A perpetuação de imaginários islâmicos na cultura e os seus rebatimentos
no Brasil
Desembarquei em Murcia, na Espanha, em 2018, quando já havia escurecido.
A cidade, que não é muito grande, estava em polvorosa. Ao longo das ruas,
cavaleiros mascarados faziam algazarra cantando palavras de ordem, pareciam
batalhar uns contra os outros. Não posso negar que tudo aquilo me deixava, no
mínimo, apreensivo: o tradicional medo do desconhecido, somado a toda aquela
inesperada agitação noturna. Ao meu olhar desatento, submerso em ansiedade,
tudo aquilo parecia um pesadelo: a comoção geral quase me fazia acreditar que
aquela batalha, que me impedia de chegar ao hotel, era real. Meu pesadelo era,
na verdade, a Cavalhada, uma festa popular que também é comemorada
no Brasil, onde nasci.
A Cavalhada é uma festividade popular de cunho
dramático, com música e dança, comemorada sobretudo nas regiões Sul, Sudeste e
Centro-Oeste do Brasil. A festividade por vezes encena a batalha de Carlos
Magno e os doze pares de França, e revive os confrontos entre cristãos e mouros
no contexto de retomada dos territórios relativos à Península Ibérica ao
momento da expansão islâmica. Seus personagens e suas histórias são parte da
cultura popular brasileira e passaram a compor amplamente o imaginário
nacional. Tanto no que toca às Cavalhadas, em especial, mas também
em outras manifestações culturais populares, como as Congadas –
outra festividade popular de origem afro-brasileira –, as figuras do “mouro” e
do “turco” aparecem como personagens antagonistas aos heróis em questão.
A identificação mesclada entre “mouro” e “turco”, como acontece
nas Cavalhadas brasileiras, tem origens históricas e remonta,
segundo Ron Barkai, às sociedades vinculadas à Península Ibérica a partir
dos séculos XVI e XVII, o que poderia explicar sua repercussão no Brasil. Ambos
os termos eram utilizados em referência aos povos muçulmanos. Antes de tantos
eventos recentes que atribuiriam, mais uma vez, aos muçulmanos o papel de
inimigo comum, esses personagens já assumiam essa posição em nosso imaginário
coletivo há séculos. É importante refletir historicamente para entendermos como
essas representações alcançam o Brasil e se sedimentam em nossas compreensões
contemporâneas.
Na Europa, os povos muçulmanos já haviam passado por um amplo processo
de estereotipagem negativa justamente a partir dos séculos XVI e XVII. Em
1571, a chamada Batalha de
Lepanto, na Grécia, marcou, na Idade Moderna, o fim da expansão islâmica no
Mediterrâneo. Nessa batalha, o Império Otomano fora derrotado pela Liga Santa,
composta pelos Estados Pontifícios, a República de Veneza, os Cavaleiros de
Malta e o Reino da Espanha. Além do fim da expansão islâmica, a referida
batalha marcaria o ápice do anti-islamismo na Idade Moderna, e sua posterior
repercussão no Novo Mundo, no qual se inseria o Brasil. Edward Said nos
conta que, para a Europa, o Islã era um trauma duradouro, representava um
perigo constante. Esse medo, com o tempo, seria incorporado por essa mesma
civilização a seus saberes, seus grandes acontecimentos, passaria a ser algo
entrelaçado ao tecido da vida e, portanto, amplamente reproduzido.
No Brasil, o viés simbólico atribuído a esse imaginário não se
sustentaria somente por nossas relações específicas com os povos amalgamados
sobre a designação de “mouro”, que eram irrisórias até então. A hipótese que me
parece mais lógica, portanto, envolve noções de transculturação, segundo
designação do antropólogo Fernando Ortiz para o fenômeno de fusão e
convergência de culturas distintas. Isso porque as construções culturais
ibéricas envolvendo imaginários islâmicos têm raízes históricas que remontam desde
a Alta Idade Média, com a invasão muçulmana no território ibérico (711-713),
até a Idade Moderna (1453-1789). Um processo histórico tão extenso, com todas
as suas implicações, tem repercussão ampla e complexa no campo cultural,
fazendo com que referenciais anti-islâmicos sejam mapeados em objetos culturais
de origem ibérica, de forma diversa, até à contemporaneidade – a tradição
da Cavalhada é um exemplo. A compreensão da construção de um
imaginário islâmico no Brasil está, portanto, vinculada a outro processo que
perpassa toda a nossa identidade cultural e nacional: a colonização portuguesa.
Ao discutir o processo de colonização brasileiro alinhado com a
construção de um imaginário no Brasil, a pesquisadora Marlyse Meyer chama
atenção a uma particularidade importante: dado o modo de vida imposto ao
português em terras brasileiras, oposto ao modo tradicional de viver em sua
terra natal, a cultura popular do colonizador, aquela folclórica que já se
fragmentava no território da metrópole, no Brasil teria ganhado uma sobrevida.
Isso em decorrência das memórias, sensibilidades e hábitos que migraram junto
daqueles que vieram morar neste país. A persistência, no Brasil, de formas e
temas que remetiam às antigas tradições europeias é um traço notável de nossa
história cultural. O entendimento do referencial islâmico como “o inimigo”
seria mais uma particularidade imbuída à colônia por parte da metrópole.
A presença desse antigo referencial anti-islâmico no Brasil colonial não
surpreende, mesmo no presente. Pelo contrário, a aversão ao Islã e ao
muçulmano, o “mouro” de outrora, está ainda mais em voga na contemporaneidade.
Ademais, fica cada vez mais evidente que a estereotipagem negativa desses
povos, tanto no passado como no presente, é reflexo de uma relação de
influência estabelecida por uma parcela dominante que tem interesse na
manutenção desse imaginário, articulando a cultura como um recurso dessa influência.
A representação negativa do islamismo foi construída e perpetuada de forma
consistente e proposital no Ocidente como um todo, não sendo uma
particularidade do Brasil. Nunca foi tão claro como é agora, à luz do conflito
entre Israel e Palestina, que a articulação de referenciais de medo e ódio com
relação ao Islã e aos árabes é um “empreendimento de larga escala”.
A estereotipagem de povos árabes e muçulmanos recai em questões
geopolíticas que são pauta importante em 2023 e, apesar de raízes profundas na
longa-duração da história, tiveram um novo estopim com os ataques terroristas
de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos e a consequente política de
“Guerra ao Terror” conduzida pelo então governo de George W. Bush. Refletir
sobre questões como essa pode nos conduzir a um vislumbre do entendimento das
razões pelas quais esses imaginários são articulados, e a quais atores convêm a
manutenção dessas ideias. As particularidades se transformam, as dinâmicas se
alteram, mas o Oriente Médio é sempre alvo do interesse nesse jogo de poder
mundial, dentro do qual a manutenção de um imaginário vil atua como um coringa.
Se a Batalha de Lepanto marcou o ápice do anti-islamismo na Idade
Moderna, é seguro afirmar que o ataque às Torres Gêmeas e ao Pentágono, nos
Estados Unidos em 2001, e a posterior “Guerra ao Terror”, certamente configuram
um marco equivalente na consolidação desse imaginário no período contemporâneo.
A cobertura do atentado foi realizada ao vivo, para todo o mundo, com o ataque
e a posterior queda das torres em transmissão simultânea. Naquele momento, em
uma pequena cidade no interior do Brasil, eu tinha 5 anos e faltei à escola.
Com aquela idade, eu não entendia quem era Osama Bin Laden e o que exatamente
ele havia feito, mas a sua imagem ficaria marcada para sempre em minha memória:
as vestes brancas, a pele morena, a barba longa, o turbante. À luz de um mundo
que se globalizava e desfrutava dos primórdios da velocidade nos meios de
comunicação de informações, a repercussão e a difusão daquelas representações,
a partir daquele acontecimento, reverberaria em proporções até então
desconhecidas, o novo “inimigo comum” do mundo seria novamente temido até mesmo
em áreas cujo contato com povos muçulmanos era inexistente.
Avançamos para 2023, 452 anos depois da Batalha de Lepanto e 22 anos
após a queda das Torres Gêmeas: as consequências da repercussão desse
imaginário negativo ainda são catastróficas aos muçulmanos e aos árabes, e o
recente conflito entre Israel e Palestina tende a confirmar a manutenção desse
cenário. “Na demonização de um inimigo desconhecido, em relação ao qual a
etiqueta ‘terrorista’ serve ao propósito geral de manter as pessoas mobilizadas
e enraivecidas, as imagens da mídia atraem atenção excessiva e podem ser
exploradas em épocas de crise e insegurança”. Vale relembrar o caso dos
refugiados sírios, afegãos, iraquianos e a luta por asilo político em países
europeus, cuja postura resistente anunciava uma “crise humanitária de
imigração”, enquanto, apenas seis meses depois, os refugiados ucranianos eram
recebidos de braços abertos. Jeff Crisp, ex-diretor do Alto-Comissariado das
Nações Unidas, afirmou em entrevista que a Europa assumiu um duplo padrão no acolhimento de refugiados
porque os ucranianos “não são associados ao terrorismo”. O que reforça a tese
de que esses povos são os inimigos até mesmo quando são as vítimas.
É inevitável, a essa altura da discussão, estabelecer uma ligação com os
recentes eventos envolvendo o conflito entre Israel e Palestina. Imagens que
comparam manchetes e textos jornalísticos ganharam as redes ao apontarem, por
exemplo, como crianças judias “são brutalmente assassinadas” enquanto as
palestinas apenas “morrem”, ou como Israel foi “violentamente bombardeado”
enquanto a Palestina “sofre com a represália” de Israel. A guerra acontece, de
fato, em 2023, mas o território da Palestina é palco de conflitos desde a
guerra árabe-israelense em 1973, cujas raízes históricas são também profundas.
Não se trata essencialmente de assumir um lado – mas de reconhecer que há um
desequilíbrio nas narrativas.
***
A cultura é um instrumento de dominação social poderoso. Controlar as
rédeas da produção cultural, no passado ou no presente, permite a
articulação de uma série de narrativas que se infiltram na compreensão e na
leitura de mundo das pessoas. É uma dominação que beira o invisível, penetra em
camadas inconscientes. A construção do inimigo “mouro” no Brasil colonial,
assimilada por uma população composta, em grande medida, por povos indígenas e
africanos, articulou justamente o prisma cultural. A catequização jesuítica,
segundo José Rivair Macedo, associava os demônios indígenas às divindades
greco-romanas e, também, aos “monstros mouros”. Assim, as festividades
populares – retornando ao nosso ponto de partida – foram um importante
mecanismo cultural de dominação, utilizando representações islâmicas de forma
figurada, “(…) jogos, ficção, realidade, se confundem para dizer a mesma coisa:
o desejo de um mundo único que impõe seu molde com violência legitimada pelos
heróis que propõe como modelo”.
Essa leitura da festa no período colonial pode ser transposta ao momento
contemporâneo, alterando-se somente o produto de cultura articulado. Se, no
passado, a festa, a dança e a literatura eram os grandes instrumentos dessa
dominação; no presente, o cinema e a televisão, através do destaque mundial
adquirido pelas produções de Hollywood, assumem essa posição. São diversas as
representações negativas e/ou estereotipadas de povos islâmicos perpetuadas no
cinema. Um exemplo notável é Aladdin e a lâmpada maravilhosa (1992),
animação dos estúdios Disney inspirada no conto de mesmo nome de origem árabe,
transformada em live action em 2019, que reproduz uma série de
estereótipos grosseiros acerca de povos muçulmanos, conforme destaca Yusuf
Progler: “vilões que são feiticeiros em turbantes, haréns sensuais, banquetes
suntuosos, hordas de bandidos feios e gordos com espadas (prontos para cortar
as mãos de quem roubar pão), tapetes voadores, gênios em lâmpadas”, tudo
isso em contraponto à figura do herói, Aladdin, cujo comportamento se assemelha
mais a um jovem do subúrbio americano que, de fato, a um jovem árabe. Note que
essa é uma história voltada às crianças.
No Brasil, em uma perspectiva análoga, um marco na representação
muçulmana no país foi a novela O Clone, de Glória Perez, exibida
originalmente de outubro de 2001 a junho 2002 – grande sucesso de audiência
nacional e internacional, reexibida diversas vezes na televisão, sendo a mais
recente concluída em maio de 2022. A novela trouxe luz a essa cultura em um
momento delicado, posterior aos ataques terroristas de 2001, o que levou a uma
série de recusas por parte de diretores e atores, segundo relatou a própria
autora. A intenção teria sido positiva, e também a sua recepção: muito se
discutiu sobre essa cultura no Brasil, e os costumes retratados na novela
chegaram a cair no gosto dos brasileiros. A trama central, porém, girava em
torno da protagonista, Jade, e a sua não identificação com a “rígida” cultura
muçulmana. Se analisarmos os pormenores, podemos tecer uma crítica análoga
àquela feita por Yusuf Progler à Aladdin: o islamismo, no contexto da novela,
assume um papel de antagonista ante à carismática protagonista Jade, que é
tipicamente brasileira.
É preciso sempre ter em mente que nenhuma representação existe no
vácuo – as representações são articuladas e têm seus usos e propósitos
específicos. Diante de todo esse retrato traçado, toda uma cultura bem como uma
série de informações relevantes envolvendo o Islã e os muçulmanos são
arbitrariamente distorcidas. É importante refletir sobre como entendemos, no
Ocidente de forma geral, os povos muçulmanos por meio de “retratos” e
“representações” realizados também por ocidentais, enquanto muito pouco absorvemos
por meio de manifestações genuinamente árabes ou muçulmanas. “O Islã tornou-se
uma imagem”.
Hoje, na década de 2020 e no mundo globalizado de forma geral, o
reconhecimento e a difusão de informações ao redor dos povos muçulmanos,
envolvendo seus valores, suas experiências e sua humanidade, são amplamente
facilitados pelas mídias sociais. No Brasil, influenciadoras digitais
muçulmanas, como Hyatt Omar (@hyattomar) e Mariam Chami (@mariamchami_), têm ganhado cada vez mais espaço e visibilidade,
transformando amplamente as interpretações acerca do islamismo, difundindo e
desmistificando o cotidiano da religião. Em 2023, as influencers têm realizado
um trabalho importante, trazendo informações e uma abordagem contra-hegemônica
acerca do conflito entre Israel e Palestina. Hyatt Omar, que é palestina, tem
feito um extenso trabalho de cobertura e difusão de notícias a respeito da
guerra sob uma perspectiva palestina.
O Islã é, hoje, a segunda maior religião do mundo, algo em torno de 23%
da população mundial. Não trazer ao conhecimento essa imensa população
contribui, no mínimo, para a perpetuação de todos esses estereótipos vinculados
a um imaginário equivocado. É preciso falar sobre o Islã, assim como é urgente
a desconstrução desses retratos negativos que já perduram por séculos. O
desconhecimento promove o medo, e é também um recurso de dominação.
Abordar o viés negativo da presença muçulmana em manifestações culturais
brasileiras e práticas sociais tão diversas nos conduz a uma reflexão que é
tanto sobre nós e a nossa cultura, quanto sobre o outro. Questionar supostas
“verdades” há tanto consagradas é essencial, sobretudo à luz dos conflitos que
se desenrolam diante de nossos olhos. Sem a percepção do outro, um indivíduo
não pode se reconhecer. Não refletir sobre o outro e, portanto, sobre nós
mesmos, cria barreiras e entraves diversos que só acarretam um maior
distanciamento mútuo, até mesmo uma ruptura. A realidade corrente é prova
disso. É somente por meio da reflexão, do debate e do diálogo que esses ciclos
viciosos podem ser rompidos. Especialmente porque, seja no embate simbólico e
encenado, com europeus e “mouros” sobre seus cavalos, seja no embate real, na
Batalha de Lepanto, na Guerra ao Terror ou no conflito entre Israel e
Palestina… o inimigo sempre tem o mesmo rosto. Resta saber se, por entre os
reflexos desse intrincado jogo de espelhos, o verdadeiro inimigo é realmente
aquele que imaginamos ou se só estamos enxergando aqueles reflexos que nos
permitem ver.
Fonte: Por João Paulo Campos Peixoto, Le Monde
Nenhum comentário:
Postar um comentário