sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Da irrelevância ao poder: como ocorreu a longa marcha da extrema direita na Argentina em 2023

A posse presidencial do ultradireitista Javier Milei em 10 de dezembro pôs fim às coordenadas políticas argentinas dos últimos 20 anos. A data não poderia ter sido mais carregada de simbolismo: foi exatamente no 40º aniversário da transição democrática após a última ditadura militar,

2023 foi o corolário de longo processo que enterrou todo um cenário político. Este ano, a Argentina escolheu olhar diretamente para os olhos do abismo. Um abismo que já estava aí há muito tempo e que o conjunto do sistema político - com seus analistas, jornalistas e intelectuais - tinha decidido ignorar. 

Durante a última década, o país vem atravessando uma profunda crise econômica que parece não ter fim à vista. Ano após ano, as condições de vida da sociedade têm piorado, enquanto a polarização política -que dominou o debate público e governou o país durante todo este tempo- parecia cada vez mais estar falando numa linguagem diferente que a de sua exausta sociedade.  

De acordo com um informe do Mirador de la Actualidad del Trabajo y la Economía (MATE), para meados de 2023, os salários reais se mantiveram abaixo do nível do último ano do governo Macrista. Além disso, o estudo revela que, no período entre 2015 e 2022, os salários reais caíram 24%. 

Em boa parte, a diminuição da renda se explica pelo crescimento da inflação nos últimos anos. Este ano registrou a mais alta dos últimos 30 anos na Argentina. 

A este difícil cenário econômico, estima-se que este ano a Argentina perdeu US$ 20 bilhões (cerca de R$ 100 bi) como resultado da pior seca da história do país. 

Nesse contexto específico, todo o ano de 2023 foi marcado por um intenso e desgastante calendário eleitoral. Em diferentes partes do país, a sociedade foi convocada a votar até quatro vezes durante o ano. Como nunca, combinou-se uma enorme intensidade política com uma crescente insatisfação social com esse sistema de representação política.

·        Eleições provinciais 

No início do ano, a maioria dos governadores decidiu antecipar as eleições em suas províncias para não coincidir com o pleito nacional. O cálculo se baseava num raciocínio conservador: eles não queriam vincular seu destino com o das eleições nacionais. Motivos não faltavam. 

Já em janeiro, o índice de confiança no governo, elaborado pela Universidade Di Tella, registrava uma baixa histórica. Enquanto a consultora Zuban Córdoba publicava uma pesquisa de opinião onde mostrava que a imagem negativa dos principais políticos nacionais ultrapassava os 50%.

O número é ainda mais importante se levarmos em consideração que a cifra ultrapassava os 60% de imagem negativa nas duas principais figuras do sistema político. Mauricio Macri tinha uma imagem negativa de mais de 67%, enquanto Cristina Fernandez de Kirchner tinha uma de 64%. 

Toda a clivagem política dos últimos 10 anos girou em torno dessas duas figuras cujos nomes tinham ordenado as principais coalizões eleitorais. Kirchnerismo vs. Anti-Kirchnerismo. Macrismo vs. Anti-macrismo. As eleições tinham de ser confrontadas com o grau de rejeição que ambas figuras geraram. 

As diversas eleições provinciais montaram um complexo quebra-cabeça que foi moldando gradualmente o novo mapa do poder no país. 

E isso apesar do fato de que vários oficialismos provinciais, principalmente em distritos liderados pelo peronismo, foram derrotados. A extrema direita da coalização La Libertad Avanza não obteve nenhuma vitória em províncias. 

O carisma com o qual Milei conseguiu capitalizar o mal-estar social não conseguiu sustentar nenhum de seus candidatos regionais. É a primeira vez na história do país que um presidente assume um governo sem nenhum poder territorial próprio. 

A irrupção de Milei  

Até as eleições de agosto, quando foram realizadas as Eleições Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (PASO), todos acreditavam - mesmo sem admitir publicamente - que seriam beneficiados pelo surgimento de uma terceira força de fora da polarização clássica.

Com Juntos por el Cambio (JxC) imerso em um feroz conflito interno, o partido governista Unión por la Patria (UxP) acreditava que se beneficiaria do fato de que a figura de Milei dividiria a oposição. Enquanto isso, o JxC via em Milei uma força que ampliava o espaço da oposição, lutando por ideias "liberais" na esfera cultural.  

Até agosto, haviam ocorrido 14 das 22 eleições provinciais realizadas este ano. Em nenhuma dessas eleições a força política de Javier Milei conseguiu obter um resultado relevante. Ninguém acreditava que ela pudesse ser um adversário sério. 

Nesse contexto, o surgimento de Milei, que se posicionou como a principal força nas eleições de agosto, foi um verdadeiro terremoto político. O que até então parecia impossível estava começando a parecer inevitável. 

O cenário havia sido dividido praticamente em terços: Javier Milei ganhou o primeiro lugar com quase 30% dos votos, o JxC com 28%, enquanto o partido governista UxP ficou em terceiro lugar com 27,5%. 

A grande questão era qual das duas forças principais nas eleições gerais iria disputar o segundo turno.

·        A correlação de fraquezas

As eleições gerais de outubro registraram um aumento notável no comparecimento dos eleitores. Quase 7% dos eleitores que não haviam comparecido às urnas em agosto o fizeram em outubro. A maior parte dessa porcentagem - depois do resultado das primárias - votou em Massa. 

Esse contingente extra de eleitores permitiu que o candidato  da UxP obtivesse um aumento extraordinário de mais de 3 milhões de votos. Isso lhe deu um surpreendente primeiro lugar. Em segundo lugar ficou Javier Milei, que aumentou seu resultado em apenas um ponto percentual (30%). Enquanto o JxC perdeu quase 500 mil votos em comparação com o PASO, ficando de fora do segundo turno. 

Como se tratava de eleições gerais, o resultado acabou moldando a composição do parlamento - onde apenas metade dos assentos foi renovada. O resultado deu origem a um congresso mais fragmentado, em que nenhuma força alcançou maioria própria. E onde o atual partido governista de extrema direita é uma minoria que terá de formar alianças para governar. 

Dos 257 membros do parlamento que compõem a câmara baixa, a extrema direita passou de dois deputados para 38. Enquanto a primeira minoria é mantida pela União pela Pátria (UxP), com 106 deputados, seguida pelo Juntos pela Mudança (JxC), que agora tem 94, a esquerda tem 5, e 14 deputados distribuídos entre vários partidos provinciais.

·        A mais ampla unidade 

A derrota do Juntos por el Cambio (JxC) abriu rapidamente um cenário de crise dentro da coalizão. Embora Patricia Bullrich tenha criticado Milei durante toda a campanha, nem mesmo uma semana após o resultado da eleição, junto com Mauricio Macri, não hesitou para apoiar o candidato de extrema direita. 

A decisão, não consultada em seu próprio espaço político, foi justificada com o argumento de que era uma questão de apoiar as "forças da mudança". As fraturas no Juntos por el Cambio (JxC) se aprofundaram. Vários líderes do espaço declararam publicamente que não votariam em Milei. 

Com a aproximação do dia da eleição, cada vez mais instituições começaram a se manifestar contra a candidatura de Milei. Inclusive, alguns dias antes das eleições, até mesmo as grandes associações de empresários do setor agronegocio, reunidas na Sociedade Rural Argentina, emitiram um comunicado expressando sua preocupação com uma possível vitória de Milei. 

Nunca na história da Argentina tantas instituições tinham se manifestado numa eleição: desde partidos políticos até a igreja, clubes de futebol, sindicatos e até fã clubes musicais. E, ainda assim, a crise de representação foi mais forte. Nunca na história argentina houve uma distância tão abismal entre as diferentes expressões institucionais e o comportamento social.  

A votação destacou as fraturas sociais da Argentina. Uma sociedade implodida, depois que as mediações sociais contiveram sua raiva para que ela não explodisse. E, na noite de 22 de outubro, Javier Milei venceu com 55,6% dos votos contra Sergio Massa. 

·        Ordem reacionária 

A chegada de Milei à presidência transforma a Argentina em um novo bastião da extrema direita global, que mais uma vez tem presença em um dos três maiores países da América Latina. Javier Milei, em conjunto com os autodenominados libertários na Argentina, faz parte de uma corrente global "antiprogressista" que, com todas as suas diferenças, tem conseguido construir um terreno comum e trocar conhecimentos. Tanto é assim que vários dos técnicos que trabalharam na campanha de Milei, como o consultor político Fernando Cerimedo, foram assessores das campanhas do clã Bolsonaro ou Kast no Chile.

A vitória de Milei na Argentina coincide com a vitória de Geert Wilders, líder da extrema direita holandesa. Dois países onde a cultura progressista e igualitária está profundamente enraizada e onde a irrupção da extrema direita se mostrava improvável. 

A posse presidencial no dia 10 de dezembro foi carregada de um profundo simbolismo. De costas para o Congresso, Milei pronunciou um discurso diante de uma multidão que tinha se juntado para acompanhá-lo. Seu discurso evitou eufemismos, afirmou de forma clara que seu governo pretende fazer mudanças "revolucionárias", terminando com a "casta política".

Com um discurso maximalista, a "casta" que ele afirma enfrentar é basicamente qualquer um que se oponha às suas reformas.  

Ao contrário da direita clássica, Mieli não se apresenta como o líder de uma equipe de tecnocratas que pretende solucionar uma crise econômica. Mas sim como o líder de uma força social que luta por um horizonte utópico que ele chama de "ideias de liberdade". Um horizonte de revolução reacionária. 

Quanto Milei conseguirá mudar a Argentina ou quanto a Argentina mudará Milei? Com apenas uma minoria parlamentar, Javier Milei tem consciência de sua fraqueza institucional. Portanto, sabe que terá de escolher entre depender de sua base social mobilizada ou do poder institucional emprestado pela "casta politica". 

O cuidado com que montou seu gabinete é um testemunho disso. Com integrantes vindos de todos os espaços políticos, desde representantes do macrismo aos antigos líderes peronistas, Milei formou um gabinete com o cuidado de "não depender de ninguém". 

Consciente de sua fraqueza, as primeiras medidas de Milei são uma aposta para "ir com tudo". 48 horas após assumir o cargo, o governo apresentou um pacote ambicioso de medidas econômicas. O pacote de austeridade  inclue uma mega desvalorização do peso argentino da ordem de 54% e a intenção de cortar os gastos públicos em cerca de 5% do PIB, o equivalente a US$ 20 bilhões (cerca de R$ 100 bi).
Além disso, o governo publicou 
um severo protocolo que busca limitar e reprimir os protestos sociais na Argentina. "Se tomarem as ruas, haverá consequências", advertiu Patricia Bullrich, ministra da Segurança. Tornando o confronto com os setores que protestam uma parte central de seu discurso. 

Ao mesmo tempo, Milei apresentou um ambicioso Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) que visa modificar 366 leis sem passar pelo Congresso. Ao arrogar para si a soma dos poderes da república, o DNU é apresentado como "a reforma mais ambiciosa" dos últimos 40 anos. Em outras palavras, a reforma econômica e social mais ambiciosa desde aquela imposta pela última ditadura militar. 

Elas são um conjunto de medidas para viabilizar um gigantesco corte nos direitos trabalhistas, flexibilização econômica, redução do patrimônio público (privatizando as empresas do país).

A partir desse momento, os protestos auto-organizados começaram a ser realizados durante a noite, conhecidos como cacerolazos, principalmente na cidade de Buenos Aires, em repúdio à DNU. A vitória eleitoral de Milei não é uma vitória hegemônica. Ele ainda terá que enfrentar as lutas de rua de uma sociedade com grande capacidade de mobilização e bloqueio das políticas governamentais. 

Diante dessa situação, as centrais sindicais e os movimentos sociais têm manifestado publicamente seu repúdio e mobilização. Na luta entre o movimento popular e o governo de Milei, está em jogo a possibilidade de a ultradireita conseguir levar adiante suas reformas históricas, desmantelando anos de conquistas de direitos.

Com esse cenário, o país dá boas vindas a 2024.

 

Fonte: Brasil de Fato

 

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