AGRONEGÓCIO VAI TE VENDER SOJA SEM AVISAR QUE TEVE DNA EDITADO
NO MÊS DE OUTUBRO deste ano, a Embrapa iniciou, em Londrina, no
Paraná, os primeiros testes de campo da soja tolerante à seca. A técnica de
modificação do grão é chamada Crispr e é feita por meio de edição
genética, alterando o DNA em um ponto específico. A ideia da empresa pública,
aliada à Corteva, gigante americana do agronegócio, é tornar as plantações de
soja resistentes às longas estiagens, intensificadas pelos desmatamentos do
próprio setor e sentidas nas altas
temperaturas que o país
vem enfrentando.
Mesmo tendo passado por modificação genética, essa soja foi
classificada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, a CTNBio, como
organismo não geneticamente modificado. Dessa forma, ela vai ser comercializada
como um produto convencional – o que a livra de ser submetida a critérios
técnicos previstos na Lei de Biossegurança, que enquadram, por exemplo, os
produtos transgênicos vendidos no supermercado.
Embora ambos produzam organismos modificados da sua condição natural, a
edição genética, enquanto técnica, é diferente da transgenia. Os produtos
transgênicos obrigatoriamente recebem genes de outros organismos para herdar
características do doador. Já a edição genética pode acontecer sem a inserção
de genes externos. No entanto, no entendimento de alguns pesquisadores, há
casos em que o grão é submetido a processos de transgenia combinado à edição
genética – a exemplo do que acontece com a soja tolerante à seca.
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Uma resolução
normativa da CTNBio, de 2018, pactua que no Brasil a modificação genética só
passa a ser considerada a partir da modificação do produto final. Ou seja, no
caso da soja testada
pela Embrapa, ela foi classificada como organismo não geneticamente
modificado.
No entanto, especialistas ouvidos pelo Intercept não
concordam com essa classificação, alertando para a ausência de pesquisas
garantindo que grãos editados geneticamente se comportem da mesma forma que
grãos convencionais. A pesquisadora sênior Sarah Agapito, do Norwegian Research Centre, instituto
mantido por quatro universidades e referência em biossegurança na
Noruega, assinou um parecer
técnico contestando essa decisão.
“Não existem pesquisas que comprovem que essas variedades editadas
geneticamente terão comportamentos iguais aos das variedades convencionais”,
explicou ao Intercept.
Hoje, o Brasil conta com 56
produtos de edição genética aprovados. Vale destacar que o parecer da
soja tolerante à seca não estava disponível no site da CNTBio quando
iniciamos a apuração desta reportagem. No dia 3 de novembro, recebemos o
arquivo por e-mail, após solicitação feita a membros da comissão. Nesta mesma
data, a lista foi atualizada, ganhando quase dez novos produtos.
Toda essa discussão técnica, na verdade, faz diferença na forma como o
consumidor brasileiro terá acesso a esses produtos, especialmente nas questões
de cuidado com a saúde humana e com o meio ambiente.
·
Soja alterada não vai passar pelos mesmos critérios
dos transgênicos
Livre de ser enquadrada na Lei da Biossegurança, a soja tolerante à seca
não vai ser submetida a dois importantes critérios de controle antes de chegar
em sua casa. São eles: análise de risco e rotulagem.
A análise de risco é uma das etapas de regulamentação de produtos
geneticamente modificados. Ela envolve uma série de pesquisas sobre possíveis
danos que esses produtos possam causar à saúde, a exemplo de reações alérgicas,
cujos sintomas podem surgir ao longo do tempo.
Como parte dessa análise, também é necessário conduzir um monitoramento
ambiental pós-comercialização, que serve para observar e criar condições de
ação imediata nos casos em que o Organismo Geneticamente Modificado, chamado de
OMG, possa apresentar impactos na interação com a fauna e a flora.
Já a rotulagem, hoje adotada com produtos que tenham mais de 1% de
transgênicos na composição, serve para garantir o direito do consumidor de
saber que está consumindo um produto geneticamente modificado. Se um produto de
edição genética chegar, hoje, na sua casa, não terá cumprido nenhum desses
ritos.
Criada em 2005, a lei orienta a regulamentação dos produtos
geneticamente modificados, tendo como referência o Protocolo
de Cartagena, um acordo sobre biossegurança, assinado por 171 países do mundo.
Embora seja signatário do acordo, o Brasil viola o protocolo, que recomenda a
adoção do princípio de precaução quando há ausência de certeza científica sobre
os efeitos que um organismo geneticamente modificado pode causar na saúde
humana e no meio ambiente.
Dessa forma, assegurar a informação no rótulo de que o produto é
geneticamente modificado, é garantir o direito à informação do consumidor,
possibilitando o direito de consumir ou não determinado produto.
·
Comissão de biossegurança tem afrouxado regras para
empresas
O biólogo José Maria Ferraz, ex-integrante da CTNBio, chama atenção para
outra questão envolvendo a soja tolerante à seca: o pouco tempo com que a
comissão nacional aprovou o produto.
Segundo o parecer técnico desse tipo de grão, a carta consulta,
documento apresentado pela Embrapa, solicitando a análise do produto pela
CTNBio, foi protocolada no dia 16 de fevereiro. O deferimento foi dado apenas
quinze dias depois.
“É uma loucura a velocidade com que isso foi aprovado. É segura essa
tecnologia? A CTNBio diz que sim, a Embrapa já tem uma outra soja para
desativar fatores desde 2015, mas ela não foi liberada até hoje. Por que? Qual
o motivo? Teve efeitos não esperados e evidentes?”, ponderou
A flexibilização de regras na CTNBio para facilitar a vida dessas
empresas, não é novidade, pontuou Ferraz. Inicialmente, com os transgênicos
haviam regras mais rígidas de segurança, a exemplo do monitoramento de campo,
que serve para identificar possíveis efeitos indesejados, ocorridos na
interação do organismo geneticamente modificado com a fauna e a flora
local.
Com o tempo, entretanto, a resolução normativa n. 32, em seu
artigo 18, possibilitou às empresas o direito de pedir a dispensa desse
monitoramento de campo. Mas esse não é o único exemplo que mostra como os
tempos são encurtados, quase sempre, para beneficiar as empresas. Nessa mesma
resolução, no artigo 14, passou a ser aprovada automaticamente as plantas que
acumulam mais de um evento transgênico no mesmo organismo – espécies que são
chamadas de piramidadas.
Essa técnica é usada para que a mesma planta receba genes diferentes
para resistir a pragas e herbicidas. A reação desse conjunto de eventos na
mesma planta não é avaliada, caso a CTNBio já tenha avaliado cada evento
individualmente.
De acordo com Ferraz, é possível fazer eventos piramidados usando a
Crispr. Isso quer dizer que essa mesma soja, já tolerante à seca, pode passar
por outra modificação genética para ganhar tolerância a algum tipo de
agrotóxico, por exemplo.
Com isso, a empresa vende o combo: o grão e ao mesmo tempo o agrotóxico.
Assim, o grão é vendido com a garantia de que aquele tipo de agrotóxico poderá
ser aplicado no cultivo, sem impedir o desenvolvimento do grão.
“Você acha que uma empresa, que já teve a sua tecnologia usada na soja
tolerante à seca, não vai querer colocar uma tolerância ao herbicida dela?
Então, o dilema moral e ético vai embora ”, questionou Ferraz.
·
Corteva ganhará royalty com venda de soja com
edição genética
Essa redução de custos e de tempo favorece as grandes corporações do
agronegócio. A Corteva, empresa de quem a Embrapa obteve licença para usar a
tecnologia Crispr na soja, é a detentora do maior número de patentes de edição
genética na agricultura do que qualquer outra no mundo. Os dados constam no
informativo Patentes
sobre edição de Genoma no Canadá, produzido pela Rede Canadense
de Ação em Biotecnologia.
A Corteva é uma grande empresa norte-americana do mercado global de
sementes, agrotóxicos e biotecnologia. Em 2019, ela se tornou uma companhia
independente, formada pela fusão das empresas Dow Agrosciences, DuPont e
Pioneer.
Segundo artigo publicado
na Associação das Empresas de Produtos Fitossanitários, o Brasil é o segundo
maior mercado da Corteva – ela tem participação em 57 CNPJs de estados em todas
as regiões do Brasil.
Chama a atenção que a Corteva já lidera as patentes de uma tecnologia
relativamente nova no mercado agrícola brasileiro. Levando em conta o número de
patentes registradas em nome das empresas que foram fundidas na criação dela,
ela é a segunda maior detentora de patentes de transgênicos no Brasil, perdendo
apenas para a Monsanto. Os dados estão disponíveis no site da
CTNBio.
De acordo com o informativo das patentes de edição genética, o uso para
fins de pesquisa é dispensado de royalties. No entanto, o uso com fins
comerciais está condicionado ao pagamento de licença. Identificamos dois
extratos de contrato firmados entre a Embrapa e a Pioneer, empresa que, hoje,
se fundiu à Corteva, para uso da Crispr em experimentos científicos.
O primeiro contrato teve o seu extrato publicado na seção
3, da edição 244 no Diário Oficial. O texto afirma que se trata de um acordo com o
objetivo de realizar “pesquisas e esforços conjuntos para a geração de
tecnologias de interesse comum”. O contrato, assinado em dezembro de 2018, tem
vigência de 20 anos.
Na edição do dia 29 de dezembro de 2021, do Diário
Oficial, encontramos outro contrato, também firmado entre Embrapa e Pioneer.
Esse acordo de colaboração geral é destinado ao uso da técnica de edição
genética na criação de linhagens de soja tolerante à seca. O documento fala de
um valor global de 25 mil
dólares – o que equivale a R$ 121,9 mil, em valores atuais.
Durante a conversa com o pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e
Biotecnologia e membro da Academia Brasileira de Ciência, Francisco Aragão,
perguntamos se esse valor de 25 mil dólares haviam sido pagos pela Embrapa à
Corteva na assinatura do contrato.
Ele afirmou “que esse é o valor inicial de discussão da tecnologia”. Em
seguida, explicou que o contrato em questão refere-se apenas à produção da soja
tolerante à seca, obtida com o uso da CRISPR.
Em outro momento da entrevista, Aragão afirma que “não viu esse contrato
[o da soja], por isso, não sabe explicar do que se trata esse valor [os 25 mil
dólares]”.
No entanto, ele lembrou que, uma vez a soja tolerante à seca se tornando
um produto, haverá um rateio de royalties, cujos valores serão calculados de
acordo com a contribuição de cada empresa para o evento.
Nós solicitamos, por e-mail, a cópia do contrato à Chefe Adjunta de
Transferência de Tecnologia da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia,
Márcia Onoyama e à assessoria de imprensa da Embrapa Soja. A chefe de
Transferência de Tecnologia recomendou que procurássemos a assessoria de
imprensa da Embrapa, o que já havíamos feito.
No e-mail enviado
a Onoyama fizemos várias perguntas sobre como funciona essa relação comercial
nesses acordos, mas ela justificou que não poderia compartilhar os documentos
por questões de sigilo. A assessoria de imprensa da Embrapa Soja também disse
que os contratos “se encontram sob o amparo da lei que trata da propriedade
industrial”.
A nota ainda afirma que os documentos ainda estão sob “sigilo previsto
da lei que trata de acesso à informação, as hipóteses de sigilo, de segredo de
justiça e segredo industrial.”
No entendimento dos pesquisadores, a Embrapa, detentora do maior acervo
de soja tropical do mundo, aplicou uma tecnologia da Corteva em uma das suas
variedades e gerou um produto que vai ser comercializado e cujos lucros serão
divididos com a própria Corteva.
“Nós estamos entregando o ouro [as variedade de sojas] às corporações. É
a Embrapa subjugada ao capital externo e à pesquisa dessas capitais”, destacou
Ferraz.
·
Sociedade civil cobra regulamentação de produtos
com edição genética
Entre o fim de junho e o início de julho deste ano, cidadãos que exercem
diferentes profissões e que possuem visões diversas sobre a técnica Crispr
cumpriram uma agenda de debates e reuniões para cobrar um debate democrático
sobre a regulação da edição genética no Brasil.
O movimento, ligado à inovação democrática, chama-se Assembleia
Cidadã Brasileira sobre Edição Genética. O grupo solicitou uma audiência
pública com os parlamentares do Congresso Nacional cobrando que o tema entre na
pauta do legislativo.
“Um dos resultados das discussões da assembleia foi a necessidade de
regulamentar melhor, com mais transparência, a edição genética”, explicou o
professor do departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal
de Minas Gerais e membro da Assembleia Cidadã, Yurij Castelfranchi.
Ao final dos quatro dias de atividade, foi produzida uma nota
técnica que trazia diversas recomendações. Entre elas, fomentar a transparência
na avaliação da edição genética, inclusive, envolvendo a participação pública
de atores sociais no processo.
Antes mesmo de qualquer uma dessas propostas se tornarem realidade, a
soja tolerante à seca chegou ao solo brasileiro. Castelfranchi, inclusive,
afirma ter ficado sabendo do início desses testes de campo, por meio da
reportagem do Intercept.
“O início de testes de campos [da soja] demonstra que esta escuta, o
diálogo com a população, é necessário e urgente”, afirmou.
Entusiastas do uso da edição genética na agricultura afirmam que a
tecnologia é o futuro. Inclusive propagam que a biotecnologia poderá ser
aplicada para tornar a agricultura
mais sustentável, e até produzir alimentos orgânicos mais saudáveis.
Para Ferraz, no entanto, a chegada dos produtos de edição genética, sem
que haja uma regulamentação rigorosa, envolvendo estudos sobre o impacto desses
produtos na saúde humana é um risco.
“Não há estudos amplos que mostrem a segurança. Quando era aprovado pela
Lei de Biossegurança, ao menos, se tinha algumas informações. Era possível
perceber, ainda que em pouco tempo, alguns efeitos nocivos destes produtos nos
testes. Mas, agora, há um apagão de dados”, afirmou.
Fonte: The Intercept
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