ATÉ HOJE, PARTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA NÃO SABE QUE VIVEU EM UMA
DITADURA', DIZ HISTORIADOR
O ANO DE 2024 marca os 60 anos do golpe que
depôs o presidente João Goulart e mergulhou o país em uma ditadura
civil-militar liderada sucessivamente por cinco generais do Exército. Para um
setor considerável da sociedade brasileira, desde a redemocratização, o legado
do regime que durou 21 anos passou a ser classificado como violento, negativo e
nefasto.
Nos últimos anos, no entanto, é possível notar que
houve “uma guinada de opinião em relação à ditadura” – turbinada pela eleição e
o governo de Jair Bolsonaro. É o que defende o professor e historiador Rodrigo
Patto Sá Motta, doutor em história pela USP e professor titular do departamento
de história da UFMG.
Autor do livro “Passados presentes – o golpe de
1964 e a ditadura militar”, Motta analisa o fenômeno a partir do crescimento da
população neopentecostal no país, os desgastes políticos após 14 anos de PT e a
omissão dos seguidos governos da Nova República em esclarecer o que foi
efetivamente o período sem garantias do estado democrático de direito.
“Os militares nunca deixaram de estar ativos nesse
discurso. Só que eles ficavam às margens e, muitas vezes, não eram vistos pela
maioria da população. Na minha análise, o ano de 2014 é chave nessa mudança,
quando há essa virada para a direita”, disse o professor.
Motta também se debruça sobre a mudança do discurso
econômico dos militares, a eleição de
Javier Milei na Argentina e põe em xeque a visão de que os jornais
brasileiros foram apenas vítimas de ações autoritárias da
ditadura. “No mundo acadêmico ninguém cai mais nesse discurso, porque está mais
do que estabelecido o apoio entusiástico da imprensa à ditadura”.
>>>> Leia os principais trechos da
conversa com o historiador.
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O governo de Jair Bolsonaro e, antes dele, outras forças conservadoras
reinterpretaram a ação golpista de 1964. A sociedade passou a enxergar o golpe
e a ditadura militar de forma diferente?
Rodrigo Motta – Houve uma virada na opinião
pública. O que não se pode é generalizar. Dizer que a sociedade brasileira
pensa isso ou aquilo. Não conheço nenhuma pesquisa de opinião que indique isso
com muita clareza. Mas, como alguém que viveu lá nos anos 1980 e já estava
muito atento a isso, me parece muito claro que houve uma guinada de opinião em
relação à ditadura, especialmente entre setores de classe média.
Na época, se aceitou a visão de que o período da
ditadura tinha sido negativo e violento. Porque nós estávamos saindo dela e uma
das coisas que mais chamava a atenção era a crise econômica muito aguda, com
hiperinflação, com a dívida externa, que, na época, se dizia que era impagável.
Então, o legado da ditadura, para os mais atentos e que acompanhavam a política
brasileira, parecia mais negativo do que positivo. E havia muita esperança de
que a redemocratização melhoraria o Brasil politicamente e na resolução de
problemas sociais.
Nos anos recentes, desde o impeachment de Dilma e a
eleição de Bolsonaro, me parece claro que, alguns setores sociais que, nos anos
1980, tinham essa visão,começaram a olhar para a ditadura com outros olhos,
aceitando a versão de que foi um período mais positivo, mais seguro. A versão
de que a economia se saiu muito bem. E aceitaram também a versão de que a
esquerda era uma força negativa e que a ditadura fez bem em reprimi-los.
Isso tem a ver com os governos de esquerda do PT
que estiveram à frente do Brasil por 14 anos. Depois de um período de bonança
com Lula, veio o início de uma recessão. Teve os escândalos de corrupção.
Então, muita gente se mostrou mais disposta a aceitar o discurso de que a
esquerda era diretamente responsável pelos problemas que o país está vivendo. E
passou a aceitar que a direita poderia ser uma solução melhor.
Muitos jovens de 18 a 20 anos aceitaram esse tipo
de argumento. Outro elemento chave para colocar na análise é o crescimento da
população neopentecostal. As pesquisas indicam que 70% do eleitorado
neopentecostal votou em Bolsonaro. Então, são fatores que contribuem para a
divulgação de valores mais conservadores e autoritários. E, em aliança com esse
setor bolsonarista nostálgico do militarismo, que ama a ideia de que os homens
de uniforme vão salvar o país.
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O bolsonarismo captou esse sentimento nostálgico da ditadura, mas isso
estava no ar já na eleição de 2014. O que desencadeou esse movimento? Podemos
atrelar ao revanchismo dos militares com a Comissão da Verdade do governo
Dilma?
A maioria dos militares achava que o pacto de
elites, feito no fim dos anos 1970 e 1980, continuaria valendo. Qual pacto? O
do esquecimento, do silenciamento, do perdão aos militares. Eles achavam que
isso era intocável, sagrado. Achavam que isso estava firmado em um tipo de
documento, mas isso nunca houve.
O que houve foi uma ação da Lei de Anistia, que na
época, nas entrelinhas, estava acordado que os militares não deveriam ser
julgados e nem tocados. Mas ninguém assinou isso. E a população brasileira não
foi consultada sobre isso. No final do governo Lula, quando se planejou a
Comissão da Verdade, e o governo Dilma implantou, a reação entre os militares
foi muito forte. Eles falam sobre isso: se sentiram traídos e amedrontados,
porque o impacto poderia ter aberto um ciclo de julgamentos para a corporação
militar. Então, eles passaram a reagir muito fortemente aos governos do
PT.
Mas os primeiros grupos nostálgicos à ditadura se
organizaram no fim dos anos 1980. E uma parte deles em torno do Coronel
Brilhante Ustra. Além dele, teve em Minas Gerais o grupo Inconfidência, criado
por militares da reserva com o mesmo propósito: defender o período de 1964 e
denunciar a esquerda.
Então, os militares nunca deixaram de estar ativos
nesse discurso, principalmente os que estavam na reserva e sempre tiveram
alguma audiência. Só que eles ficavam às margens e muitas vezes não eram vistos
pela maioria da população. Na minha análise, o ano de 2014 é chave nessa
mudança, quando há essa virada para a direita. Já na campanha eleitoral tem a
manifestação desses grupos anti-esquerdistas virulentos, vestindo roupas
amarelas para expressar a identidade deles, autoritária. E depois virou uma marca.
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Em seu livro, o senhor discute que a ditadura é responsável pela piora
da desigualdade e do autoritarismo estatal. Essas ideias estão bem esclarecidas
na sociedade?
Quando acabou a ditadura, havia uma parte maior da
população que era excluída da política. Então, muita gente não percebeu isso.
Pessoas que estavam mais preocupadas em sobreviver do que estar atento ao
cenário político nacional.
Outro fator é que a ditadura durou muito. Foram 21
anos. Muita gente não conhecia o período anterior para fazer uma comparação.
Então, não soube de maneira prática que a ditadura piorou o autoritarismo
estatal e a desigualdade social.
Eu ajudei a fazer uma pesquisa de opinião em 2010,
com pessoas que viveram esse período em cinco estados, para medir o que as
pessoas sabiam ou lembravam sobre o golpe de 1964 e a ditadura. E o resultado
foi estarrecedor. Muita gente lembrava do Tricampeonato de 1970 da Seleção
Brasileira, do Médici [terceiro presidente da ditadura], mas não tinha uma
visão clara daquele período como autoritário.
Até porque a ditadura fez um esforço muito grande
para negar-se enquanto ditadura. Por exemplo, fazendo eleições regulares para
senadores, deputados e prefeitos [exceto das capitais dos estados] e fazendo um
discurso de que era um regime normal. Aliás, a imprensa ajudava nisso também,
porque muitos jornalões estampavam que aquilo era um sistema legítimo. Alguns
chegaram ao ponto de comparar o sistema da ditadura com os regimes
parlamentaristas da Europa, dizendo que lá também não tinha eleição direta para
chefe de governo. Uma comparação que beirava o escárnio, porque a eleição para
deputados no Brasil não era livre. Não existia liberdade partidária e muitos
candidatos eram vetados, pois eram considerados subversivos. Era uma
comparação medonha, mas era uma estratégia de legitimação. Uma coisa que
enfatizo no livro é que a Nova República também fez muito pouco ou quase nada
para esclarecer à população sobre o significado da ditadura. Houve um pacto de
silêncio entre os grupos dirigentes, que tentaram passar a página, a partir de
Sarney e da Nova Constituição.
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Como contraponto, temos a Argentina, que desde o fim da ditadura agiu
para julgar os crimes da junta militar que governou o país. No entanto, vemos o
retorno de pautas ultraconservadoras por meio do presidente eleito Javier
Milei. Como explicar isso?
O fenômeno Javier Milei tem muitas semelhanças com
o bolsonarismo, mas nesse aspecto da nostalgia em relação ao militarismo tem
uma diferença. Bolsonaro era um ex-militar que se cercou de militares por todos
os lados. Era um projeto militarista. O caso Milei é diferente. É um economista
de direita, ultraliberal, com vários aspectos conservadores, mas ele sem essa
postura de nostalgia da ditadura.
O que ele tem é a vice dele [Victoria Villarruel],
que é de família militar, e eles têm feito alguns discursos que agradam os
militares, como dizer que as punições aos militares foram longe demais. Além de
questionar o número de vítimas, um discurso que também não é novo. Muitos
grupos de direita questionam o número de 30 mil desaparecidos. Então, o Milei
tem um flerte com a direita militar, mas é diferente do Bolsonaro.
Os militares na Argentina e no Brasil também são
diferentes. A corporação militar da Argentina foi praticamente desmantelada no
fim da ditadura. Tanto que é muito improvável que eles voltem a ter a força que
tiveram. Isso pela Guerra das Malvinas, quando foram desmoralizados após a
derrota pela Inglaterra, e também pelo julgamento civil ao fim do regime. Eles
não conseguiram negociar um salvo-conduto. É muito diferente do caso do Brasil.
Aqui, os militares saíram da ditadura unidos, prestigiados e protegidos por
esse manto de silêncio. Eles saíram do poder ainda com poder.
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Os militares estão presentes na República brasileira desde a derrubada
do Império, com o Marechal Deodoro da Fonseca. Depois, tentaram dar outros
golpes, em Vargas, Juscelino, até conseguir em 1964. De onde vem essa sede de
poder?
Militarismo e política não combinam.
Invariavelmente vai gerar autoritarismo. É muito raro um quadro de protagonismo
militar na política que não esteja associado às ações autoritárias. Se a gente
pegar esses 134 anos de história desde a proclamação da República, talvez até
mais atrás, desde a Guerra do Paraguai, ainda no Império, os militares se
enxergam como agentes importantes no país e não apenas como militares. Eles se
veem como uma força importante para condução dos rumos do país. Para
simplificar, eles se enxergam como mais patrióticos do que outros grupos.
Teve um momento em que eles quiseram sanear a
República nos primeiros anos, por meio do tenentismo. Vale ressaltar que o
tenentismo teve sua versão à esquerda, com o prestismo, do capitão Luís Carlos
Prestes, que depois viria a se tornar comunista [presidente do Partido
Comunistra do Brasil, o PCB]. O exército nunca foi só uma força conservadora.
Ele teve seus momentos progressistas, com muita gente do campo achando que ele
deveria ser uma força para ajudar a modernizar o Brasil.
Mas, a partir de 1964, houve uma unificação de
formação militar, doutrinamento e alinhamento de discurso. Foram expurgados
milhares de oficiais, sargentos e cabos das Forças Armadas considerados de
esquerda. E ampliaram um doutrinamento mais à direita e antiesquerdista. E tem
isso até hoje. Então, a identidade militar é muito marcada por esses temas: que
eles são a força que combate da esquerda e que vão salvar o país. E imbuídos
disso, eles quiseram voltar ao cenário público recentemente.. Junto disso tem o
desejo corporativo de ganhar o poder para usufruir do poder. Ter mais verba
para o treinamento militar, para equipamento, salário. É por isso que os
governos precisam adotar políticas para que os militares não saiam dos
quartéis. Não estou defendendo nenhuma perseguição. Os militares tiveram
contribuições importantes na República brasileira, ou mesmo no Império, quando
se negaram a ser capatazes ou perseguidores de escravos fugitivos. Tem vários
momentos positivos, mas eles não têm que almejar o poder no Brasil. E está
passando da hora disso ser bem resolvido e a gente não tenha mais que pensar em
riscos de intervenções militares.
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Durante a ditadura, os militares tinham um projeto
nacional-desenvolvimentista com obras faraônicas bancadas pelo estado. No
governo Bolsonaro, o discurso pendeu para um liberalismo privatista. O que
explica essa mudança?
Eu acho essa uma das questões mais interessantes do
cenário recente dos militares no país, porque houve uma mudança profunda. Os
militares estavam mais ligados à tradição desenvolvimentista, que vem desde
Getúlio Vargas, nos anos 1930 e 1940. Esse discurso se solidificou nos anos
1950, com o próprio Vargas e com Juscelino Kubitschek. A ditadura militar
recuperou essa política desenvolvimentista, mas a aplicou de maneira mais
autoritária, acompanhada de um projeto econômico de concentração de renda e achatamento
de salários.
Mais recentemente, temos visto essa mudança
impactante dos militares para abraçar o liberalismo. O próprio Jair Bolsonaro,
em vários momentos de votação como deputado, se posicionou a favor do estado e
contra propostas privatistas. Mas, quando foi candidato presidencial, foi se
encaminhando para o neoliberalismo, com aliança com setores empresariais e do
sistema financeiro. E vários líderes militares foram junto, mas nem todos os
militares concordam.
Naquela famosa reunião ministerial a que tivemos
acesso durante o governo Bolsonaro, o ministro Braga Netto, que depois seria
candidato a vice em 2022, defendeu um novo Plano Marshall. E, ali, Paulo Guedes
foi para cima dele dizendo que era um plano ultrapassado. Era o velho
militarismo se apegando ao passado e propondo que uma saída pode ser o estado
sendo um grande ator econômico. Mas entre os líderes que se aproximaram de
Bolsonaro e promoveram o governo dele, está claro que se abraçaram ao neoliberalismo.
O que é desafiador é entender o porquê dessa
mutação. Possivelmente, se convenceram de que o desenvolvimentismo não tem mais
futuro, pois teria entrado em crise no governo Dilma com o retorno da inflação
e a recessão econômica. Ou também, e essa é uma hipótese minha, que quiseram se
diferenciar do PT nesse aspecto. Porque o PT abraçou o desenvolvimentismo que
começou com Vargas e passou pela ditadura. Só que o desenvolvimentismo do
PT é progressista, com distribuição de renda e aumento do salário mínimo.
Então, os militares podem ter buscado essa diferenciação pois seria confuso
defender uma política econômica parecida com a que o PT defende.
·
Em seu livro, o senhor fala de três formas como a sociedade dialoga com
a ditadura: adesão, resistência ou acomodação. Como esses conceitos ajudam a
entender a duração do regime no Brasil?
Essa conceituação que eu propus é para ajudar a
entender e classificar as diferentes atitudes em relação à ditadura, assumidas
por indivíduos e por grupos sociais. Esse é um tema de pesquisa que é
transnacional. A gente pesquisa isso no Brasil, na América Latina, na Europa e
dialoga com todos esses países.
Isso ajuda a entender o âmago dos regimes
autoritários. Porque existem? Como funcionam? E por que duram? A tipologia mais
simples é a adesão. Muita gente aderiu e chamou a ditadura de revolução. Quase
toda a imprensa dizia isso: a revolução de 1964. Só nos anos 1980, passou a
chamar de ditadura. Políticos aderiram à ditadura, militares, boa parte do
Judiciário, líderes religiosos, cidadãos comuns, parte da classe média. Muita
gente se identificou com aquilo e sentiu-se representada pelo projeto. E, em
certos momentos, se entusiasmou com o regime dirigido pelos militares.
Uma parte da população resistiu, nunca aceitou.
Sobretudo, parte da esquerda – até porque a esquerda era o inimigo da ditadura.
Resistir ali era algo natural. Desde resistência social, protestos estudantis,
greves dos trabalhadores, até ações armadas. Embora, em muitos casos, esses
grupos armados não quisessem a simples restauração do regime político anterior,
mas um regime socialista.
Esses conceitos variam de acordo com o momento
histórico. Não são estanques. Em muitos momentos, resistir era muito perigoso,
sobretudo depois do AI-5. Então, muita gente evitava fazer resistência
explícita por medo. Mas, à medida que a ditadura foi enfraquecendo, a
resistência se tornou mais frequente. E, para muitos atores sociais, passa a
ser mais positivo estar na resistência do que no campo do apoio e da adesão.
Por isso, muita gente muda de lado. Gente que estava de um lado, passa a outro.
Seja por oportunismo, seja por mudar de opinião, de fato.
E, por último, a categoria acomodação é a mais
difícil de entender, porque é uma situação intermediária. Uma atitude de quem
não quer favorecer a ditadura, mas tampouco resistir. Eu estudei mais o setor
universitário científico. Muitos professores universitários, reitores,
diretores e cientistas adotaram essa postura de acomodação. Alguns aceitaram
posições estatais, que eles entendiam que assumiam não para servir à ditadura,
mas ao Brasil. Viraram reitores, diretores, chefes de assessorias de vários tipos
e frequentemente dizendo que não eram favoráveis à ditadura. Eventualmente você
pode até concordar com essa visão, mas, por outro lado, exercer bem essas
funções interessava ao projeto dos militares.
Agora, vale pontuar que, ao fim da ditadura, muita
gente que não fez qualquer resistência à ditadura, começou a dizer que tinha
resistido, mas você vai verificar os atos do que se passou na época e não
encontra essa resistência. Inclusive, setores da imprensa. A imprensa construiu
essa imagem que foi vítima da ditadura, com a censura. Bom, no mundo acadêmico
ninguém cai mais nesse discurso, porque está mais do que estabelecido o apoio
entusiástico da imprensa à ditadura. Na elite acadêmica, a mesma coisa. Gente
que não lutou contra e depois apregoou o discurso que tal universidade resistiu
à ditadura. E não é algo apropriado. Porque resistência é um ato visível de se
rebelar a um poder constituído.
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Falando especificamente da imprensa, qual o papel entendido desse setor
durante o golpe e o regime?
Majoritária, massiva e hegemonicamente, a imprensa
apoiou a derrubada do João Goulart. Com algumas poucas exceções, a exemplo do
jornal Última Hora, do Samuel Wainer, que era ligado aos trabalhistas e ao
próprio Goulart. E esse jornal foi empastelado depois do golpe. Mas tirando
esses casos excepcionais, a imprensa apoiou com muito entusiasmo. Justificou a
violência, inventou informações, defendeu os expurgos e cassações de deputados,
dizendo que era preciso prender pessoas perigosas.
A posição da maior parte da imprensa foi apoiar o
golpe de 1964, que queria que a esquerda fosse expurgada e acreditava que um
regime comandado pelos militares era mais seguro para os interesses dessas
empresas de mídia. Isso não significava que todos esses grupos estavam a favor
de uma ditadura clássica, violenta ou que censurava a própria imprensa.
Mas, em geral, mesmo os jornais censurados não
foram para o campo da oposição à ditadura. Muitos deles ficaram no campo da
acomodação. Tipo, criticar a censura, mas elogiar a política econômica. Elogiar
a repressão aos subversivos, chamados de terroristas. Para simplificar, a maior
parte da imprensa queria um regime autoritário, mas que respeitasse certos
limites, principalmente a liberdade de imprensa da grande imprensa. A imprensa
alternativa, de esquerda, eles não estavam nem aí. Por exemplo, eles não contestaram
o fechamento dos jornais de esquerda a partir de 1964. E todos foram fechados.
Não sobrou um.
Quando a ditadura entrou em crise, no fim dos anos
1970, muitos jornais continuaram defendendo o mesmo modelo. Eles tiveram uma
posição ambígua na campanha das Diretas Já. Vários veículos de mídia se
omitiram. Não defenderam. O Globo foi claramente contra. Mas outros não
noticiavam ou não apoiavam, porque tinham medo da eleição direta e medo do
resultado. Trocando em miúdos, a imprensa gostava daquele sistema político
controlado. Ela foi uma agente da ditadura.
À medida que o regime político foi se deteriorando,
os jornais foram se atualizando e passaram a falar mais da censura, da
violência estatal. Nos anos 1980 e 1990, já na redemocratização, tem essa
atualização de não chamar mais de revolução, chamar de ditadura. Para
finalizar, vale lembrar que o proprietário do jornal Estadão, o Júlio Mesquita
Filho, se descrevia como “revolucionário de primeira hora”, como alguém que
ajudou a fazer 1964. E ele reivindicava isso para dizer que tinha direito de
interferir nos rumos do regime. Esse é um exemplo muito interessante desse
engajamento da imprensa pelo golpe. A imprensa foi claramente golpista e a
favor do regime.
Fonte: The Intercept
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