A democracia no Peru: como governar sem
ganhar eleições
Em um contexto de
impunidade, com o ocultamento dos responsáveis políticos e materiais dos 70
mortos nos protestos populares no final de 2022 e início de 2023, a democracia
no Peru está a caminho de se tornar uma caricatura funcional aos interesses da
coalizão ultraconservadora que governa sem ter vencido as eleições. Como é
preciso lembrar, Dina Boluarte é resultado de um golpe de Estado realizado pelo
Executivo e o Legislativo.
As investigações sobre
os crimes cometidos por elementos das Forças Armadas e da Polícia em Ayacucho,
Puno, Cusco, Apurímac e Lima não avançam em nenhum sentido, graças à blindagem
do Executivo e do Legislativo, sob controle da ultradireita política. Até o momento, os autores intelectuais e
materiais desses crimes continuam em plena liberdade e, sobretudo, desfrutam de
uma impunidade sem precedentes.
Não é apenas a crise
na Procuradoria-Geral da República, onde grassa a criminalidade organizada, nem
a evidente corrupção no Poder Judiciário, que tem sido usada para maquiar a
blindagem, mas sim a decisão política de não punir ninguém por crimes que as organizações
de direitos humanos classificaram como crimes contra a humanidade.
Dina Boluarte, uma
mulher cuja mediocridade intelectual é amplamente compensada pela sua brutal
dose de cinismo, não só “tira o corpo” em relação aos horrores cometidos pelo
seu governo, como nega a sua participação invocando balelas como a de que
"faz parte do comando" das Forças Armadas e policiais, mas "não
manda" nelas. No entanto, conseguiu
que o Executivo ficasse sob o seu comando exclusivo, com Otárola, o seu chefe
de gabinete, no papel de carrasco.
Esta
"façanha" não teria sido possível sem o apoio superfaturado do
Congresso, no seio do qual a ultra-direita política opera com absoluta
discrição e que, para todos os efeitos políticos e jurídicos, se constituiu
como chefe de fato do Executivo, que não faz mais do que exibir pusilanimidade
e mediocridade em abundância.
Nestas condições, ou
apesar delas, o Executivo e o Legislativo estão demonstrando energia e
"autoridade" para organizar uma nova ordem normativa para as próximas
eleições no Peru. Dizem que o fazem para "defender e ampliar os espaços
democráticos", mesmo que para isso tenham de liquidar com tudo o que se
assemelha ao equilíbrio de poderes e à oposição política. As novas regras
eleitorais foram concebidas para facilitar o objetivo político de manterem o
poder que ganharam sem as eleições. O objetivo é impedir, a todo o custo, que o
povo recupere o poder, mesmo que seja uma pequena parte dele. A extrema-direita
quer tudo.
• Carnaval eleitoral
De acordo com as
autoridades eleitorais, 25 organizações políticas, que alucinam ser partidos
políticos, estão inscritas para qualquer processo eleitoral que a coalizão de
ultra-direita decida realizar. Mas não só elas: outras nove organizações estão
perto de conseguir seu registro eleitoral, o que significaria que o Peru teria
34 candidatos à presidência e milhares de candidatos para ocupar um dos 130
assentos, por enquanto, no Congresso da República.
Destas 34
organizações, apenas quatro ou cinco teriam a possibilidade de estar entre as
mais votadas. Duas delas passariam para o segundo turno. Mas, com a dispersão dos votos, é muito
provável que essas “altas votações” reflitam porcentagens inferiores às
alcançadas em 2021: 13% para Castillo contra 11% para Fujimori. Em 2026, os
concorrentes ao segundo turno poderão ter votações que não ultrapassem os 10%,
afetando mais uma vez a governabilidade e a legitimidade do vencedor.
Nenhum país que queira
reivindicar para si o reconhecimento democrático pode dar-se ao luxo de ter
"tanta democracia” assim. Se as eleições fossem realizadas em 2026, como
parece prometer a ditadura administrada pela coalizão de ultra-direita, teríamos
34 organizações políticas disputando "democraticamente" a presidência
da República e uma cadeira no Congresso da República.
O pacto entre o
Executivo e o Legislativo terá assim conseguido algo que parecia impossível há
apenas dois anos: atomizar as forças políticas de direita e de esquerda,
desmobilizar as organizações populares e cooptar dezenas de lideranças de
esquerda e progressistas que preferem uma boa mesa cheia de comes e bebes que
seus opressores lhes oferecem em troca da traição ao povo. Lênin chamou este
agrupamento sindical de "aristocracia operária", e todos aqueles que
se unem em torno do "mal menor" de "pequena burguesia com
aspirações burguesas".
A dispersão das forças
populares e a atomização das organizações políticas proporcionam o melhor
cenário para a coalizão de extrema direita que, com o apoio de um empresariado
antinacional, busca permanecer no poder indefinidamente. A dispersão no campo da
direita é absolutamente controlável; apesar do fato de que eles podem acabar
numa disputa dura entre si, essas forças sempre serão incluídos no banquete
resultante.
Mas a dispersão e a
atomização no campo popular (esquerda e forças progressistas) não têm o lastro
econômico do campo da direita, cujas engrenagens resolvem, quando querem, suas
"contradições". As contradições no campo são complexas e de alta intensidade
subjetiva. É, portanto, dramaticamente patético a pouca vontade política
colocada a serviço de possíveis soluções para essa dispersão e atomização que,
se não for superada, apenas garante que esse campo permaneça marginal.
A obsessão com o
registro eleitoral tornou-se, em muitos casos, patológica. O comportamento e os
discursos políticos desses "esquerdistas" e "forças
progressistas" são exatamente o que a coalizão ultrarreacionária no poder
deseja. Será que eles realmente não têm consciência disso? Ou será que preferem
continuar sendo tributários do "mal menor"? Seja qual for o caso, se
as coisas continuarem como estão, o vencedor do "carnaval
democrático" será a direita que governa sem ter vencido as eleições.
Equador: como chegamos à guerra?
O Equador está em
"estado de guerra" contra os narcotraficantes, lia-se na primeira
página de um jornal mexicano esta semana. Lendo de forma distraída, poderia
parecer que a notícia se referia a qualquer lugar na imensa extensão geográfica
do México onde se encontram os cartéis do narcotráfico. A matéria relatava que
o presidente do Equador, Daniel Noboa, disse em uma rádio local que "é
preciso ter grandes ovos, de avestruz" para superar a crise de segurança
no país sul-americano, cujo núcleo principal está nas prisões, que já acumulam
quase 500 mortos desde 2021. Ouvi toda a entrevista do presidente e mais
terrível do que o tamanho dos “ovos” citados foram os desafios que ele fez para
que os criminosos (rotulados de terroristas) saíssem às ruas para enfrentar o
exército. Comentei com indignação nos meus círculos familiares, mas muitos
aplaudiram esse discurso e entendi que estavam cansados de contar os mortos.
Encerramos 2023 com
uma taxa de 46 homicídios para cada 100 mil habitantes, ou seja, quase 8 mil
mortos. Os casos mais relevantes foram os assassinatos do candidato
presidencial que desafiou os narcotraficantes, Fernando Villavicencio, e do
prefeito de uma das cidades-chave para o tráfico de drogas, Agustín Intriago.
Ambos os crimes teriam sido ordenados de dentro das prisões e perigam ficar
impunes, pois os mandantes ainda não foram capturados, e, no caso de
Villavicencio, os executores foram mortos assim que pisaram nas cadeias.
Quando é que demos
esse salto rumo ao terror? É difícil precisar uma data. O Equador nunca foi um
país de destaque na região. Teve governos militares, mas não sofreu os crimes
horrendos das ditaduras do Cone Sul. Também teve um movimento guerrilheiro, que
baixou as armas após oito anos de ações isoladas. Os maiores acontecimentos da
nossa memória coletiva são as revoltas indígenas, a derrubada de presidentes e
os terremotos. E só nos terremotos é que costumávamos contar os mortos. Éramos
um país de paz, pobre, mas de paz. Víamos de longe a guerra na Colômbia e
sabíamos que tanto os paramilitares como os guerrilheiros tiravam as fardas e
vinham descansar nas nossas cidades fronteiriças. Havia um acordo tácito de não
atacar em solo equatoriano, e isso era quase sempre respeitado.
Los Choneros, a gangue
que tem dominado as capas de jornais do mundo nos últimos dias, surgiu nos anos
90 e se fortaleceu na primeira década do novo milênio, quando outras gangues do
Equador se dissolveram (Ñetas e Latin King) em meio a um processo de pacificação.
O nome do bando é o gentílico das pessoas nascidas em Chone, um ponto na costa
do interior de Manabí. Eles começaram a trabalhar como capangas contratados
pelas máfias que desenvolveram uma nova rota para levar droga através do mar
equatoriano, contornando as ilhas Galápagos e subindo quase em linha reta até
El Salvador ou Guatemala. Havia necessidade de recrutar pescadores experientes
em navegar nas águas oceânicas, e muitos deles saíram de Manabí. Um dos
marinheiros mais proeminentes foi o homem conhecido como o "Pablo Escobar
do Equador", Washington Prado Álava, que montou uma cadeia de barcos que
serviam como postos de gasolina flutuantes no mar, e ele operou até ser preso
na Colômbia e extraditado para os Estados Unidos.
No início dos anos
2000, também conhecemos um dos homens-chave do cartel de Sinaloa, o capitão do
exército equatoriano Telmo Castro, que estabeleceu contato com os traficantes
de drogas quando foi destacado para a fronteira com a Colômbia. O seu trabalho
no tráfico de drogas era tão dedicado que chegou a ter um narcocorrido
[‘corrido’ é um gênero musical mexicano, sendo o ‘narcocorrido’ um subgênero utilizado para homenagear
narcotraficantes proeminentes] chamado El Capi. A sua primeira detenção foi em
2009, quando transportava drogas escondidas em caminhões militares, mas ele
sempre conseguiu evitar a prisão devido ao seu bom comportamento e à ação dos
seus advogados. No entanto, a última vez que passou pela prisão de Guayaquil,
em dezembro de 2019, não conseguiu evitar as 15 facadas que recebeu em sua
cela.
E houve mais um nome
na história do narcotráfico equatoriano que merece ser mencionado: Dritan
Rexhepi, um criminoso albanês preso em 2014 e condenado a 13 anos de prisão
pelo crime de tráfico de drogas. Ele continuou trabalhando de dentro da prisão
e atuando como chefe da "Kompania Bello", um cartel que aglutina 14
clãs criminosos albaneses que controlam o tráfico de cocaína na Europa, segundo
informações do portal de notícias Balkan Insight. No final de 2021, Rexhepi
aproveitou um benefício prisional que lhe permitia cumprir a pena em liberdade
e desapareceu. Só se ouviu falar dele em novembro passado, quando foi detido na
Turquia com um passaporte colombiano.
Vivenciamos tudo isso
como fatos isolados e, de acordo com como as histórias nos eram contadas,
acreditávamos que, uma vez que eles estivessem na prisão, era o fim da história
e que, se saíssem em liberdade ou fugissem, mal saberíamos. A morte de Jorge Luis
Zambrano, conhecido como "Rasquiña", o líder histórico dos Los
Choneros, que estava preso desde 2011 por um homicídio e foi assassinado em
dezembro de 2020, pouco depois de ter conseguido liberdade condicional, marcou
uma mudança. Criou-se um vazio de poder, e novos bandos e lideranças surgiram e
estão em disputa. Os motins de fevereiro de 2021, que fizeram 79 mortos em
várias prisões, foram um despertar para muitos. Os meios de comunicação
especializados apontavam que o cartel mexicano Jalisco Nueva Generación entrara
nesta luta e pagava com armas e drogas as gangues opositoras aos Los Choneros,
o que levou a um aumento da violência no país e nas prisões.
Houve várias
declarações de emergência para o sistema penitenciário desde 2021, mas até
agora não foi possível sanear nem as prisões nem o sistema judicial, embora em
dezembro de 2023 o presidente do Conselho da Magistratura, Wilman Terán, que
regulamenta o trabalho dos juízes, tenha sido preso quando foram encontradas
provas de que estava conversando com um narcotraficante assassinado nas
rebeliões. Os presos opuseram-se a tudo através de rebeliões, especialmente à
transferência do novo líder dos Los Choneros, José Adolfo Macías Villamar,
conhecido por "Fito", que durante o governo de Guillermo Lasso foi
enviado para uma prisão mais segura, mas um juiz ordenou o seu regresso ao
centro de Guayaquil, onde reina e de onde fugiu, supostamente no dia 25 de
dezembro, embora o governo só tenha notado isso na primeira semana de janeiro.
O Equador
transformou-se em um narco-território sem que tenhamos nos dado conta e, o
controle sobre as prisões se perdeu no caminho. É por isso que é preocupante
que a guerra declarada contra as drogas seja na verdade contra os elos mais
fracos da corrente, e que pelo menos 1.105 pessoas detidas na última semana
acabem nesses buracos negros que são os principais pontos de recrutamento das
máfias.
Ninguém do governo
Noboa oferece respostas sobre o destino dessas pessoas. Tampouco respondeu à
questão sobre quais outras medidas irão tomar para resolver a crise
penitenciária. Limitaram-se a anunciar novos modelos de prisões que incluirão
bloqueadores de sinal de celular, ampliar o perímetro de segurança, muros
blindados; um longo etc., mas sem data prevista de construção. Isto nos leva a
outra questão: a falta de recursos – embora já tenha sido anunciado um aumento
do IVA (imposto de valor agregado), algo que pode ser feito devido ao estado de
emergência no país. A pertinência de tal estado de emergência é muito
discutível, especialmente porque, se recorrermos à imprensa, veremos que o
presidente queria declarar o estado de emergência no país assim que tomou
posse, há pouco mais de um mês. Afirmou que seria para combater o fenômeno El
Niño e a emergência climática, mas a guerra contra as drogas sem dúvidas cai
melhor nos jornais.
Fonte: Opera Mundi
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