sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Por defender a Amazônia, ela foi ameaçada de ser queimada viva

Ivete Bastos, 56 anos, é presidenta do Sindicato de Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém, no Pará. Sua vida é dedicada à Amazônia. Motivo pelo qual ela não vê, ao menos por ora, a possibilidade de se aposentar. “A nossa Amazônia está muito devastada, essa é a verdade. Então, ao mesmo tempo que a gente pensa que, ao chegar a uma certa idade, outros estarão à frente levando a bandeira, por outro lado, a única alternativa é somar forças”, diz ela.

Ivete Bastos nasceu na comunidade Dourado, no distrito de Arapixuna, que hoje faz parte do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Lago Grande, em Santarém, criado em 2005: “A gente chama de assentamento, porque esse é o nome que o governo deu. Somos uma comunidade tradicional. Nós somos filhos da terra, da floresta, da água. Nós pertencemos a esse território.”

Sua luta pela floresta colocou um alvo em suas costas. E mesmo assim ela diz que não vai esconder o rosto. Ivete já foi ameaçada de morte pelo papel que tem desempenhado à frente do sindicato desde os 30 anos, quando assumiu o posto pela primeira vez.

Ela diz que na ocasião a luta era outra: o corte de madeira na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns. Situada nos municípios de Santarém e Aveiro, a reserva possui cerca de 650 mil hectares e é uma das mais populosas do país, com aproximadamente 5 mil famílias distribuídas em mais de 70 comunidades e aldeias indígenas.

 “Apesar de tudo, nesta época não havia tantos conflitos como vemos hoje com a chegada da soja em Santarém, no final da década de 1990. Hoje, são várias comunidades espalhadas por Santarém vivendo inúmeros conflitos”, afirma a ativista.

Amiga de Dorothy Stang, ativista assassinada em Anapu em fevereiro de 2005, e, também, do casal de defensores de direitos humanos Maria do Espírito Santo e José Claudio da Silva, assassinados em maio de 2011, em Nova Ipixuna, Ivete se vê entre a angústia de ter o mesmo destino de seus amigos e a necessidade de lutar pela Amazônia.

 “Parece que a gente vai junto [com a pessoa que morreu]. Passa um dia e a gente fica doente, acamado. No psicológico parece que serei a próxima [a morrer]. Ainda mais sabendo que o meu nome ‘está na lista’ daqueles que querem meu silêncio. É tanto defensor da floresta mutilado porque recebeu um tiro. Àqueles que sofrem represálias como eu, que já fui tirada de dentro de casa e tentaram queimar onde eu vivia”, conta a agricultora. “Não importa quem tenha morrido. Pode ser alguém que eu nunca vi, eu sofro como se eu conhecesse. Ninguém merece perder a sua vida porque defende uma causa tão importante. A floresta não serve só para mim e àqueles que apoiam a nossa luta. Ela serve pra todo mundo. E são poucos os que enxergam que ela é tão importante”, enfatiza.

Ivete conta que já foi ameaçada de ser queimada viva. Já ofereceram a ela suborno – “com um capanga armado ao lado” – para que se afastasse de seu cargo no sindicato, que atua na defesa de direitos de agricultores familiares, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas. Contudo, afirma: “isso é inegociável”. Lutar pelo direito de quem vive na Amazônia custou a ela a tranquilidade de um lar, uma vez que as ameaças a obrigaram a mudar de casa inúmeras vezes. E também a condenou a viver longe de sua família por um tempo.

De 2007 a 2017, Ivete esteve sob o regime de proteção policial. Apesar de o Ministério Público ter determinado o retorno da escolta, a defensora optou por abrir mão do programa e voltou a morar em seu território e a trabalhar na lavoura e no extrativismo. “O psicológico fica muito abalado, e começava uma sensação de que nunca mais eu teria liberdade. Foi um desgaste na minha vida ter que ficar longe dos meus filhos. Eu não cantei parabéns para a minha filha quando ela fez 15 anos. Eu já tive que tirar todo mundo de perto de mim. Eu fiz uma escolha que custou e me custa caro até hoje”, desabafa.

•        Monocultura de soja

Em Santarém, a monocultura de soja se alastrou no Planalto Santareno, conforme reportou a Agência Pública. A região também é constituída por outros dois municípios: Belterra e Mojuí dos Campos. Desde que a fronteira foi aberta para o plantio de soja na região, no final da década de 1990, houve uma perda de 24 mil hectares de floresta amazônica para a monocultura, de acordo com dados do MapBiomas referentes aos anos 2000 a 2021. A instituição mapeia a cobertura e o uso da terra no Brasil e monitora as mudanças do território.

 “No início, a gente não tinha ideia do que era soja. Víamos a soja numa lata de óleo, destas que a gente consome. Era essa a compreensão que a gente tinha”, conta Ivete. “Então ela chega no nosso município e começa a arrasar com as nossas vidas. É nesta hora que a gente se dá conta do que é tudo isso”, desabafa.

Comunidades tradicionais e indígenas que vivem no Planalto Santareno estão sendo intoxicadas por agrotóxicos utilizados na soja, além de sofrerem com os igarapés poluídos e com perda de plantações, seja pela falta de terra ou pelo veneno que se espalha sobre o plantio agrofamiliar. E é a essa questão que Ivete se refere ao dizer que a vida das pessoas está sendo arrasada. “A soja destruiu muitas comunidades e derrubou a floresta. Ela também diminuiu a nossa produção agrofamiliar e assoreou nossos igarapés. A [monocultura da] soja, para nós, é a cultura da morte”, afirma a agricultora.

Apesar do choro e da perda, a sindicalista e agricultora diz que a força para a luta se estabelece na lembrança do esforço daqueles que já “tombaram” por proteger a Amazônia. “Quando estou com muita dor, aflita, pensando em meus irmãos e irmãs que estão lá em áreas de conflito, eu chamo a irmã Dorothy, dona Maria, o Chico Mendes e tantos outros que já lutaram pela floresta e por quem vive nela. Eles estão aqui. Não é possível que eles não estejam aqui olhando e nos encorajando a ter fé e esperança para continuar na batalha.” E conclui: “Todos deveriam entender que a floresta é um lugar de paz e equilíbrio”.

 

Ø  Incra estabelece diálogo sobre regularização fundiária de quilombolas

 

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) criou, nesta quarta-feira (1º), a Mesa Nacional de Acompanhamento da Política de Regularização Fundiária Quilombola para estabelecer diálogo entre o governo federal e a sociedade civil organizada. O espaço estratégico foi estabelecido por meio de uma portaria publicada no Diário Oficial da União.

O objetivo da medida é acompanhar e buscar soluções para os processos relativos à população quilombola, que tratem do direito de uso e posse de terra, do acesso às políticas públicas para a permanência nos territórios e à assistência técnica, crédito e infraestrutura produtiva. O Incra também busca integrar as ações federais às iniciativas nas superintendências estaduais e municipais, visando o reconhecimento de agricultores familiares remanescentes de quilombo como beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária.

No dia 20 de novembro, completa duas décadas do Decreto nº 4.887/2003 que regulamentou os processos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes quilombolas. Foi nessa ato que o cumprimento do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que reconhece a propriedade das terras ocupadas por essa população, foi atribuído ao Incra.

Em vinte anos de decreto, também cresceu a tensão e disputa pelas terras tradicionalmente ocupadas por remanescentes quilombolas, mas ainda não tituladas. A busca por soluções, prevenção e gestão dos conflitos nos territórios quilombolas também será objeto dos diálogos entre os órgãos de instituições públicas e privadas e os movimentos representativos dessa população.

As Diretorias de Governança Fundiária e de Desenvolvimento e Consolidação de Projetos de Assentamentos do Incra serão responsáveis por conduzir os encontros da mesa, a cada quatro meses. A atividade também deverá acontecer nas superintendências regionais, com o objetivo de estabelecer mesas de diálogo, nos mesmos moldes da nacional, para acompanhamento das demandas locais.

 

Ø  Projeto promove reconhecimento da medicina indígena no Brasil

 

O Instituto Leônidas & Maria Deane (Fiocruz Amazônia), a Associação Rede Unida e a Rede Unida Itália lideram, no Brasil, um movimento nacional pelo reconhecimento da medicina indígena como um sistema de saúde, que há milênios atende e cura povos indígenas. As diferentes medicinas indígenas ainda permanecem vivas e ativas em diferentes territórios brasileiros, sem muito apoio das políticas públicas. A proposta do movimento que envolve especialistas, pesquisadores indígenas e não-indígenas, movimentos sociais é que as medicinas indígenas, como parte dos conhecimentos e saberes dos povos tradicionais indígenas sejam reconhecidas como efetivamente uma medicina e façam parte da rede de cuidados do Sistema Único de Saúde (SUS), não só para povos indígenas como também aos “brancos”, que precisarem de cuidados para diversos tipos de doenças.

O projeto Sonhação, como é chamada a iniciativa desenvolvida em parceria pela Fiocruz, a Rede Unida e outras instituições do Brasil e da Itália, trouxe para Manaus um grupo de pajés, conhecidos como especialistas da medicina indígena, para participar do Fórum de Medicina Indígena dentro do 6º Encontro da Regional Norte da Rede Unida, que ocorreu entre os dias 18 e 21 de outubro, em Manaus. Um grupo do projeto vindo da Itália também participou do Fórum, juntamente com representantes dos estados do Amazonas, Pará, Maranhão, Espírito Santo e Rio Grande do Norte. Durante dois dias, no Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, localizado no Centro de Manaus, foram realizadas discussões em torno dos métodos utilizados pela Medicina Indígena. Há um diálogo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, para que as medicinas indígenas façam parte das práticas de saúde nos territórios indígenas do país.

“Entendemos a medicina indígena como a arte da cura e quando falamos de arte de cura reconhecemos que todos os povos têm suas práticas de cuidado com a saúde e cura. O que queremos é mudar o conceito. Ao invés de medicina tradicional ou medicina alternativa ou milenar, termos a medicina indígena, porque ela é um sistema, tem instituição de ensino, que submete o especialista a passar por um processo próprio de formação e aprendizagem, tem as suas tecnologias, então não tem como dizer que não é medicina”, explica o antropólogo João Paulo de Lima Barreto, da etnia Tukano, fundador do Centro de Medicina Indígena, em 2009.

Autor de tese premiada pela Capes em 2022, Paulo observa que a partir das vivências de cuidados prestados por especialistas indígenas nos seus territórios é possível fazer a conexão com a medicina ocidental. No Centro de Medicina Indígena, fundado em 2009, já foram atendidas mais de 12 mil pessoas, a maioria não indígena, tendo como carro-chefe o atendimento com o pajé, chamado de Kumu. “O atendimento é feito de imediato e muita gente vem de fora. A consulta é seguida de tratamento, sem distinção de gênero nem idade”, afirma Potira Sakuena, da etnia Baré.

“Estamos recebendo nesta oportunidade todas as pessoas que compõem o projeto Sonhação, que é um termo de cooperação entre Brasil e Italia, que permite um intercâmbio entre os dois países. Nós estivemos na Itália para conhecer o sistema de saúde em cidades italianas e agora o grupo, tanto do Brasil, quanto da Itália, veio para Manaus para essa discussão acerca das medicinas indígenas”, explica Potira. Segundo ela, as medicinas indígenas são discutidas a partir das vivências de cada território e dos especialistas “que nos ensinam e são nossos doutores e doutoras”, comenta. “Nos dois dias do evento, trabalhamos diferentes conceitos, começando pela comida que para nós também é parte do sistema de saúde, também é um cuidado de saúde. Trouxemos os especialistas e as especialistas de vários lugares, tikunas de Tabatinga, yanomamis de São Gabriel da Cachoeira e os Arautés de Altamira (PA), pela primeira vez, além de parteiras do Baixo Tapajós, para esse diálogo e para que a pudéssemos entender o que é saúde a partir desses lugares”, comenta Potira.

·         Cuidado coletivo

Na medicina indígena, o cuidado de saúde não está preso a padrões de gêneros. “Cuidado de saúde para nós, povos indígenas, é um cuidado coletivo, que considera o processo de formação e acolhimento de mulheres e homens, com proteção, promoção, prevenção, cura e tratamento. Aqui, no Centro de Medicina Indígena, não olhamos gênero, cuidamos de pessoas, cuidamos dos corpos”, afirmou a representante Baré, reforçando que o Centro de Medicina Indígena é a consolidação de um sonho que virou uma ação. Potira, juntamente com o pesquisador da Fiocruz Amazônia, Júlio César Schweickardt e João Paulo de Lima Barreto participam de um grupo de trabalho da Sesai, composto por especialistas tanto da Academia quanto dos territórios indígenas para a construção de uma câmara técnica, para aprofundar a discussão acerca desse acolhimento pelo SUS.

Júlio César Schweickardt lembra que o temário central do 6º Encontro Norte da Rede Unida foi Florestania: descolonizar, respeitar, reconhecer e aprender com as práticas de cuidado na Amazônia, exatamente com a finalidade de propor espaços de discussão, articulação e produção científica compartilhada em torno de temas como o da medicina dos povos da floresta, políticas de saúde e educação, projetos participativos que envolvem as instituições de ensino, sistema de saúde e movimentos sociais no âmbito local, regional e nacional.

·         Caminhos

“O Encontro de Medicina Indígena, com os pajés de vários territórios, faz parte do projeto Sonhação, e depois de cursos e formações realizadas, estamos entrando com a etapa da vivência com pajés tikuna, ianomâmis, uaretés. A ideia é fazer escutas sobre como eles pensam saúde, como se formam e qual a metodologia que utilizam. Ficarmos escutando os caminhos de como fazem saúde em cada território nos leva a entender que essas várias medicinas estão atuantes, são vivas, e elas acontecem no dia-a-dia das comunidades, e as políticas públicas não podem ignorar isso nem achar que isso não existe”, salienta Schweickardt, acrescentando que a luta do movimento político junto à SESAI é para que as medicinas indígenas possam ter um espaço de direito e de atuação junto às equipes. A causa já é defendida nos 34 Diseis do País.

Presente no encontro, o pajé tikuna Oscar Angelo Guilherme, vindo do Alto Solimões, conta que pela primeira vez participa de um evento com pajés e parteiras. “Muito bom ver o resultado do que queremos tornar-se realidade. As autoridades já sabem tudo e junto com Sesai vão melhorar as condições de trabalho para nós. Não ganhamos nada, não temos salário e isso é muito triste para todo mundo”, afirma o pajé.

 

Fonte: Por Leandro Barbosa, da Agencia Pública/Agencia Brasil/Fiocruz AM

 

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