Aí tem! Justiça de Minas corta em até 80% o
valor de indenizações a atingidos de Brumadinho
Quando o mar de lama
desceu no fim daquela manhã, levando tudo que estava pela frente, Ricardo
Aparecido da Silva, de 49 anos, estava no volante do caminhão, transportando
minério entre duas empresas de pequeno porte em Brumadinho (MG). A poucos
quilômetros dali, o gari Alcione Oliveira Borges, de 45 anos, fazia a coleta de
lixo.
O veículo de Ricardo,
que passava próximo à porta da mina da Vale, chegou a ser arrastado por 200
metros e teve o para-brisa destruído. Já Alcione precisou sair correndo
desesperadamente enquanto assistia ao avanço da avalanche de rejeitos de
mineração. Tudo em volta virou terra arrasada.
Por pouco, os dois não
tiveram o mesmo destino dos 270 mortos no rompimento da barragem do Córrego de
Feijão, da Vale, em Brumadinho (MG), que completa cinco anos em 25 de janeiro.
Desde então, eles buscam na Justiça, ainda sem sucesso, reparações pelos danos
causados pelos traumas gerados.
Um estudo obtido com
exclusividade pela Repórter Brasil – e recém-publicado pelo Núcleo de
Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab), uma das organizações
não governamentais designadas pelas próprias comunidades para fazer a
assessoria técnica na região do Rio Paraopeba – traz detalhes sobre as batalhas
travadas na Justiça por pessoas impactadas pela tragédia, como Ricardo e
Alcione, contra a Vale.
A pesquisa analisou
319 processos julgados entre janeiro de 2019 e março de 2023 por 11 câmaras
cíveis do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG), a chamada
“segunda instância”. Desse total, 75% das decisões foram desfavoráveis aos
atingidos. Alcione, por exemplo, chegou a ganhar R$ 100 mil em sentença de
primeiro grau. Porém, o valor foi reduzido em 80% pelo TJMG, após recurso da
Vale.
Em posicionamento
enviado por sua assessoria de imprensa, o TJMG afirma que juízes e
desembargadores têm autonomia para tomar as decisões nos processos que julgam,
“segundo as particularidades de cada ação judicial e o preenchimento dos
requisitos legais”.
Questionada, a Vale
informou que, até o momento, já pagou cerca de R$ 3,5 bilhões em acordos de
indenização fechados com mais de 15,4 mil pessoas – nem todos decorrentes de
processos judiciais. “Desde 2021, ao menos um familiar de todos os empregados
falecidos, próprios e terceirizados, celebraram acordos de indenização”,
afirmou a mineradora, em nota.
·
O trauma que não
passou
Tanto Alcione quanto
Ricardo foram diagnosticados com transtorno de estresse pós-traumático,
distúrbio psicológico caracterizado pela repetição do terror causado por
situações extremas, como guerras ou desastres.
Dormindo, Ricardo
chegou a incendiar um uniforme de trabalho. “Estava sonhando e, quando assustei
[sic], tinha colocado fogo na roupa que estava para passar”, conta. Alcione,
que perderia o emprego de gari um ano depois, diz ter passado 24 meses vagando pelas
ruas de Brumadinho. “Tentei suicídio três vezes”, desabafa o sobrevivente da
tragédia, que hoje mantém um lava-jato na cidade.
O ex-gari entrou na
Justiça ainda em 2019. Na primeira instância, a 2ª Vara de Brumadinho condenou
a Vale ao pagamento de uma indenização por danos morais. O montante de R$ 100
mil teve como base um Termo de Compromisso firmado entre a Defensoria Pública
de Minas Gerais e a mineradora para acordos extrajudiciais, que fixa esse valor
específico como compensação para danos à saúde mental dos atingidos.
A mineradora recorreu
e o TJMG reduziu a indenização em 80%, sob a justificativa de que a quantia de
R$ 20 mil “compensa o dano moral, sem provocar enriquecimento da parte lesada”.
A ação ainda está em trâmite.
Questionado, o TJMG
afirma que o Termo de Compromisso, usado como referência pelo juiz de primeiro
grau, regula a compensação financeira apenas para os acordos firmados sem a
intervenção da Justiça, e que os magistrados têm autonomia para definir outros valores,
de acordo com os requisitos legais.
Já o motorista Ricardo
não recebeu nem o auxílio mensal de meio salário mínimo pago pela Vale desde
fevereiro de 2019. Atualmente, 132 mil pessoas são contempladas por um programa
de transferência de renda criado pela mineradora e gerido pela Fundação Getulio
Vargas (FGV) desde 2021. Segundo a empresa, R$ 4,4 bilhões já foram
depositados.
Um dos critérios para
seleção dos beneficiários é o local de residência. Foram contempladas as
pessoas que, em 25 de janeiro de 2019, residiam em Brumadinho ou em um raio de
1 km das margens do Rio Paraopeba e do Lago de Três Marias. De acordo com as
regras, até mesmo moradores de condomínios de alto padrão de Brumadinho recebem
o valor.
Ricardo, que mora em
Mário Campos, a 14 km do município onde ficava a barragem, não foi aceito pelo
programa. Sem acesso a tratamento psicológico ou suporte financeiro por parte
da mineradora, o motorista entrou com uma ação individual ainda em 2019, pedindo
R$ 150 mil pelos abalos psíquicos, psicológicos e emocionais.
A ação foi negada na
primeira instância pela 2ª Vara de Brumadinho. Além disso, o juiz responsável
pelo caso condenou Ricardo a pagar as custas do processo e mais 10% do valor da
causa em honorários de advogado. A defesa recorreu e a sentença foi revertida
para R$ 30 mil, em favor de Ricardo. Mas o processo corre até hoje e o
motorista ainda não recebeu um centavo da mineradora.
“Esses R$ 30 mil não
cobrem o que eu gastei com remédio, com médico, com a vida dentro de casa, com
a perda de pessoas que estavam comigo no dia a dia”, desabafa o motorista. “Tem
pessoas que moram em condomínios, todos com dinheiro da Vale, sem precisar. Só
queria entender onde está essa diferença entre nós que fomos atingidos e essas
pessoas que nem lá estavam”, completa.
·
Redução sistemática de
indenizações
Os dois atingidos são
representados pelo escritório Rossi Advogados. De acordo com um dos sócios,
Bruno de Oliveira Silva, a banca defende cerca de 850 clientes em demandas
individuais e familiares no caso da Vale. Segundo ele, a maioria desses
processos seguiu o mesmo padrão da ação de Alcione, com o TJMG reduzindo de 70%
a 80% as indenizações concedidas na primeira instância.
Sarah Zuanon,
integrante do jurídico do Nacab e uma das responsáveis pelo estudo, diz que o
Termo de Compromisso pactuado entre a Vale e a Defensoria Pública de Minas
Gerais, e que define os valores indenizatórios, deveria servir de orientação
para acordos extrajudiciais entre a mineradora e as vítimas do rompimento da
barragem. “Só que, em muitos casos, a Vale não quis fazer acordo ou oferecia um
valor muito abaixo. Então, as pessoas ficam sem alternativa e ajuízam uma
ação”, explica.
Em dezembro, esse
termo foi objeto de discussão no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A terceira
turma da corte entendeu que juízes podem usá-lo como referência para estipular
indenizações em ações individuais contra a Vale, no caso de Brumadinho. A decisão,
no entanto, não é definitiva, o que não obriga os tribunais a seguirem o termo
nas decisões.
Ainda em dezembro, uma
decisão de primeiro grau da 2ª Vara de Belo Horizonte determinou que a Vale
reparasse coletivamente os danos causados pelo rompimento da barragem, após uma
Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Ministério Público Federal, pela Defensoria
Pública e pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, em nome de um
conjunto de atingidos.
O juiz responsável
pelo caso também indicou a criação de uma plataforma digital para que os
atingidos contemplados pela ACP peçam o pagamento das indenizações de maneira
mais simples. A intenção é acabar com a “avalanche de ações individuais”,
afirmou o magistrado.
A integrante do Nacab
explica que a Vale ainda pode recorrer e eventualmente derrubar em segunda
instância a ação coletiva. “Para ela, é melhor que as pessoas entrem com ações
com os advogados e briguem sozinhas”, afirma Sarah.
A nota da Vale
sustenta que a empresa vem realizando ações para a reparação além do pagamento
de indenizações. Segundo a Vale, mais de 5.600 pessoas foram atendidas pelo
Programa de Assistência Integral ao Atingido (Paia), que oferece suporte e
orientações gratuitas depois que as indenizações individuais são pagas. O
objetivo é “auxiliar as famílias a planejar a melhor forma de utilizar o
recurso”, declarou a mineradora.
A empresa também
afirmou respeitar os instrumentos celebrados, entre 2019 e 2020, com entidades
como a Defensoria Pública de Minas, o Ministério Público do Trabalho e com os
sindicatos de trabalhadores para o pagamento de indenizações individuais
“referentes a danos materiais e morais” pelo rompimento da barragem de
Brumadinho.
<<<< Leia
a íntegra das respostas enviadas para a reportagem sobre os atingidos pela
barragem de Brumadinho
·
Vale
A Vale respeita e
cumpre o Termo de Compromisso firmado, em abril de 2019, com a Defensoria
Pública do Estado de Minas Gerais para pagamento de indenizações individuais
referentes a danos materiais e morais pelo rompimento da Barragem B1, em
Brumadinho.
A empresa segue
comprometida com a reparação de Brumadinho, priorizando as pessoas, as
comunidades impactadas e o meio ambiente. Até o momento, mais de 15,4 mil
pessoas fecharam acordos de indenização, com pagamentos que somam cerca de R$
3,5 bilhões. Desde 2021, ao menos um familiar de todos os empregados falecidos,
próprios e terceirizados, celebraram acordos de indenização.
O compromisso da Vale
com a Reparação vai além do pagamento das indenizações. Com este foco, mais de
5,6 mil pessoas optaram por serem atendidas pelo Programa de Assistência
Integral ao Atingido (PAIA), com suporte e orientações gratuitas após o
pagamento das indenizações individuais. O objetivo foi auxiliar as famílias a
planejar a melhor forma de utilizar o recurso recebido, sempre respeitando a
vontade de cada pessoa.”
A Vale respeita e
cumpre o Termo de Compromisso firmado, em abril de 2019, com a Defensoria
Pública do Estado de Minas Gerais, os acordos celebrados com o Ministério
Público do Trabalho, em 15 de julho de 2019, e com os sindicatos representantes
de trabalhadores, em 22 de abril de 2020, para pagamento de indenizações
individuais referentes a danos materiais e morais pelo rompimento da Barragem
B1, em Brumadinho.”
·
TJMG
“As decisões judiciais
dos magistrados devem se pautar pelo livre convencimento motivado, conforme
princípio previsto no Art. 371 do Código de Processo Civil (CPC), ou seja: “o
juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que tiver
promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento”.
Portanto, juízes e
desembargadores possuem autonomia para arbitrar os valores das indenizações
segundo as particularidades de cada ação judicial e o preenchimento dos
requisitos legais.
Destaca-se que Acordo
Judicial de Reparação firmado entre o Governo de Minas, o Ministério Público de
Minas Gerais (MPMG), o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública
de Minas Gerais (DPMG), no dia 04/02/2021, mediado pelo Tribunal de Justiça de
Minas Gerais (TJMG), não abrange os danos individuais.
O Termo de Compromisso
entabulado entre a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais e a Vale S.A.,
é do dia 05/04/2019. O referido Termo prevê, em sua cláusula 1.2, o seguinte:
“O presente TC regula a indenização pecuniária, extrajudicial e individual ou
por núcleo familiar, dos atingidos pelo rompimento da barragem de Brumadinho,
para aqueles que optarem por esta modalidade reparatória, não servindo de
parâmetro para outras modalidades de reparação, que seguirão procedimentos e
critérios próprios, a serem construídos oportunamente com os interessados”.
Fonte: Repórter Brasil
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