Namíbia. "O arame
farpado passava onde hoje está o estacionamento."
O artista e ativista
aponta para uma fileira de cafés ao ar livre e um parquinho infantil à
beira-mar em Swakopmund, o principal resort costeiro da Namíbia, onde as águas
frias do Atlântico batem às margens do deserto do Namibe.
"Minha bisavó
contou que alguns membros de nossa família foram trazidos para cá, foram
forçados a trabalhar, e morreram."
Ele se refere aos anos
1904-1908, quando a atual Namíbia era uma colônia alemã no sudoeste da África.
Dezenas de milhares de
pessoas foram mortas quando as forças coloniais reprimiram brutalmente levantes
organizados por dois dos principais povos do país, os herero e os nama, matando
a maioria deles e levando os demais para o deserto de Omaheke, no leste do
país, onde muitos morreram de fome.
Os sobreviventes
acabaram em campos onde foram usados como mão-de-obra escravizada.
Estima-se que cerca de
65.000 dos 80.000 hereros que viviam no sudoeste da África sob o domínio alemão
tenham morrido, bem como em torno de 10.000 de uma população estimada de 20.000
nama.
Se não morriam de
fome, morriam de exaustão, sede ou tiros. O estupro de mulheres foi
sistemático.
Centenas de crânios de
vítimas foram enviadas à Alemanha para estudos sobre diferenças raciais que
tentavam identificar uma superioridade dos brancos. Vinte desses crânios foram
devolvidos de um hospital em Berlim para a Namíbia em 2011.
As atrocidades
cometidas foram descritas por historiadores como o "genocídio
esquecido" do início do século 20.
• 'Qualquer herero, com ou sem armas, será
executado'
As potências europeias
selaram a divisão da África na conferência de Berlim, em 1884. A Alemanha, que
tinha colônias no território atual de Camarões, Togo e Tanzânia, também anexou
a costa sudoeste do continente africano, hoje pertencente à Namíbia.
Lá, a Alemanha
expulsou comunidades de suas terras, que foram entregues a colonos alemães. A
população nativa foi submetida a todo tipo de abuso.
Em 1903, os
guerreirosherero e nama se rebelaram, lançando ataques que mataram dezenas de
colonos.
A Alemanha respondeu
implacavelmente.
Em 1904, o imperador
alemão, Kaiser Wilhelm 2º, despachou cerca de 14.000 soldados para a Namíbia
sob o comando de Lothar von Trotha, o general que reprimiu brutalmente
rebeliões nativas na China e na África Oriental.
Aqueles que
sobreviveram a batalhas como a de Waterberg foram mortos ou forçados a entrar
no deserto de Kalahari, onde soldados alemães envenenaram poços de água.
A mensagem de Von
Trotha aos hereros não deixa margem para dúvidas: "Eu, general dos
soldados alemães, mando esta carta aos herero. A nação herero deve deixar o
país... Se recusarem, eu os forçarei com tiros de canhão... Qualquer Herero,
com ou sem armas, será executado."
"Von Trotha disse
a seus soldados que eles não perderiam sua honra atirando em mulheres e
crianças. Eles atiravam para assustá-los e forçá-los a fugir para o deserto,
onde enfrentariam morte certa de sede e fome", afirma Reinhart Koessler,
professor do departamento de ciência política na Universidade de Freiburg e
acadêmico especializado em memória política, tendo estudado o passado colonial
da Alemanha na África Ocidental por duas décadas.
Para Koessler, as
palavras de Von Trotha "eram uma intenção clara de extermínio, e é isso
que constitui genocídio, a vontade de eliminar um grupo étnico".
O estupro de mulheres
herero e nama foi tão comum que muitos descendentes agora têm ascendência
alemã.
"Sou descendente
direto dos herero. Meus avós paternos e maternos tinham sangue alemão nas veias
devido ao abuso sexual que os soldados alemães cometeram contra meu povo",
conta Ngondi Kamatuka, presidente em exercício da Associação Ovaherero contra o
Genocídio no Estados Unidos.
• Dinheiro e terras
Por muitos anos, uma
das questões mais importantes para os namibianos era como um acordo de
compensação material poderia ser alcançado.
Laidlaw Peringanda,
como a maioria dos hereros, foi claro: deveria haver um enorme aporte
financeiro para ajudar a restaurar a prosperidade que ele acredita que seu povo
desfrutava antes do genocídio, como criadores de gado.
Posteriormente, a
maior parte das terras do país foi dividida em fazendas particulares e dadas a
colonos alemães.
E hoje a maioria dos
herero e nama vive em áreas pequenas e superlotadas de terras comunais que mais
tarde lhes foram atribuídas, ou nas aldeias, "assentamentos
informais" e favelas que abrigam 40% da população da Namíbia.
Em Swakopmund, há um
enorme abismo social entre o belo centro da cidade da era colonial, com seus
edifícios pintados em tons pastel, lar de muitos netos e bisnetos dos colonos
originais, e as favelas construídas com tábuas e placas de metal que se
estendem por milhas ao norte do país.
"Eles não têm
banheiros, não têm água encanada, não há eletricidade", diz Laidlaw.
"Algumas das
pessoas que lá vivem são descendentes das vítimas dos campos de concentração. É
realmente injusto o que está acontecendo".
A esperança é que o
dinheiro do governo alemão seja usado para financiar um programa de reforma
agrária que permitirá que as fazendas de agricultores alemães da Namíbia sejam
compradas e distribuídas entre os herero e nama.
Acredita-se que os
namibianos alemães sejam o maior grupo entre os fazendeiros brancos, que
possuem cerca de 70% das terras agrícolas do país.
Algumas de suas
propriedades são vastas — uma só delas, por exemplo, cobre mais de 1.000 km².
O principal negociador
da Namíbia, embaixador Zed Ngavirue, disse antes do anúncio do acordo que a
Alemanha "reconheceu que precisa fazer algo para nos ajudar a reconstruir
nossa sociedade".
Mas ele acrescentou:
"Não quero me enganar achando que a Alemanha vai resolver o problema da
terra. Não estamos apenas falando sobre a perda de terras como resultado da
colonização alemã."
Depois que a Alemanha
perdeu sua colônia na Primeira Guerra Mundial, muitos outros colonos chegaram,
e o sudoeste da África foi governado pela África do Sul por 70 anos.
Desde a independência
em 1990, tanto namibianos quanto estrangeiros compraram terras no país.
• Ceticismo
Não são só os
descendentes das vítimas que permanecem céticos em relação às medidas de
reparação.
O mesmo acontece com
alguns dos cerca de 30.000 homens e mulheres que falam alemão e ficaram na
Namíbia: os descendentes de colonos.
"O mito do
genocídio nada mais é do que chantagem moral", disse o historiador Andreas
Vogt.
Como muitos
teuto-namibianos, Vogt afirma que a infame "ordem de extermínio"
assinada em 1904 pelo comandante das forças coloniais, general Lothar von
Trotha, não era uma política de Estado e nunca foi implementada.
A ordem afirmava que
"qualquer herero encontrado dentro da fronteira alemã, com ou sem arma,
será executado".
"A representação
de, por um lado, uma autoridade colonial alemã genocida brutal e implacável e,
por outro, o povo herero imaculado e completamente inocente está contaminada.
São necessárias duas partes para fazer as coisas acontecerem", disse Vogt.
Ele e outros
namibianos alemães apontam que os herero se rebelaram contra o domínio alemão
em 1904, matando cerca de 120 colonos alemães, mas foram posteriormente
derrotados na batalha decisiva de Waterberg.
Em 2020, Anton von
Wietersheim, um teuto-namibiano que serviu como ministro do governo logo após a
independência, ajudou a lançar uma iniciativa para encorajar os namibianos de
língua alemã a discutir o passado, tanto entre eles quanto em com representantes
dos herero e nama.
O acadêmico e ativista
germano-namibiano Henning Melber, que estudou os antecedentes das negociações,
afirma que outras ex-potências coloniais da Europa expressaram preocupação à
Alemanha de que o acordo com a Namíbia iria gerar uma enxurrada de reivindicações
contra vários colonos por parte de nações africanas, do sudeste asiático e de
outros lugares.
A Tanzânia, sucessora
de outra ex-colônia alemã, Tanganica, já está exigindo reparações pelas
atrocidades e, potencialmente, outras ex-colônias poderiam fazer o mesmo.
Fonte: BBC News Mundo
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