domingo, 28 de janeiro de 2024

A democracia no Peru: como governar sem ganhar eleições

Em um contexto de impunidade, com o ocultamento dos responsáveis políticos e materiais dos 70 mortos nos protestos populares no final de 2022 e início de 2023, a democracia no Peru está a caminho de se tornar uma caricatura funcional aos interesses da coalizão ultraconservadora que governa sem ter vencido as eleições. Como é preciso lembrar, Dina Boluarte é resultado de um golpe de Estado realizado pelo Executivo e o Legislativo.

As investigações sobre os crimes cometidos por elementos das Forças Armadas e da Polícia em Ayacucho, Puno, Cusco, Apurímac e Lima não avançam em nenhum sentido, graças à blindagem do Executivo e do Legislativo, sob controle da ultradireita política.  Até o momento, os autores intelectuais e materiais desses crimes continuam em plena liberdade e, sobretudo, desfrutam de uma impunidade sem precedentes.

Não é apenas a crise na Procuradoria-Geral da República, onde grassa a criminalidade organizada, nem a evidente corrupção no Poder Judiciário, que tem sido usada para maquiar a blindagem, mas sim a decisão política de não punir ninguém por crimes que as organizações de direitos humanos classificaram como crimes contra a humanidade.

Dina Boluarte, uma mulher cuja mediocridade intelectual é amplamente compensada pela sua brutal dose de cinismo, não só “tira o corpo” em relação aos horrores cometidos pelo seu governo, como nega a sua participação invocando balelas como a de que "faz parte do comando" das Forças Armadas e policiais, mas "não manda" nelas.  No entanto, conseguiu que o Executivo ficasse sob o seu comando exclusivo, com Otárola, o seu chefe de gabinete, no papel de carrasco.

Esta "façanha" não teria sido possível sem o apoio superfaturado do Congresso, no seio do qual a ultra-direita política opera com absoluta discrição e que, para todos os efeitos políticos e jurídicos, se constituiu como chefe de fato do Executivo, que não faz mais do que exibir pusilanimidade e mediocridade em abundância.

Nestas condições, ou apesar delas, o Executivo e o Legislativo estão demonstrando energia e "autoridade" para organizar uma nova ordem normativa para as próximas eleições no Peru. Dizem que o fazem para "defender e ampliar os espaços democráticos", mesmo que para isso tenham de liquidar com tudo o que se assemelha ao equilíbrio de poderes e à oposição política. As novas regras eleitorais foram concebidas para facilitar o objetivo político de manterem o poder que ganharam sem as eleições. O objetivo é impedir, a todo o custo, que o povo recupere o poder, mesmo que seja uma pequena parte dele. A extrema-direita quer tudo.

•        Carnaval eleitoral

De acordo com as autoridades eleitorais, 25 organizações políticas, que alucinam ser partidos políticos, estão inscritas para qualquer processo eleitoral que a coalizão de ultra-direita decida realizar. Mas não só elas: outras nove organizações estão perto de conseguir seu registro eleitoral, o que significaria que o Peru teria 34 candidatos à presidência e milhares de candidatos para ocupar um dos 130 assentos, por enquanto, no Congresso da República.

Destas 34 organizações, apenas quatro ou cinco teriam a possibilidade de estar entre as mais votadas. Duas delas passariam para o segundo turno.  Mas, com a dispersão dos votos, é muito provável que essas “altas votações” reflitam porcentagens inferiores às alcançadas em 2021: 13% para Castillo contra 11% para Fujimori. Em 2026, os concorrentes ao segundo turno poderão ter votações que não ultrapassem os 10%, afetando mais uma vez a governabilidade e a legitimidade do vencedor.

Nenhum país que queira reivindicar para si o reconhecimento democrático pode dar-se ao luxo de ter "tanta democracia” assim. Se as eleições fossem realizadas em 2026, como parece prometer a ditadura administrada pela coalizão de ultra-direita, teríamos 34 organizações políticas disputando "democraticamente" a presidência da República e uma cadeira no Congresso da República.

O pacto entre o Executivo e o Legislativo terá assim conseguido algo que parecia impossível há apenas dois anos: atomizar as forças políticas de direita e de esquerda, desmobilizar as organizações populares e cooptar dezenas de lideranças de esquerda e progressistas que preferem uma boa mesa cheia de comes e bebes que seus opressores lhes oferecem em troca da traição ao povo. Lênin chamou este agrupamento sindical de "aristocracia operária", e todos aqueles que se unem em torno do "mal menor" de "pequena burguesia com aspirações burguesas".

A dispersão das forças populares e a atomização das organizações políticas proporcionam o melhor cenário para a coalizão de extrema direita que, com o apoio de um empresariado antinacional, busca permanecer no poder indefinidamente. A dispersão no campo da direita é absolutamente controlável; apesar do fato de que eles podem acabar numa disputa dura entre si, essas forças sempre serão incluídos no banquete resultante.

Mas a dispersão e a atomização no campo popular (esquerda e forças progressistas) não têm o lastro econômico do campo da direita, cujas engrenagens resolvem, quando querem, suas "contradições". As contradições no campo são complexas e de alta intensidade subjetiva. É, portanto, dramaticamente patético a pouca vontade política colocada a serviço de possíveis soluções para essa dispersão e atomização que, se não for superada, apenas garante que esse campo permaneça marginal.

A obsessão com o registro eleitoral tornou-se, em muitos casos, patológica. O comportamento e os discursos políticos desses "esquerdistas" e "forças progressistas" são exatamente o que a coalizão ultrarreacionária no poder deseja. Será que eles realmente não têm consciência disso? Ou será que preferem continuar sendo tributários do "mal menor"? Seja qual for o caso, se as coisas continuarem como estão, o vencedor do "carnaval democrático" será a direita que governa sem ter vencido as eleições.

 

       Equador: como chegamos à guerra?

 

O Equador está em "estado de guerra" contra os narcotraficantes, lia-se na primeira página de um jornal mexicano esta semana. Lendo de forma distraída, poderia parecer que a notícia se referia a qualquer lugar na imensa extensão geográfica do México onde se encontram os cartéis do narcotráfico. A matéria relatava que o presidente do Equador, Daniel Noboa, disse em uma rádio local que "é preciso ter grandes ovos, de avestruz" para superar a crise de segurança no país sul-americano, cujo núcleo principal está nas prisões, que já acumulam quase 500 mortos desde 2021. Ouvi toda a entrevista do presidente e mais terrível do que o tamanho dos “ovos” citados foram os desafios que ele fez para que os criminosos (rotulados de terroristas) saíssem às ruas para enfrentar o exército. Comentei com indignação nos meus círculos familiares, mas muitos aplaudiram esse discurso e entendi que estavam cansados de contar os mortos.

Encerramos 2023 com uma taxa de 46 homicídios para cada 100 mil habitantes, ou seja, quase 8 mil mortos. Os casos mais relevantes foram os assassinatos do candidato presidencial que desafiou os narcotraficantes, Fernando Villavicencio, e do prefeito de uma das cidades-chave para o tráfico de drogas, Agustín Intriago. Ambos os crimes teriam sido ordenados de dentro das prisões e perigam ficar impunes, pois os mandantes ainda não foram capturados, e, no caso de Villavicencio, os executores foram mortos assim que pisaram nas cadeias.

Quando é que demos esse salto rumo ao terror? É difícil precisar uma data. O Equador nunca foi um país de destaque na região. Teve governos militares, mas não sofreu os crimes horrendos das ditaduras do Cone Sul. Também teve um movimento guerrilheiro, que baixou as armas após oito anos de ações isoladas. Os maiores acontecimentos da nossa memória coletiva são as revoltas indígenas, a derrubada de presidentes e os terremotos. E só nos terremotos é que costumávamos contar os mortos. Éramos um país de paz, pobre, mas de paz. Víamos de longe a guerra na Colômbia e sabíamos que tanto os paramilitares como os guerrilheiros tiravam as fardas e vinham descansar nas nossas cidades fronteiriças. Havia um acordo tácito de não atacar em solo equatoriano, e isso era quase sempre respeitado.

Los Choneros, a gangue que tem dominado as capas de jornais do mundo nos últimos dias, surgiu nos anos 90 e se fortaleceu na primeira década do novo milênio, quando outras gangues do Equador se dissolveram (Ñetas e Latin King) em meio a um processo de pacificação. O nome do bando é o gentílico das pessoas nascidas em Chone, um ponto na costa do interior de Manabí. Eles começaram a trabalhar como capangas contratados pelas máfias que desenvolveram uma nova rota para levar droga através do mar equatoriano, contornando as ilhas Galápagos e subindo quase em linha reta até El Salvador ou Guatemala. Havia necessidade de recrutar pescadores experientes em navegar nas águas oceânicas, e muitos deles saíram de Manabí. Um dos marinheiros mais proeminentes foi o homem conhecido como o "Pablo Escobar do Equador", Washington Prado Álava, que montou uma cadeia de barcos que serviam como postos de gasolina flutuantes no mar, e ele operou até ser preso na Colômbia e extraditado para os Estados Unidos.

No início dos anos 2000, também conhecemos um dos homens-chave do cartel de Sinaloa, o capitão do exército equatoriano Telmo Castro, que estabeleceu contato com os traficantes de drogas quando foi destacado para a fronteira com a Colômbia. O seu trabalho no tráfico de drogas era tão dedicado que chegou a ter um narcocorrido [‘corrido’ é um gênero musical mexicano, sendo o ‘narcocorrido’  um subgênero utilizado para homenagear narcotraficantes proeminentes] chamado El Capi. A sua primeira detenção foi em 2009, quando transportava drogas escondidas em caminhões militares, mas ele sempre conseguiu evitar a prisão devido ao seu bom comportamento e à ação dos seus advogados. No entanto, a última vez que passou pela prisão de Guayaquil, em dezembro de 2019, não conseguiu evitar as 15 facadas que recebeu em sua cela.

E houve mais um nome na história do narcotráfico equatoriano que merece ser mencionado: Dritan Rexhepi, um criminoso albanês preso em 2014 e condenado a 13 anos de prisão pelo crime de tráfico de drogas. Ele continuou trabalhando de dentro da prisão e atuando como chefe da "Kompania Bello", um cartel que aglutina 14 clãs criminosos albaneses que controlam o tráfico de cocaína na Europa, segundo informações do portal de notícias Balkan Insight. No final de 2021, Rexhepi aproveitou um benefício prisional que lhe permitia cumprir a pena em liberdade e desapareceu. Só se ouviu falar dele em novembro passado, quando foi detido na Turquia com um passaporte colombiano.

Vivenciamos tudo isso como fatos isolados e, de acordo com como as histórias nos eram contadas, acreditávamos que, uma vez que eles estivessem na prisão, era o fim da história e que, se saíssem em liberdade ou fugissem, mal saberíamos. A morte de Jorge Luis Zambrano, conhecido como "Rasquiña", o líder histórico dos Los Choneros, que estava preso desde 2011 por um homicídio e foi assassinado em dezembro de 2020, pouco depois de ter conseguido liberdade condicional, marcou uma mudança. Criou-se um vazio de poder, e novos bandos e lideranças surgiram e estão em disputa. Os motins de fevereiro de 2021, que fizeram 79 mortos em várias prisões, foram um despertar para muitos. Os meios de comunicação especializados apontavam que o cartel mexicano Jalisco Nueva Generación entrara nesta luta e pagava com armas e drogas as gangues opositoras aos Los Choneros, o que levou a um aumento da violência no país e nas prisões.

Houve várias declarações de emergência para o sistema penitenciário desde 2021, mas até agora não foi possível sanear nem as prisões nem o sistema judicial, embora em dezembro de 2023 o presidente do Conselho da Magistratura, Wilman Terán, que regulamenta o trabalho dos juízes, tenha sido preso quando foram encontradas provas de que estava conversando com um narcotraficante assassinado nas rebeliões. Os presos opuseram-se a tudo através de rebeliões, especialmente à transferência do novo líder dos Los Choneros, José Adolfo Macías Villamar, conhecido por "Fito", que durante o governo de Guillermo Lasso foi enviado para uma prisão mais segura, mas um juiz ordenou o seu regresso ao centro de Guayaquil, onde reina e de onde fugiu, supostamente no dia 25 de dezembro, embora o governo só tenha notado isso na primeira semana de janeiro.

O Equador transformou-se em um narco-território sem que tenhamos nos dado conta e, o controle sobre as prisões se perdeu no caminho. É por isso que é preocupante que a guerra declarada contra as drogas seja na verdade contra os elos mais fracos da corrente, e que pelo menos 1.105 pessoas detidas na última semana acabem nesses buracos negros que são os principais pontos de recrutamento das máfias.

Ninguém do governo Noboa oferece respostas sobre o destino dessas pessoas. Tampouco respondeu à questão sobre quais outras medidas irão tomar para resolver a crise penitenciária. Limitaram-se a anunciar novos modelos de prisões que incluirão bloqueadores de sinal de celular, ampliar o perímetro de segurança, muros blindados; um longo etc., mas sem data prevista de construção. Isto nos leva a outra questão: a falta de recursos – embora já tenha sido anunciado um aumento do IVA (imposto de valor agregado), algo que pode ser feito devido ao estado de emergência no país. A pertinência de tal estado de emergência é muito discutível, especialmente porque, se recorrermos à imprensa, veremos que o presidente queria declarar o estado de emergência no país assim que tomou posse, há pouco mais de um mês. Afirmou que seria para combater o fenômeno El Niño e a emergência climática, mas a guerra contra as drogas sem dúvidas cai melhor nos jornais.

 

Fonte: Opera Mundi

 

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