Caso de justiceiros no Rio mostra que o
sistema está falido: o estado desapareceu
Outubro de 1992. É véspera de eleições para
prefeitura do Rio de Janeiro, e uma equipe de TV, que
está na Pedra do Arpoador para registrar o pôr-do-sol, flagra um arrastão na
praia. Como tudo que acontece no Rio em termos de segurança pública, a
repercussão é nacional.
Os dois candidatos a prefeito falam sobre o
assunto. Benedita da Silva, candidata do PT, atribui o arrastão a um problema
social. Cesar Maia, farejando uma guinada do eleitorado para direita, propõe
chamar tropas federais para resolver o problema. O Exército.
Como até hoje, a esquerda falava em
prevenção, e a direita, em repressão. Os dois discursos apontavam para sentidos
opostos, mas tinham um ponto convergente: incluíam o estado como um ator
principal para trazer de volta a paz à sociedade. Ou desenvolvendo políticas
sociais, como defendia Bendita, ou aumentando a repressão, como propunha Maia.
Trinta e um anos depois, no mesmo cenário,
novas imagens sacodem o país. Desta vez, captadas por câmeras instaladas nas ruas e nos
prédios (Brizola não poderia falar em armação da imprensa, como acusou em
1992). As cenas são de brutalidade gratuita e, portanto, assustadoras e
chocantes.
Ao contrário de 1992, desta vez, políticos e
o próprio poder estatal ficam em segundo plano. Uma brincadeira de mau gosto
viralizou na internet. Anunciava luto pela morte do governador Cláudio Castro.
Uma crítica macabra, mas compreensível, pelo fato de a autoridade máxima do
estado ter sumido na crise.
A internet não expôs apenas a morte
simbólica dos agentes políticos. Anunciou também a falência do próprio estado,
já que a proposta para solucionar os assaltos violentos de 2023 é fazer justiça
com as próprias mãos.
A imagem que rapidamente se espalhou pelos
grupos de WhatsApp de moradores da Zona Sul mostrava dois tacos de beisebol e a
inscrição "Zona Sul, acabou o amor". A proposta é a união de
moradores para "caçar ladrões".
O fenômeno, que já foi registrado em 2015,
não é exatamente uma novidade na Zona Sul do Rio de Janeiro. Novidade, agora, é
a força que o discurso de que "não adianta prender" ganha força. Não
adianta prender significa não adianta estado, não adianta a lei, não adianta a
justiça. E o pior: esse discurso ganha força amparado por fatos.
Por exemplo, um dia antes de um fã da Taylor Swift ser morto a facadas, um dos suspeitos presos
pelo crime havia sido detido por furtar 80 barras de chocolate de uma loja de
departamentos. Ele passou por uma audiência de custódia no sábado à tarde e foi
solto. Gabriel Mongenot Santana Milhomem Santos, de 25 anos, foi morto no
domingo.
A juíza do caso determinou a liberdade
provisória e a imposição de medidas cautelares, como a necessidade de
comparecimento mensal em juízo e a proibição de frequentar a loja furtada. O
outro detido já havia sido abordado 56 vezes por agentes do programa Segurança
Presente de Copacabana.
Quando é fixado na mente da população a
mensagem de que a polícia prende e a Justiça solta, abre-se a oportunidade de
surgimento de outro tipo de barbaridade, que são esses grupos de justiceiros.
Já vimos em outras ocasiões a notícia de
pessoas que procuram a ajuda de traficantes quando começam a presenciar aumento
de roubos em certa localidade. Em 2005, o telefone grampeado do traficante
Bem-Te-Vi mostrou uma ligação do goleiro da seleção brasileira, Julio Cesar,
cobrando providência contra "moleques " que estavam roubando
motoristas de carro perto da Rocinha.
Quando a população não procura a polícia, o
Estado, isso mostra que o sistema está colapsado. Ninguém mais quer esperar as
"medidas sociais" defendidas pela esquerda porque na segurança existe
o dia seguinte, o amanhã.
A vida é para agora, e ninguém pode esperar
mais duas décadas por um país menos desigual e mais justo desenhado pelos
discursos políticos. Por outro lado, o discurso fácil da direita de
"chamar o Exército" finalmente caiu no ridículo, depois de tantas
operações desastrosas.
Como não existe vácuo em segurança pública,
surgiu o taco de beisebol. Nem prevenção, nem repressão e muito menos o poder
estatal. Os crimes gravados pelas câmeras em 2023 mostraram que o Brasil deu
passos largos em direção à barbárie.
Ø Violência privada de justiceiros não é a
solução, diz especialista
O aumento da violência no Rio de Janeiro
(RJ) tem chamado a atenção ao longo desta semana, após a divulgação de
vídeos em que vários moradores do bairro de Copacabana aparecem sendo
assaltados com violência, por um grupo de jovens menores de idade.
Homens aparecem em grupo, uniformizados com roupas pretas, portando
armas como soco-inglês, andando juntos pela região nobre do RJ , dizendo estar atrás
dos infratores menores de idade que agrediram o empresário Marcelo Rubim
Benchimol, no sábado (2), na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, quando ele
tentou proteger a personal trainer Natália Silva.
·
Risco para segurança pública
“A gente não soluciona um problema de
natureza pública com a vingança privada”, argumenta a socióloga e coordenadora
de projetos do Instituto Sou da Paz, Cristina Neme.
Analisando o contexto, a especialista vê um risco
de agravamento da violência em Copacabana com a ação desses ‘justiceiros’ . “Se por um lado há
o problema dos assaltos, que é legítimo e a sociedade tem razão em sentir medo,
por outro, uma reação desse tipo é bastante preocupante porque ela avança para
a prática de um crime à medida que eles não tem autoridade para fazer isso.”
De acordo com o Código Penal Brasileiro,
“fazer justiça com as próprias mãos" é crime previsto no artigo 345 e
Cristina ressalta que a situação revela uma falência do Estado em promover
políticas públicas eficientes.
·
Políticas públicas unificadas
“Segurança, assim como saúde e educação, é
uma política pública. Não se resolve apenas com medidas de repressão e,
especialmente no RJ, esse cenário está se agravando ao longo do tempo”, explica
a socióloga, que também ressalta como desenvolver esse tipo de política pública
direcionada à segurança é complexa e envolve articulação conjunta, não apenas
repressão policial imediata.
Ø
Rio de Janeiro tem três chacinas por mês, revelam dados de plataforma
inédita
Uma nova plataforma divulgada pelo Instituto
Fogo Cruzado revelou que as chacinas policiais no Rio de Janeiro não são algo
que ficou no passado, como as conhecidas chacinas da Candelária, Vigário Geral
e Acari. Pelo contrário, elas são parte da política cotidiana de Estado.
Segundo dados levantados, de sete anos para
cá, as chacinas ocorridas na região metropolitana da capital do Rio foram
responsáveis pela morte de 1.137 civis. Em média, ocorreram três chacinas ao
mês. Apesar das estatísticas assustadoras evidenciarem uma guerra diária
permanentemente, por outro lado, há a percepção de que o estado brutal de
violência não impacta mais a população.
Na avaliação de Maria Isabel Couto, uma das
diretoras do Fogo Cruzado e doutora em sociologia pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (Uerj), o que leva a uma insensibilidade diante dos casos é a
forma como a violência foi naturalizada pelo Estado. Por ser um problema tão
recorrente, as pessoas passam a acreditar que a política de extermínio
utilizada pelas forças policiais é algo natural.
No episódio 100 do podcast “Pauta Pública”,
conversamos com a pesquisadora, que questiona a falta de dados produzidos pelo
poder público e acusa que o Estado teme produzir evidências contra si mesmo.
Para contornar a situação, ela orienta a articulação de entidades da sociedade
civil com a gestão pública.
Em comemoração ao centésimo episódio, no
último bloco do programa, Andrea Dip, Clarissa Levy e Ricardo Terto respondem
mensagens enviadas pelos ouvintes e relembram as produções mais marcantes do
ano.
>>>> Confira os principais
pontos da entrevista:
·
Você poderia começar apresentando o que é esse novo projeto produzido
pelo Instituto Fogo Cruzado a respeito de dados sobre chacinas policiais?
Antes de tudo, é importante saber que o
Instituto Fogo Cruzado é uma organização da sociedade civil dedicada à produção
cidadã de dados com atuação em quatro regiões metropolitanas, distribuídas em
57 cidades espalhadas pelos estados do Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e
Pará. Somos uma organização que acredita nos dados como o primeiro passo para
mudar a realidade, porque se a gente não compreende o problema, não tem como
agir sobre ele.
Infelizmente, até hoje, no campo da
segurança pública, temos muito mais perguntas a fazer do que evidências. Por
isso, esse ano, nossa equipe se dedicou a destacar algumas informações para
ajudar a torná-las mais acessíveis na construção de políticas públicas. No meio
do ano, lançamos uma plataforma chamada Futuro Exterminado, que apresenta dados
sobre violência armada contra crianças e adolescentes espalhadas no Rio de
Janeiro.
E agora, acabamos de lançar uma nova
plataforma trazendo dados sobre chacinas policiais. O que nos motivou a
construir isso foi que, de partida, a plataforma acabou revelando um número
estarrecedor na quantidade de chacinas: no Rio de Janeiro, em média, foram
registradas três chacinas policiais. Isso diz que esse não é o estado de um
passado trágico que ficou para trás, como a chacina da Candelária, Vigário
Geral e Acari. O Rio de Janeiro é o estado das chacinas cotidianas, deixando de
ser a exceção para se transformar num instrumento de Estado.
E quando as chacinas policiais se
transformam num instrumento do Estado de política pública, tem um indicativo
que algo muito errado precisa ser revisto. Porque se o Estado não produz esses
dados, é quase como se não produzisse evidências contra si. Por isso, a
importância dessa plataforma para apresentar o impacto dessas violências na
vida pessoal dos moradores da região metropolitana do Rio de Janeiro. Também
para que todo mundo saiba que as chacinas policiais não são exceções, mas
rotina. Os dados justamente nos alertam para que isso mude.
·
Uma coisa que chamou minha atenção nesse novo projeto é o índice de
letalidade, ou seja, a proporção de mortes em cada operação. Dá para entender
em que tipo de operação policial esse índice é maior, considerando diferentes
contextos de abordagens e a quantidade de pessoas que acabam sendo mortas?
Quando a gente está falando de chacinas
policiais nos referimos a episódios onde há três ou mais mortos numa mesma
situação, que também se destacam de outros episódios de violência e operações
policiais justamente pela alta letalidade. É o caso da Chacina do Jacarezinho,
que ocorreu em 2021 e foi a maior chacina policial da história do Rio de
Janeiro.
O caso, que teve um saldo de mais de 20
mortes, ajuda a entender que há uma virada de chave no comportamento das
chacinas. Isso porque de 2019 para cá a gente deixa de ter só a recorrência de
chacinas e passa a ter o que chamamos de mega chacinas, quando há oito ou mais
mortos em uma operação, revelando o descontrole das nossas forças policiais nos
anos recentes.
Outra coisa importante destacar é que a
plataforma foi construída observando 283 chacinas que levaram a um total de
1.137 mortos. Se você divide um número pelo outro, há uma média de quatro
mortos por chacina. Mas isso é a média e ela esconde nuances.
Uma delas é a unidade policial envolvida nas
chacinas. Por exemplo, quando o BOPE (Batalhão de Operações Policiais
Especiais), unidade especializada da polícia militar e recordista na atuação em
34 chacinas, está envolvida, a média sobe para seis mortos por chacina
policial. Quando a CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais), unidade
especializada da polícia civil, que nem deveria estar fazendo operação, porque
é uma polícia investigativa, está envolvida, a média sobe para sete. A gente
está falando de unidades, que deveriam ser treinadas para salvaguardar a vida
da população.
Além disso, dentre essas 283 chacinas,
analisamos um tipo muito específico de chacina, que são as que acontecem em
operações de vingança — termo que ficou conhecido pela população do Rio de
Janeiro em operações que acontecem em sequência ou em razão da morte ou do
ferimento grave de agentes de segurança.
E aí, o nome diz tudo. A gente não está
falando de justiça, mas de vingança. Estamos falando de policiais extremamente
estressados, porque perderam um dos seus, ou porque estão em vias de perder um
dos seus, indo fazer operações para, supostamente, buscar e prender o suspeito.
E aí, quando se compara as operações de vingança dentro das chacinas policiais,
a letalidade aumenta 71%.
O número por si só comprova o erro das
operações de vingança. Então, por que ainda o Governo do Estado deixa que
policiais extremamente estressados vão às ruas, promover justiçamento e não
justiça, colocando a população na linha de tiro?
·
De 2016 para cá, mais de 300 meninos ou meninas menores de 18 anos foram
baleados em operações policiais no Rio de Janeiro. Um ou outro caso acabou
ganhando os noticiários, como por exemplo, o caso do Marcos Vinícius, com
aquela famosa imagem do uniforme escolar da rede municipal ensanguentada. Além
dessas vítimas específicas que são atingidas por balas perdidas, o Instituto
têm outros dados sobre o impacto causado pelas chacinas na vida da população?
Olha, uma das razões do Fogo Cruzado existir
é justamente tentar entender o impacto da insegurança, da violência armada na
vida das pessoas, para além da pessoa que é baleada. Porque quando a gente não
tem informação sobre a violência armada, é muito fácil perder do horizonte o
impacto que isso tem sobre a educação e a saúde psicológica das pessoas.
Por exemplo, um dos impactos que mapeamos é
que cerca de 30% das escolas e creches localizadas na região metropolitana do
Rio de Janeiro, registram anualmente pelo menos um tiroteio no entorno de 300
metros dessas unidades de ensino em dias letivos e no horário escolar. Em pelo
menos um terço desses casos, vai ocorrer em ação e operação oficial. Ou seja, a
violência armada afeta as unidades de ensino e 10% das unidades de saúde por
conta dos tiroteios.
O que ocorre é que muitas vezes as forças
policiais não cumprem os protocolos para promover segurança pública e acabam
atrapalhando os serviços e atividades cotidianas dos moradores. Casos, por
exemplo, como a Chacina do Jacarezinho, que são muito emblemáticos porque foram
10 horas de tiroteio. Isso representa que as pessoas não conseguem ir para a
escola, ir ao trabalho, ou dar à luz, como já aconteceu.
Quando isso passa a fazer parte do cotidiano
das pessoas, há um processo de naturalizar essas operações policiais que duram
muitas horas, que terminam em muitos mortos. Como se fosse construído
internamente dentro da gente essa insensibilidade para uma política que prega a
segurança pública do confronto, que defende uma única forma de enfrentar a
criminalidade urbana: colocando mais polícia na rua para trocar tiro com
bandido.
E isso resulta na pessoa que marcou a
consulta no posto de saúde e não consegue ir, na mãe que não consegue chegar no
trabalho e vai perder o emprego, na criança que não consegue chegar na escola.
As chacinas policiais são a ponta de um iceberg de uma política que está dando
errado e que coloca a população todo dia na linha de tiro, e que atrapalha o
desenvolvimento social e humano das pessoas e, consequentemente, das cidades.
·
Há guerras terríveis acontecendo hoje no mundo, e claro que geram muita
comoção, não deveria ser de outro jeito. Mas por que você acha que essa guerra
que temos no Brasil, essa matança enquanto política de Estado, parece não gerar
a mesma comoção na sociedade?
Eu acho que tem dois elementos aqui que
estão interligados: a naturalização ou a normalização da violência e a
frequência cotidiana delas. E o caso das chacinas é muito emblemático para
mostrar isso. São três chacinas policiais por mês. Isso deveria ser absurdo em
qualquer lugar do mundo.
O Brasil já foi condenado na Corte
Interamericana de Direitos Humanos por conta de duas chacinas ocorridas em na
década de 1990, uma na favela de Nova Brasília e outra no Complexo do Alemão,
ambas no Rio de Janeiro. Deveria ainda estar sendo condenado de novo pela
recorrência de chacinas que temos hoje porque o STF já determinou que o Estado
do Rio de Janeiro precisa produzir um plano de redução da letalidade policial.
Porém, até agora não foi produzido plano algum, um desrespeito à corte mais
alta do país.
Isso porque já virou rotina. Naturalizar faz
parte para quem não sabe conviver com o tamanho do problema. Também não há como
culpar a população que normaliza esse problema. É o Estado que não faz nada
para resolver e nem estar interessado em combater.
Outro elemento que a gente tem aqui é que
fica muito mais fácil naturalizar quando a gente não conhece o problema, quando
não tem evidências que mostram o tamanho disso. E aí entra a discussão da
importância da produção de dados na segurança pública porque publicamente não
há transparência, nem produção de dados públicos, que ajudem a fazer um
diagnóstico. O que há são autoridades públicas que dizem que conhecem o
problema e as soluções, sem apresentar evidências, sem apresentar dados. E com
a ausência de dados produzidos pelo poder público, dependemos da sociedade
civil para produzir dados sobre o quanto de violência a ação policial produz, o
quanto a ação policial ajuda a perpetuar a violência.
E é para isso que a plataforma de chacinas
policiais foi pensada, para apresentar dados que venham justamente denunciar
isso. Não só isso, mas problematizar a gestão da segurança pública no país. De
forma nenhuma nosso papel é demonizar o policial que está nesse processo e
também é vítima dele. O propósito é denunciar a própria ausência de dados.
E aí fica o questionamento. Se nós, uma
organização da sociedade civil aprendeu a fazer o monitoramento sobre violência
policial, por que as forças policiais não conseguem fazer isso? Não conseguem
criar seus próprios indicadores ou apenas não querem?
Por isso, reforço que o nosso propósito com
a divulgação da plataforma sobre chacinas policiais é tanto mostrar os números
estarrecedores de violência quanto cobrar um posicionamento do Estado quanto ao
combate disso. Porque a sociedade civil está fazendo a sua parte e quer
colaborar com a gestão pública para que ela melhore. Então, vamos nos unir e
produzir esses dados juntos?
Fonte: g1/iG/Jornal do Brasil
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