segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Caso de justiceiros no Rio mostra que o sistema está falido: o estado desapareceu

Outubro de 1992. É véspera de eleições para prefeitura do Rio de Janeiro, e uma equipe de TV, que está na Pedra do Arpoador para registrar o pôr-do-sol, flagra um arrastão na praia. Como tudo que acontece no Rio em termos de segurança pública, a repercussão é nacional.

Os dois candidatos a prefeito falam sobre o assunto. Benedita da Silva, candidata do PT, atribui o arrastão a um problema social. Cesar Maia, farejando uma guinada do eleitorado para direita, propõe chamar tropas federais para resolver o problema. O Exército.

Como até hoje, a esquerda falava em prevenção, e a direita, em repressão. Os dois discursos apontavam para sentidos opostos, mas tinham um ponto convergente: incluíam o estado como um ator principal para trazer de volta a paz à sociedade. Ou desenvolvendo políticas sociais, como defendia Bendita, ou aumentando a repressão, como propunha Maia.

Trinta e um anos depois, no mesmo cenário, novas imagens sacodem o país. Desta vez, captadas por câmeras instaladas nas ruas e nos prédios (Brizola não poderia falar em armação da imprensa, como acusou em 1992). As cenas são de brutalidade gratuita e, portanto, assustadoras e chocantes.

Ao contrário de 1992, desta vez, políticos e o próprio poder estatal ficam em segundo plano. Uma brincadeira de mau gosto viralizou na internet. Anunciava luto pela morte do governador Cláudio Castro. Uma crítica macabra, mas compreensível, pelo fato de a autoridade máxima do estado ter sumido na crise.

A internet não expôs apenas a morte simbólica dos agentes políticos. Anunciou também a falência do próprio estado, já que a proposta para solucionar os assaltos violentos de 2023 é fazer justiça com as próprias mãos.

A imagem que rapidamente se espalhou pelos grupos de WhatsApp de moradores da Zona Sul mostrava dois tacos de beisebol e a inscrição "Zona Sul, acabou o amor". A proposta é a união de moradores para "caçar ladrões".

O fenômeno, que já foi registrado em 2015, não é exatamente uma novidade na Zona Sul do Rio de Janeiro. Novidade, agora, é a força que o discurso de que "não adianta prender" ganha força. Não adianta prender significa não adianta estado, não adianta a lei, não adianta a justiça. E o pior: esse discurso ganha força amparado por fatos.

Por exemplo, um dia antes de um fã da Taylor Swift ser morto a facadas, um dos suspeitos presos pelo crime havia sido detido por furtar 80 barras de chocolate de uma loja de departamentos. Ele passou por uma audiência de custódia no sábado à tarde e foi solto. Gabriel Mongenot Santana Milhomem Santos, de 25 anos, foi morto no domingo.

A juíza do caso determinou a liberdade provisória e a imposição de medidas cautelares, como a necessidade de comparecimento mensal em juízo e a proibição de frequentar a loja furtada. O outro detido já havia sido abordado 56 vezes por agentes do programa Segurança Presente de Copacabana.

Quando é fixado na mente da população a mensagem de que a polícia prende e a Justiça solta, abre-se a oportunidade de surgimento de outro tipo de barbaridade, que são esses grupos de justiceiros.

Já vimos em outras ocasiões a notícia de pessoas que procuram a ajuda de traficantes quando começam a presenciar aumento de roubos em certa localidade. Em 2005, o telefone grampeado do traficante Bem-Te-Vi mostrou uma ligação do goleiro da seleção brasileira, Julio Cesar, cobrando providência contra "moleques " que estavam roubando motoristas de carro perto da Rocinha.

Quando a população não procura a polícia, o Estado, isso mostra que o sistema está colapsado. Ninguém mais quer esperar as "medidas sociais" defendidas pela esquerda porque na segurança existe o dia seguinte, o amanhã.

A vida é para agora, e ninguém pode esperar mais duas décadas por um país menos desigual e mais justo desenhado pelos discursos políticos. Por outro lado, o discurso fácil da direita de "chamar o Exército" finalmente caiu no ridículo, depois de tantas operações desastrosas.

Como não existe vácuo em segurança pública, surgiu o taco de beisebol. Nem prevenção, nem repressão e muito menos o poder estatal. Os crimes gravados pelas câmeras em 2023 mostraram que o Brasil deu passos largos em direção à barbárie.

 

Ø  Violência privada de justiceiros não é a solução, diz especialista

 

O aumento da violência no Rio de Janeiro (RJ) tem chamado a atenção ao longo desta semana, após a divulgação de vídeos em que vários moradores do bairro de Copacabana aparecem sendo assaltados com violência, por um grupo de jovens menores de idade. 

Homens aparecem em grupo, uniformizados com roupas pretas, portando armas como soco-inglês, andando juntos pela região nobre do RJ , dizendo estar atrás dos infratores menores de idade que agrediram o empresário Marcelo Rubim Benchimol, no sábado (2), na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, quando ele tentou proteger a personal trainer Natália Silva. 

·        Risco para segurança pública

“A gente não soluciona um problema de natureza pública com a vingança privada”, argumenta a socióloga e coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, Cristina Neme.

Analisando o contexto, a especialista vê um risco de agravamento da violência em Copacabana com a ação desses ‘justiceiros’ . “Se por um lado há o problema dos assaltos, que é legítimo e a sociedade tem razão em sentir medo, por outro, uma reação desse tipo é bastante preocupante porque ela avança para a prática de um crime à medida que eles não tem autoridade para fazer isso.”

Na madrugada de quarta-feira (6), câmeras de segurança registraram a ação do grupo de ‘justiceiros’. Eles aparecem agredindo um jovem na Rua Djalma Ulrich, também em Copacabana. 

De acordo com o Código Penal Brasileiro, “fazer justiça com as próprias mãos" é crime previsto no artigo 345 e Cristina ressalta que a situação revela uma falência do Estado em promover políticas públicas eficientes.

·        Políticas públicas unificadas

“Segurança, assim como saúde e educação, é uma política pública. Não se resolve apenas com medidas de repressão e, especialmente no RJ, esse cenário está se agravando ao longo do tempo”, explica a socióloga, que também ressalta como desenvolver esse tipo de política pública direcionada à segurança é complexa e envolve articulação conjunta, não apenas repressão policial imediata.

 

Ø  Rio de Janeiro tem três chacinas por mês, revelam dados de plataforma inédita

 

Uma nova plataforma divulgada pelo Instituto Fogo Cruzado revelou que as chacinas policiais no Rio de Janeiro não são algo que ficou no passado, como as conhecidas chacinas da Candelária, Vigário Geral e Acari. Pelo contrário, elas são parte da política cotidiana de Estado.

Segundo dados levantados, de sete anos para cá, as chacinas ocorridas na região metropolitana da capital do Rio foram responsáveis pela morte de 1.137 civis. Em média, ocorreram três chacinas ao mês. Apesar das estatísticas assustadoras evidenciarem uma guerra diária permanentemente, por outro lado, há a percepção de que o estado brutal de violência não impacta mais a população.

Na avaliação de Maria Isabel Couto, uma das diretoras do Fogo Cruzado e doutora em sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o que leva a uma insensibilidade diante dos casos é a forma como a violência foi naturalizada pelo Estado. Por ser um problema tão recorrente, as pessoas passam a acreditar que a política de extermínio utilizada pelas forças policiais é algo natural.

No episódio 100 do podcast “Pauta Pública”, conversamos com a pesquisadora, que questiona a falta de dados produzidos pelo poder público e acusa que o Estado teme produzir evidências contra si mesmo. Para contornar a situação, ela orienta a articulação de entidades da sociedade civil com a gestão pública.

Em comemoração ao centésimo episódio, no último bloco do programa, Andrea Dip, Clarissa Levy e Ricardo Terto respondem mensagens enviadas pelos ouvintes e relembram as produções mais marcantes do ano.

>>>> Confira os principais pontos da entrevista:

·        Você poderia começar apresentando o que é esse novo projeto produzido pelo Instituto Fogo Cruzado a respeito de dados sobre chacinas policiais?

Antes de tudo, é importante saber que o Instituto Fogo Cruzado é uma organização da sociedade civil dedicada à produção cidadã de dados com atuação em quatro regiões metropolitanas, distribuídas em 57 cidades espalhadas pelos estados do Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Pará. Somos uma organização que acredita nos dados como o primeiro passo para mudar a realidade, porque se a gente não compreende o problema, não tem como agir sobre ele.

Infelizmente, até hoje, no campo da segurança pública, temos muito mais perguntas a fazer do que evidências. Por isso, esse ano, nossa equipe se dedicou a destacar algumas informações para ajudar a torná-las mais acessíveis na construção de políticas públicas. No meio do ano, lançamos uma plataforma chamada Futuro Exterminado, que apresenta dados sobre violência armada contra crianças e adolescentes espalhadas no Rio de Janeiro.

E agora, acabamos de lançar uma nova plataforma trazendo dados sobre chacinas policiais. O que nos motivou a construir isso foi que, de partida, a plataforma acabou revelando um número estarrecedor na quantidade de chacinas: no Rio de Janeiro, em média, foram registradas três chacinas policiais. Isso diz que esse não é o estado de um passado trágico que ficou para trás, como a chacina da Candelária, Vigário Geral e Acari. O Rio de Janeiro é o estado das chacinas cotidianas, deixando de ser a exceção para se transformar num instrumento de Estado.

E quando as chacinas policiais se transformam num instrumento do Estado de política pública, tem um indicativo que algo muito errado precisa ser revisto. Porque se o Estado não produz esses dados, é quase como se não produzisse evidências contra si. Por isso, a importância dessa plataforma para apresentar o impacto dessas violências na vida pessoal dos moradores da região metropolitana do Rio de Janeiro. Também para que todo mundo saiba que as chacinas policiais não são exceções, mas rotina. Os dados justamente nos alertam para que isso mude.

·        Uma coisa que chamou minha atenção nesse novo projeto é o índice de letalidade, ou seja, a proporção de mortes em cada operação. Dá para entender em que tipo de operação policial esse índice é maior, considerando diferentes contextos de abordagens e a quantidade de pessoas que acabam sendo mortas?

Quando a gente está falando de chacinas policiais nos referimos a episódios onde há três ou mais mortos numa mesma situação, que também se destacam de outros episódios de violência e operações policiais justamente pela alta letalidade. É o caso da Chacina do Jacarezinho, que ocorreu em 2021 e foi a maior chacina policial da história do Rio de Janeiro.

O caso, que teve um saldo de mais de 20 mortes, ajuda a entender que há uma virada de chave no comportamento das chacinas. Isso porque de 2019 para cá a gente deixa de ter só a recorrência de chacinas e passa a ter o que chamamos de mega chacinas, quando há oito ou mais mortos em uma operação, revelando o descontrole das nossas forças policiais nos anos recentes.

Outra coisa importante destacar é que a plataforma foi construída observando 283 chacinas que levaram a um total de 1.137 mortos. Se você divide um número pelo outro, há uma média de quatro mortos por chacina. Mas isso é a média e ela esconde nuances.

Uma delas é a unidade policial envolvida nas chacinas. Por exemplo, quando o BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais), unidade especializada da polícia militar e recordista na atuação em 34 chacinas, está envolvida, a média sobe para seis mortos por chacina policial. Quando a CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais), unidade especializada da polícia civil, que nem deveria estar fazendo operação, porque é uma polícia investigativa, está envolvida, a média sobe para sete. A gente está falando de unidades, que deveriam ser treinadas para salvaguardar a vida da população.

Além disso, dentre essas 283 chacinas, analisamos um tipo muito específico de chacina, que são as que acontecem em operações de vingança — termo que ficou conhecido pela população do Rio de Janeiro em operações que acontecem em sequência ou em razão da morte ou do ferimento grave de agentes de segurança.

E aí, o nome diz tudo. A gente não está falando de justiça, mas de vingança. Estamos falando de policiais extremamente estressados, porque perderam um dos seus, ou porque estão em vias de perder um dos seus, indo fazer operações para, supostamente, buscar e prender o suspeito. E aí, quando se compara as operações de vingança dentro das chacinas policiais, a letalidade aumenta 71%.

O número por si só comprova o erro das operações de vingança. Então, por que ainda o Governo do Estado deixa que policiais extremamente estressados vão às ruas, promover justiçamento e não justiça, colocando a população na linha de tiro?

·        De 2016 para cá, mais de 300 meninos ou meninas menores de 18 anos foram baleados em operações policiais no Rio de Janeiro. Um ou outro caso acabou ganhando os noticiários, como por exemplo, o caso do Marcos Vinícius, com aquela famosa imagem do uniforme escolar da rede municipal ensanguentada. Além dessas vítimas específicas que são atingidas por balas perdidas, o Instituto têm outros dados sobre o impacto causado pelas chacinas na vida da população?

Olha, uma das razões do Fogo Cruzado existir é justamente tentar entender o impacto da insegurança, da violência armada na vida das pessoas, para além da pessoa que é baleada. Porque quando a gente não tem informação sobre a violência armada, é muito fácil perder do horizonte o impacto que isso tem sobre a educação e a saúde psicológica das pessoas.

Por exemplo, um dos impactos que mapeamos é que cerca de 30% das escolas e creches localizadas na região metropolitana do Rio de Janeiro, registram anualmente pelo menos um tiroteio no entorno de 300 metros dessas unidades de ensino em dias letivos e no horário escolar. Em pelo menos um terço desses casos, vai ocorrer em ação e operação oficial. Ou seja, a violência armada afeta as unidades de ensino e 10% das unidades de saúde por conta dos tiroteios.

O que ocorre é que muitas vezes as forças policiais não cumprem os protocolos para promover segurança pública e acabam atrapalhando os serviços e atividades cotidianas dos moradores. Casos, por exemplo, como a Chacina do Jacarezinho, que são muito emblemáticos porque foram 10 horas de tiroteio. Isso representa que as pessoas não conseguem ir para a escola, ir ao trabalho, ou dar à luz, como já aconteceu.

Quando isso passa a fazer parte do cotidiano das pessoas, há um processo de naturalizar essas operações policiais que duram muitas horas, que terminam em muitos mortos. Como se fosse construído internamente dentro da gente essa insensibilidade para uma política que prega a segurança pública do confronto, que defende uma única forma de enfrentar a criminalidade urbana: colocando mais polícia na rua para trocar tiro com bandido.

E isso resulta na pessoa que marcou a consulta no posto de saúde e não consegue ir, na mãe que não consegue chegar no trabalho e vai perder o emprego, na criança que não consegue chegar na escola. As chacinas policiais são a ponta de um iceberg de uma política que está dando errado e que coloca a população todo dia na linha de tiro, e que atrapalha o desenvolvimento social e humano das pessoas e, consequentemente, das cidades.

·        Há guerras terríveis acontecendo hoje no mundo, e claro que geram muita comoção, não deveria ser de outro jeito. Mas por que você acha que essa guerra que temos no Brasil, essa matança enquanto política de Estado, parece não gerar a mesma comoção na sociedade?

Eu acho que tem dois elementos aqui que estão interligados: a naturalização ou a normalização da violência e a frequência cotidiana delas. E o caso das chacinas é muito emblemático para mostrar isso. São três chacinas policiais por mês. Isso deveria ser absurdo em qualquer lugar do mundo.

O Brasil já foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos por conta de duas chacinas ocorridas em na década de 1990, uma na favela de Nova Brasília e outra no Complexo do Alemão, ambas no Rio de Janeiro. Deveria ainda estar sendo condenado de novo pela recorrência de chacinas que temos hoje porque o STF já determinou que o Estado do Rio de Janeiro precisa produzir um plano de redução da letalidade policial. Porém, até agora não foi produzido plano algum, um desrespeito à corte mais alta do país.

Isso porque já virou rotina. Naturalizar faz parte para quem não sabe conviver com o tamanho do problema. Também não há como culpar a população que normaliza esse problema. É o Estado que não faz nada para resolver e nem estar interessado em combater.

Outro elemento que a gente tem aqui é que fica muito mais fácil naturalizar quando a gente não conhece o problema, quando não tem evidências que mostram o tamanho disso. E aí entra a discussão da importância da produção de dados na segurança pública porque publicamente não há transparência, nem produção de dados públicos, que ajudem a fazer um diagnóstico. O que há são autoridades públicas que dizem que conhecem o problema e as soluções, sem apresentar evidências, sem apresentar dados. E com a ausência de dados produzidos pelo poder público, dependemos da sociedade civil para produzir dados sobre o quanto de violência a ação policial produz, o quanto a ação policial ajuda a perpetuar a violência.

E é para isso que a plataforma de chacinas policiais foi pensada, para apresentar dados que venham justamente denunciar isso. Não só isso, mas problematizar a gestão da segurança pública no país. De forma nenhuma nosso papel é demonizar o policial que está nesse processo e também é vítima dele. O propósito é denunciar a própria ausência de dados.

E aí fica o questionamento. Se nós, uma organização da sociedade civil aprendeu a fazer o monitoramento sobre violência policial, por que as forças policiais não conseguem fazer isso? Não conseguem criar seus próprios indicadores ou apenas não querem?

Por isso, reforço que o nosso propósito com a divulgação da plataforma sobre chacinas policiais é tanto mostrar os números estarrecedores de violência quanto cobrar um posicionamento do Estado quanto ao combate disso. Porque a sociedade civil está fazendo a sua parte e quer colaborar com a gestão pública para que ela melhore. Então, vamos nos unir e produzir esses dados juntos?

 

Fonte: g1/iG/Jornal do Brasil

 

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