terça-feira, 7 de novembro de 2023

Venda, mercado e doação órgãos: O debate inusitado que Javier Milei incitou na Argentina

Não é um tema que esteja em sua plataforma política ou agenda pública, mas o candidato populista de direita nas eleições presidenciais argentinas, Javier Milei, e seus apoiadores insistem em discutir e gerar polêmica: o “mercado” de órgãos.

Depois de Milei ter afirmado em 2022 que a venda de órgãos “era apenas mais um mercado”, e insistido no assunto durante a campanha eleitoral, seus apoiadores voltam à briga. Dessa vez foi Diana Mondino, representante eleita pelo seu partido, La Libertad Avanza, e que é mencionada como possível chanceler de um eventual governo Milei.

Em entrevista televisiva, ela quis esclarecer a posição dos libertários sobre o assunto e restabeleceu a polêmica.

“O que se falou é do mercado de órgãos, que é algo radicalmente diferente da venda de órgãos”, disse Mondino.

Na Argentina, a venda de órgãos é proibida e, graças a uma lei aprovada em 2018, qualquer pessoa com mais de 18 anos pode ser doadora de órgãos ou tecidos, salvo indicação expressa em contrário.

Além disso, existe uma lista de espera única em todo o país para cada tipo de órgão, controlada e supervisionada pelo Instituto Nacional Central Único de Ablação e Coordenação de Implantes (Incucai), e a distribuição e alocação de órgãos e tecidos é feita por meio de um sistema de computador baseado em critérios médicos pré-estabelecidos que levam em consideração principalmente a gravidade do paciente, a compatibilidade entre doador e receptor e o tempo de espera em lista de espera.

Segundo estatísticas do Incucai, há atualmente mais de 7 mil pessoas na lista de espera por um órgão e 2,8 mil por córneas.

Em 2022, o número de transplantes cresceu 24% em relação a 2021 e a Argentina voltou aos níveis pré-pandemia: 4.024 pacientes em lista de espera receberam transplante de órgão e córnea.

Da mesma forma, após a implementação do Plano Nacional de Córnea, os transplantes de córnea aumentaram 42% em 2022 em comparação com o ano anterior, e todos os pacientes pediátricos que estavam na lista de espera receberam um transplante.

Embora a América Latina esteja longe dos líderes mundiais neste assunto (Estados Unidos e Espanha), a Argentina, juntamente com o Brasil, é a líder da região em número de doadores, segundo o Registro Internacional de Doações e Transplantes.

Mas em contraste com o sistema atual, Mondino continuou com a sua explicação: “O que é o mercado de órgãos? Você precisa de um rim e não há ninguém em seu círculo íntimo que seja compatível com você ou que possa ou queira doá-lo para você, mas então, talvez, haja alguém do outro lado que seja compatível com outro que seja compatível com outro que é compatível com você.”

Porém, para o exemplo que Mondino utilizou, já existe um programa oficial específico desde 2017.

O “Programa de Doação Cruzada de Rim” abre a possibilidade de transplante renal nos casos em que não há compatibilidade entre doador e receptor e envolve várias pessoas: trata-se de uma troca de doadores entre receptores que possuem doadores vivos, mas que não são compatíveis. Assim, os pacientes que necessitam de transplante recebem um órgão de uma pessoa com quem não têm parentesco.

Foi esse sistema que possibilitou, por exemplo, ao jornalista Jorge Lanata receber um rim da mãe de um jovem doente, enquanto seu filho recebeu um rim da então esposa de Lanata, Sara Stewart Brown.

No entanto, como esse procedimento específico foi anterior à implementação deste programa e ainda não foi regulamentado, exigiu uma autorização judicial prevista na lei em vigor para situações particulares, o que, entre outras coisas, procura confirmar que se trata de um ato altruísta e não não há nenhum tipo de comércio.

Mondino também afirmou que “há um homem que ganhou o Prémio Nobel por isto: Alvin Roth”.

No entanto, apesar de ter recebido esse prêmio em 2012, a União Europeia, que já tinha realizado transplantes cruzados, vetou uma proposta em 2018 que procurava iniciar uma cadeia internacional de transplantes renais cruzados entre países ricos e pobres porque “tem o potencial para infringir o princípio fundamental do não pagamento por órgãos humanos.”

Para o chefe da Organização Nacional de Transplantes da Espanha, país líder no assunto, seria “uma nova forma de tráfico de órgãos”.

·         O que Milei tinha dito

Em 2022, Milei disse a Lanata que a venda de órgãos era “só mais um mercado” e questionou “por que tudo tem que ser regulamentado pelo Estado”.

“Como vou organizar o corpo de outra pessoa, como vou decidir o que ela pode ou não fazer? Quem decidiu lhe vender o órgão, como isso afetou a vida de outras pessoas? Como isso afetou a propriedade de outros? Como isso afetou a liberdade dos outros?”

Depois, em maio de 2023, voltou ao assunto e, embora evitasse se manifestar a favor da venda de órgãos, sustentou: “Há algo que não está funcionando bem”, porque existem “mais de 350 mil potenciais doadores por lei” e “7.500 pessoas que aguardam transplantes”.

“Há algo que não funciona no meio e que gera muita corrupção”, argumentou, embora não tenha explicado como esse problema seria resolvido. “Isso envolve as garras do Estado”.

Incucai respondeu com um comunicado em que afirmava que Milei desconhecia o funcionamento do sistema e defendia a sua transparência, destacando que o instituto foi escolhido pela Organização Mundial da Saúde como um dos três centros colaboradores nesta área no mundo.

Além disso, lembrou que qualquer pessoa que tenha conhecimento de ato ilícito ligado à doação e transplante pode denunciá-lo, mas que sendo representante do Poder Legislativo – Milei é deputado – “tem a obrigação de fazê-lo”, disse o Instituto.

 

Ø  Filho de general da ditadura, defensor de rompimento com Vaticano; quem são os eleitos do grupo de Milei ao Congresso

 

Além da ida do oposicionista Javier Milei para o segundo turno das eleições presidenciais na Argentina, os libertários do partido Liberdade Avança conseguiram se transformar em terceira força política na Câmara e no Senado.

O movimento de Milei saiu de uma bancada mínima — apenas três parlamentares — no Congresso para ter 38 deputados e oito senadores. Ficará atrás, na nova legislatura, do União pela Pátria (de Sergio Massa) e do Juntos pela Mudança (coalizão liderada por Patricia Bullrich).

Os grupos de Massa e de Bullrich, no entanto, diminuíram sensivelmente de tamanho. Na Câmara, o União pela Pátria caiu de 118 para 108 deputados e o Juntos pela Mudança saiu de 118 para 93 representantes.

Entre os eleitos do Liberdade Avança há perfis bastante polêmicos: o filho de um repressor da ditadura militar condenado por tortura, a maquiadora de Milei, um economista que propôs romper as relações da Argentina com o Vaticano.

Eleito pela província de Tucumán (noroeste do país), Ricardo Bussi é filho do general argentino Antonio Bussi. Morto em 2011, ele foi um dos símbolos da repressão na ditadura argentina (1976-1983) e responsável por 30 centros clandestinos de detenção de presos políticos. O general foi condenado por sequestro, tortura e assassinato no regime militar.

Lilia Lemoine, que assumirá uma cadeira na Câmara pela província de Buenos Aires, é fotógrafa e celebridade no mundo cosplay (pessoas que se fantasiam, com acessórios, representando um personagem). Ela é maquiadora do candidato presidencial que se apresenta como “anarcocapitalista”.

Lemoine prometeu que apresentará, no começo da nova legislatura, um projeto de lei para permitir a “renúncia da paternidade” pelos homens. “Não é justo que um homem tenha que sustentar economicamente uma criança até os 18 anos quando não quer tê-la”, afirmou a deputada eleita.

Em uma entrevista, ela explicou como pretende encaminhar sua proposta: a lei estabeleceria que uma mulher, ao saber da gravidez, teria 15 dias para notificar o pai — que “poderia decidir se quer reconhecer o filho ou não”.

Outro vitorioso nas eleições parlamentares foi o economista Alberto Benegas Lynch, de 83 anos, que propôs o rompimento dos laços diplomáticos entre a Argentina e o Vaticano por causa do “espírito totalitário” do Papa Francisco.

Lynch defendeu essa ideia no encerramento da campanha de Milei no primeiro turno, um evento que reuniu milhares de pessoas na Movistar Arena, o espaço mais moderno de espetáculos e competições esportivas indoor de Buenos Aires.

O próprio Milei, em entrevista recente ao jornalista americano Tucker Carlson (ex-âncora da Fox News), criticou o pontífice: “[Ele] tem afinidade por comunistas assassinos. De fato, não os condena e é bastante condescendente também com a ditadura venezuelana. É condescendente com todos da esquerda, ainda que sejam verdadeiros assassinos”.

O partido Liberdade Avança elegeu ainda nomes como Martín Menem, sobrinho do ex-presidente Carlos Menem, para a Câmara e Juan Carlos Pagotto, advogado defensor de militares condenados por crimes de lesa-humanidade na ditadura, para o Senado.

 

Ø  As mulheres trans torturadas pela ditadura na Argentina

 

Os testemunhos dos sobreviventes serviram para demonstrar a perseguição sistemática contra as mulheres trans.

Diferentes organizações de direitos humanos indicam que cerca de 400 pessoas da comunidade LGTBQ+ foram vítimas da repressão militar.

Mas quando foram presos, nem todos sabiam que eram vítimas do aparelho repressivo militar. Muitos pensaram que se tratava apenas de mais uma costumeira operação da polícia.

“Me forçaram a entrar num carro e me levaram para este lugar, que só pude reconhecer muitos anos depois, quando o vi em uma das transmissões do Juicio de las Juntas”, diz González, referindo-se ao processo judicial que começou em 1985 por ordem do presidente Raúl Alfonsín contra os membros das três primeiras Juntas Militares.

Depois de apagar o enésimo cigarro durante nossa conversa, González volta a mencionar uma lembrança que repetiu ao longo de sua história:

“A imagem que mais fica comigo é que quando cheguei tinha uma menina sozinha, como se tivesse levado uma surra, num canto. Ela tinha uma expressão como se tivesse sido abandonada ali.”

·         “Não tínhamos outra opção senão a prostituição"

“Eles nos perseguiram para nos disciplinar por causa de nossa identidade. Éramos uma praga que precisava ser exterminada", disse à BBC Mundo Carla Fabiana Gutiérrez, detida no Poço de Banfield, uma das principais prisões e centros de tortura da ditadura argentina, em 1978.

Gutiérrez fala comigo em italiano. Ela pensa que a contactei por meio de um meio de comunicação local em Milão, onde vive há vários anos, mas depois descobre que falo espanhol.

Peço que ela fale sobre o que aconteceu no Poço de Banfield e ele concorda imediatamente. Em qualquer idioma.

"Claro. Quero falar por todas aquelas pessoas que gritaram ‘Chega, por favor, não faça isso de novo!’ e deixar claro o que os torturadores que viveram impunes todos esses anos fizeram”, afirma.

Gutiérrez nasceu no bairro de Mataderos, sudoeste da capital argentina. Ela sempre se sentiu uma mulher.

“Eu tinha 15 anos quando conheci uma mulher trans e sabia que queria ser como ela.”

Há um ponto em que as histórias de todas as sobreviventes da ditadura se encontram: todas tiveram que se dedicar à prostituição “porque não tínhamos outra opção de conseguir dinheiro”.

Carla começou a trabalhar à noite, assim como Julieta.

“Eu queria fazer o que faziam as mulheres trans, que eram muito poucas e não as chamávamos assim. Naquela época só existiam homens e mulheres. E gays, mas eu não queria ser gay. Eu queria ser mulher”, diz Gutiérrez.

Então ocorreu o golpe de estado de março de 1976.

“A polícia estava nos perseguindo o tempo todo. Mas quando nos pegaram naquele momento em que (os militares) chegaram ao poder foi diferente”, diz González.

“Eu tinha 14 ou 15 anos. Tiraram os sapatos que eu estava calçando, me deixaram meio nu, para comer tive que perguntar se tinham sobras e pagar pela comida. O pagamento esperado por eles era com sexo”, lembra Gutiérrez.

"Eu não entendi nada. Foi a primeira vez que alguém me bateu. Eles me humilharam durante todo o tempo que estive lá e eu não sabia por quê.”

·         Limpar poças de sangue

Os depoimentos perante o tribunal ocorreram em abril passado.

Estas mulheres puderam testemunhar no âmbito do julgamento das chamadas “brigadas”, que eram os comandos policiais que geriam os centros clandestinos de detenção, tortura e extermínio conhecidos como Inferno (localizados em Lanús, no sul da zona suburbana de Buenos Aires), Poço de Quilmes e Poço de Banfield (nas cidades de mesmo nome, também no sul).

Tanto Julieta como Carla estiveram presas neste último.

Centros de detenção clandestinos foram usados ​​pelos comandos militares e policiais argentinos para deter, torturar e desaparecer dezenas de milhares de pessoas (estima-se que até 30 mil, segundo organizações de direitos humanos) em meio a uma repressão feroz.

O que ficou conhecido como Poço de Banfield era um prédio localizado dentro da Brigada de Investigação Policial, que funcionava na cidade de Banfield.

González lembra do lugar pelas janelas.

“Tinha janelas enormes que nos faziam limpar quase todos os dias. Não me esqueço mais delas, até porque via por ali chegarem os carros que levavam as pessoas para o centro e os soldados dentro deles.”

Em conversa com a BBC Mundo, ela lembra do inferno a que a submeteram: “Eles me estupraram diversas vezes. Ouvi pessoas gritarem, limpei poças de sangue nos veículos que as levavam a esses centros. Ouvi bebês nascendo.”

Gutiérrez lembra que quando os superiores iam embora e só permaneciam os oficiais de nível médio, eles a tiravam de sua cela e a forçavam a ter relações sexuais.

“É horrível quando alguém te força a fazer algo que você não quer. Mas não foi isso. Eram os gritos, constantes. Logo percebemos que eles estavam fazendo coisas horríveis com as pessoas que estavam lá. Até hoje ainda ouço esses gritos.”

Posteriormente, ela percebeu que não só pessoas eram torturadas naquele local, mas algo mais grave estava acontecendo. Tudo aconteceu quando recebeu ordens para limpar um carro usado pelos militares.

“O que tive que limpar foram poças de sangue que estavam no chão do carro. Não eram manchas secas, o sangue era abundante e fresco”, afirma.

·         Construir memória

Tanto González como Gutiérrez não passaram mais de um mês no centro clandestino de Banfield, mas nunca entenderam por que foram levadas para aquele local.

Em dezembro de 1983, Raúl Alfonsín foi empossado como presidente eleito da Argentina, marcando o fim do regime militar.

Além de todos os processos de reparação e memória que se iniciaram a partir daquele momento, o movimento trans iniciou um em especial: a criação de um arquivo onde pudessem ser registradas as atividades que mulheres trans haviam desenvolvido ao longo da história para o reconhecimento de sua identidade.

Muitas pessoas passaram a fornecer documentos, fotos, testemunhos do que sofreram, tanto nos governos militares como na democracia.

“Há alguns anos, no meio desse processo, contei o que havia acontecido no Poço de Banfield e alguém que me ouviu me chamou para testemunhar no julgamento que estava sendo realizado contra aqueles que dirigiam esses lugares”, diz Gutiérrez.

O depoimento ajudou a reafirmar a identidade dos perpetradores e a constatar que ali nasceram vários meninos ou meninas, dos quais nada mais se ouviu falar.

A expectativa é que em breve seja determinada uma sentença para os responsáveis.

“Muitas coisas aconteceram naquele lugar e precisamos falar sobre isso como foi: uma violação, um ataque direto à nossa dignidade e à das pessoas que não estão mais aqui”, finaliza.

 

Fonte: CNN Brasil/BBC News Brasil

 

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