sábado, 27 de janeiro de 2024

Como o ecoturismo pode tornar a Mata Atlântica referência em sustentabilidade

Cenário da colonização do Brasil desde o primeiro contato, a Mata Atlântica hoje concentra 72% da população e responde por 80% do Produto Interno Bruto do país. Não por acaso, é o mais devastado dos biomas brasileiros. Restam 24% da sua cobertura vegetal original, mas somente a metade disso é de áreas remanescentes bem conservadas e capazes de manter a viabilidade da sua biodiversidade no longo prazo.

A maior parte desses remanescentes está numa extensa área contínua que abrange o litoral de três estados: São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Foi ali que, em 2018, um grupo de entusiastas de várias esferas – pública, privada, comunitária e não governamental – se uniu para impulsionar ações de desenvolvimento local focadas no turismo de natureza.

Criou-se, então, a Grande Reserva Mata Atlântica, um mosaico de 110 Unidades de Conservação que se estende por 50 municípios e 3 milhões de hectares – 665 mil deles em proteção. O elo que a conecta é a Rede de Portais, uma plataforma colaborativa que busca formas de estimular a área como destino turístico, o que inclui ações de empreendedorismo e inovação, qualificação profissional e parcerias institucionais, além da divulgação de roteiros através do site oficial. Já são 700 pessoas envolvidas.

O movimento se inspirou no conceito de “produção de natureza”, da Fundação Rewilding Argentina. Essa organização ambientalista se tornou referência internacional gerando novo modelo de desenvolvimento local com base na preservação dos ecossistemas e no empoderamento das comunidades.

Ricardo Borges, coordenador de Comunicação e Relações Estratégicas da Grande Reserva Mata Atlântica, explica que o conceito está sendo usado para dialogar com a sociedade sobre a importância da natureza para o bem-estar humano. “Esse é um dos poucos lugares do Brasil onde ainda se consegue entrar em contato com a Mata Atlântica em toda a sua exuberância”, observa.

Com paisagens naturais únicas e uma das maiores densidades de áreas protegidas do país, Ricardo afirma que esse recorte de floresta representa uma grande oportunidade de coexistência entre natureza e identidades culturais, como a das comunidades caiçaras. A região tem também a maior concentração de quilombos em Paraná e São Paulo – alguns, inclusive, desenvolveram projetos de turismo de base comunitária.

·        Empreendedorismo sustentável

O turismo é reconhecido como carro-chefe da Grande Reserva e, segundo Ricardo pode ser fortalecido a partir do estímulo ao empreendedorismo sustentável. Atividades como canoagem, passeios de barco, esportes aquáticos e observação de aves são cada vez mais demandadas. Revoadas de guarás (Eudocimus ruber) e dos raros papagaios-de-cara-roxa (Amazona brasiliensis) são algumas das possibilidades de contemplação da biodiversidade existente por lá.

Como exemplos de experiências que podem ser vividas na região, o coordenador cita o Pico Paraná, o maior da Região Sul, com 1.877 metros de altura, e o circuito de ciclismo em meio à paisagem da Estrada-Parque da Serra da Macaca, inserida no Parque Estadual Carlos Botelho, no sul do estado de São Paulo.

“Aqui não inventamos nada novo, mas costuramos soluções possíveis, acreditando que a Grande Reserva pode ser destino de natureza internacional”, afirma. “Mas não é qualquer tipo de turismo e de empreendimento que queremos. Não queremos turismo a qualquer custo”, adverte.

Após a pandemia da covid-19, ele observa que tem crescido um movimento de pessoas em busca de ecoturismo, o que tende a favorecer a região. “As comunidades contribuem para manter tudo isso em benefício de toda a sociedade e tudo isso é produto de alto valor agregado”, opina.

Para Ricardo, o Brasil ainda é um país com baixa autoestima, apesar de suas riquezas naturais e culturais reconhecidas mundialmente, fenômeno que também se reflete no caso da Grande Reserva Mata Atlântica. Superar esse obstáculo depende do fortalecimento de parcerias e engajamento de diferentes segmentos sociais, além do impulsionamento de iniciativas socioeconômicas compatíveis com a proteção do seu patrimônio natural e histórico-cultural.

Com esses propósitos, além de utilizar ferramentas de gestão como a criação de áreas protegidas, ele ressalta que é importante apostar na economia restaurativa. “Buscamos conversar com a sociedade sobre a importância da proteção da floresta, do solo, dos polinizadores e de outros elementos centrais à garantia de serviços ambientais fundamentais à nossa qualidade de vida”, conclui.

·        Metodologia é inovadora, afirma ambientalista

Clóvis Borges, diretor da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), comenta que a metodologia usada nessa iniciativa não tem paralelo no Brasil. A organização atua com projetos de proteção da natureza desde a década de 1990 e monitora espécies em extinção como o mico-leão-de-cara-preta (Leontopithecus caissara) e o papagaio-de-cara-roxa.

“O conceito de produção de natureza, inspirado na iniciativa argentina, tem sido colocado na prática e os resultados têm sido surpreendentes”, afirma o ambientalista. Como questão desafiadora, ele aponta o esforço de manter unido e coeso o grupo de pessoas envolvido na rede de ações colaborativas.

E para que o turismo de natureza possa avançar, gerando oportunidades de novos negócios e empregos, o diretor da SPVS opina que outro grande desafio envolve avançar em termos de infraestrutura nas Unidades de Conservação do Paraná e de Santa Catarina para alcançar o padrão já observado em São Paulo. Ele reforça que é preciso impulsionar a instalação de restaurantes e a preparação de guias de trilhas, entre outras demandas.

Em contrapartida, Clóvis questiona sobre como avançar nesses propósitos em cenários de agravamento da crise climática e de perda acelerada de biodiversidade. “Tem que haver consciência de ousar e estimular terceiros, além de envolver a sociedade tendo a expectativa de ampliar a escala de todos os esforços”, analisa.

Ao mesmo tempo, opina que não podemos “nos contentar com projetos que não mudem cenários”, destacando que a proposta de proteção da Grande Reserva Mata Atlântica representa um conjunto de valor “que é como ouro para a população que vive na região”. Segundo conclui, “precisamos nos pautar pelas iniciativas bem-sucedidas de terceiros [como a inspiração argentina]”, já que “as coisas estão acontecendo, muitas vezes de forma silenciosa”.

·        Cidade do Paraná quer fazer da natureza sua maior receita  

Considerada referência em natureza conservada, Antonina, no litoral do Paraná, quer transformar o turismo ecológico em principal fonte de geração de receita para os cofres municipais nos próximos anos, como adiantou à Mongabay o prefeito José Paulo Vieira Azim. Atualmente, as atividades portuárias ocupam a primeira posição na economia local. Integrante da Grande Reserva da Mata Atlântica, o município foi um dos primeiros a assinarem a carta de adesão à Rede de Portais.

Para o prefeito, a proteção da natureza deve ser reconhecida como uma causa fundamental dos municípios brasileiros e precisa ser melhor compreendida pela sociedade. “Entre tantos outros benefícios, enxergamos a biodiversidade como ativo capaz de prover os direitos fundamentais dos cidadãos”, opina.

Com nove Unidades de Conservação em seu território, o município arrecadou R$ 37,2 milhões de Imposto sobre Mercadorias e Serviços Ecológico (ICMS Ecológico) entre 2005 e 2022. Parte desse valor se deve à presença das duas maiores Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN) da SPVS: a Reserva Natural Guaricica, com quase 9 mil hectares, e a Reserva Natural das Águas, de cerca de 3 mil hectares.

Esse incentivo fiscal previsto de forma pioneira na legislação do Paraná e em outros 17 estados brasileiros compensa os municípios pela proteção da natureza a partir da gestão de áreas protegidas, de acordo com critérios estabelecidos pelas leis estaduais. Em Antonina, esses recursos representam 10% da arrecadação municipal anual.

Considerando a vocação da cidade para a conservação da natureza,  Azim está tentando engajar proprietários rurais para a criação de novas RPPNs. Por essa adesão, eles podem ser beneficiados pelo Programa de Pagamento por Serviços Ambientais (PSAM) já regulamentado no município em 2022.  Para isso, são definidas metas de qualidade ambiental segundo critérios do Instituto Água e Terra (IAT-PR), órgão ambiental estadual.

 

Ø  Donos de fazenda de “Terra e Paixão” desviaram curso de rio e criaram peixes sem licenciamento

 

Em sua última semana de exibição, a novela “Terra e Paixão”, da Rede Globo, conquistou o público da teledramaturgia e garantiu o retorno dos bons índices de audiência à faixa das nove, após a emissora amargar o pior resultado da história com sua antecessora, “Travessia”. Ambientada no município fictício de Nova Primavera, no Mato Grosso do Sul, a trama de Walcyr Carrasco narra a epopeia do clã La Selva, liderado pelo impiedoso latifundiário Antônio (Tony Ramos), cujo filho Caio (Cauã Raymond) se apaixona por sua rival, a professora Aline (Bárbara Reis).

A relação do casal de protagonistas é construída logo nos primeiros episódios, quando Caio surpreende a amada tomando um banho no rio que cruza sua propriedade, alvo da ambição de Antônio La Selva. Algumas semanas depois, o herdeiro ajuda Aline a recuperar o acesso à água, drenada a mando do personagem de Tony Ramos para impedir que a rival irrigasse sua colheita.

Na vida real, os rios de Deodápolis (MS) são ameaçados pelos donos do mesmo imóvel rural em que “Terra e Paixão” foi gravada. A Fazenda Annalu, de 1.768 hectares, está em nome de Aurélio Rolim Rocha — o Lelinho —, diretor do grupo Valor Commodities e responsável por um dos maiores projetos de piscicultura do Mato Grosso do Sul. Ao todo, são 100 hectares de lâmina d’água, com capacidade instalada para produzir 4 mil toneladas de peixes por ano, distribuídos no mercado interno e externo. O carro-chefe são as tilápias, uma espécie exótica.

Na Fazenda Annalu, pelo menos 37 tanques usados para a criação de peixes estão sobrepostos a um afluente da margem direita do Rio Dourados, que margeia o imóvel a oeste, dentro da Área de Preservação Permanente (APP). Além do impacto ambiental, a atividade foi praticada sem licenciamento por pelo menos três anos.

De acordo com a localização dos tanques, reproduzidos nos mapas que compõem os relatórios de vistoria, é possível perceber que os criadouros foram escavados no leito do rio, alterando a morfologia do corpo hídrico.

Em 2021, o Instituto do Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul (Imasul) emitiu a Licença de Operação nº 76 para criação de 200 toneladas de peixes por ano na fazenda. O documento confirma que o rio onde estão os tanques funciona como corpo receptor dos efluentes da atividade de piscicultura. Os reflexos ambientais dos rejeitos gerados pela criação de peixes alteram a composição química da água, além de gerar acúmulo de matéria orgânica, entre outros poluentes, que, neste caso, acabam desaguando no Rio Dourados.

Uma análise cartográfica da propriedade, realizada pelo núcleo de pesquisas do De Olho nos Ruralistas, confirmou que as coordenadas geográficas dos locais escavados para a implantação dos tanques coincidem com o curso do rio que atravessa a propriedade. Ao todo, a obra de instalação dos tanques abrangeu uma área inundada de aproximadamente 46 hectares.

As informações são oriundas do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) elaborado em março de 2022 pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul (MPMS) e firmado pelo empresário Lelinho Rocha. No TAC, é listada uma série de irregularidades ambientais na área da fazenda, reveladas por este observatório na reportagem: “Fazenda de “Terra e Paixão” tem desmatamento de reserva e despejo ilegal de agrotóxicos“.

De Olho nos Ruralistas questionou o grupo Valor Commodities e a Rede Globo sobre os passivos ambientais da Fazenda Annalu. Até o fechamento da reportagem não houve retorno.

TANQUES OPERAVAM SEM LICENCIAMENTO AMBIENTAL

Em junho de 2019, quando foi realizado o primeiro laudo de vistoria técnica do Ministério Público, o licenciamento para a atividade de piscicultura estava vencido havia nove anos, desde janeiro de 2010. Durante esse período, o imóvel passou por várias mãos.

Adquirida em 2003 por Nilton Rocha Filho, avô dos atuais proprietários, a Fazenda Annalu foi vendida dois anos depois para a comercializadora de grãos Granol, pelo valor de R$ 2,95 milhões de reais. Em 2016, os netos do antigo proprietário, Aurélio Rolim Rocha — conhecido como Nelinho — e Nilton Fernando Rocha Filho, readquiriram a propriedade por R$ 10 milhões. Apenas em 2021, após três anos operando sem licenciamento, Nelinho regularizou os tanques para a criação de peixes.

Apesar da alteração do curso do rio que passa pela propriedade, os danos causados pelos 37 tanques escavados na margem direita do Rio Dourados não são citados em nenhum dos relatórios de vistoria juntados às investigações dos possíveis danos ambientais na Fazenda Annalu.

O TAC destaca ainda a existência de 54 drenos, com extensões que variam entre 10 e 3.761 metros. Todos eles sem licenciamento. Essas estruturas são utilizadas tanto para a drenagem de terrenos alagados quanto para a captação de recursos hídricos destinados à irrigação, pecuária e piscicultura.

De acordo com um morador da região, que preferiu não se identificar, a construção dos drenos — que ele chama de diques — “fez um estrago danado” nas margens do rio. “Eu sei que fizeram um dique pra levar água pra irrigar os pivôs, um dique de uns de quatros metros de largura por cinco de profundidade”, conta.

JUSTIFICATIVA PARA ABERTURA DE DRENOS É DESMENTIDA PELA PRÓPRIA EMPRESA

Parte dos drenos identificados pelo laudo técnico do MPMS invade a Área de Preservação Permanente (APP) do Rio Dourados. Segundo o relatório anexado ao TAC, a instalação de drenos é comum na região, sendo uma medida necessária para a agricultura em áreas frequentemente inundáveis e com presença de lençol freático superficial — o que, segundo o laudo de vistoria, é o caso da Fazenda Annalu.

Apesar da justificativa, a disposição das estruturas na propriedade demonstra que os drenos possuem utilidade diversa, uma vez que se estendem muito além da área inundável do solo.

Outra contradição relacionada à drenagem na propriedade vem de um documento formulado pelos proprietários da Annalu. Um laudo produzido em 2018 por uma empresa contratada pelos fazendeiros para tentar comprovar a existência de Reserva Legal na fazenda, a LG Consultoria Ambiental, foi taxativo em afirmar que “não há excesso de água em qualquer época do ano, em função da boa permeabilidade, porosidade e lençol freático muito profundo”.

Por meio de imagens de satélite de 2009, o MPMS pôde constatar que a instalação dos drenos na propriedade é anterior a julho de 2008. Segundo o laudo de vistoria, a abertura de drenos no local altera as condições naturais de saturação e encharcamento do solo.

Para quem mora na região, o impacto é visível. “Tinha uns varjão lá que diz que nem sucuri passava, mas abriram tudo”, lamenta um morador. Uma realidade ignorada pelas imagens idílicas de monocultura e maquinários agrícolas disseminada na novela “Terra e Paixão”.

 

Fonte: Mongabay/De Olho nos Ruralistas

 

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