quinta-feira, 2 de novembro de 2023

‘Máfia da tora’ fala em importar rifle dos EUA para matar policiais em terra indígena no Pará

Áudios obtidos pela Repórter Brasil e atribuídos a um grupo de WhatsApp chamado “Máfia da Tora” revelam dois homens conversando sobre a compra de armas que seriam usadas contra agentes da Força Nacional e de outros órgãos envolvidos na desintrusão (retirada dos ocupantes irregulares) da Terra Indígena Apyterewa, no Sul do Pará.

Desde 02 de outubro, uma megaoperação autorizada pela Justiça Federal e confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) tenta retomar a área destinada ao povo Parakanã, no município de São Félix do Xingu. Invadida por madeireiros e pecuaristas, a Apyterewa foi o território indígena mais desmatado do país durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A expulsão dos ocupantes irregulares e das 60 mil cabeças de gado vem gerando reações de lideranças políticas e econômicas locais.

No grupo de Whatsapp, formado por 225 pessoas ligadas ao comércio de madeira de diferentes estados da região Norte, dois homens conversam sobre a aquisição de armamento para atirar contra os agentes. “A vontade que dá é estar bem localizado com uma [arma] 357, entendeu, catar um por um e dar na cabeça, um satanás desse aí”, afirma um deles.

“Esses caras não têm respeito com ninguém, não, rapaz, esse bando de vagabundo. Na hora que morrer uns dez, aprendem a tratar os outros. A 100 metros de distância, uma 357 boa, eu não erro a cabeça de uma peste dessa…”, prossegue.

Ao comentar a declaração, um segundo homem, que afirma estar nos Estados Unidos, cita um rifle conhecido como “Predator 308” – modelo que, em suas palavras, “já resolvia bem o problema aí”.

“Vou mandar um vídeo aí de um rifle que tem aqui nos Estados Unidos, o 308. Aí no Brasil tem também, mas ele é caro demais. Já resolvia bem o problema aí. Observa o tiro desse rifle para você ver”, afirma, enviando na sequência um vídeo no qual um caçador dispara um tiro contra a cabeça de um veado, no meio da vegetação.

A mensagem é seguida por uma discussão sobre a diferença de preço do produto no Brasil e nos Estados Unidos. O segundo homem afirma que, enquanto a arma custaria cerca de US$ 600 em solo americano, no Brasil seria vendida por aproximadamente R$ 23 mil. Em resposta, o primeiro homem pede ao colega que “embale” um rifle e envie ao Brasil.

“Embala um bicho desse aí, bem embaladinho. Nós temos aqui uma carabina 22, descascada por baixo, de tesoura. Veio daí… O cara colocou dentro de uma caixa de guitarra, embrulhou bem. Veio parar aqui no Brasil, pelo Correio. Podia mandar no meu endereço… que não dá nada, não”, declara ele, acrescentando ainda que a arma não poderia ser registrada, para evitar problemas com fiscalização.

Após a troca de mensagens, uma terceira pessoa comenta o assunto e afirma que o Paraguai pode ser uma opção de destino para adquirir a arma. Ela também ensina como seria possível produzir uma bomba caseira com o uso de explosivos e um cano de PVC, para ser lançada contra as forças policiais.

A Repórter Brasil questionou o comando da operação de desintrusão da Terra Indígena Apyterewa sobre as ameaças. Até o fechamento, não houve resposta – o texto será atualizado, caso seja enviado um posicionamento.

·         Morte durante a operação

As forças policiais se dividem em duas bases da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) localizadas no interior da Terra Indígena Apyterewa. O maior foco de tensão é a Vila Renascer, comunidade formada por 210 famílias.

Há duas semanas, a Força Nacional assumiu a responsabilidade pela morte de Oseias dos Santos Ribeiro, atingido por um tiro de fuzil. Segundo o comando da operação, a vítima teria tentado desarmar um policial. O episódio representou o pico de tensão da operação e levou à intensificação do lobby de políticos regionais para a paralisação da retomada do território Parakanã.

Apesar da pressão, os políticos não obtiveram sucesso. O Ministério Público Federal (MPF) pediu o afastamento do prefeito de São Félix do Xingu, João Cléber (MDB). Segundo os procuradores, ele estaria divulgando notícias falsas sobre a paralisação da operação e descumprindo determinações legais para a desintrusão.

O MPF também propôs 31 ações criminais e 17 ações civis públicas contra os pecuaristas instalados na Apyterewa. O MPF pede o pagamento de R$ 76,7 milhões, a título de ressarcimento dos ganhos financeiros obtidos com a comercialização do rebanho irregular e de indenizações por danos morais coletivos.

Nesta terça-feira (31/10), encerrou-se o prazo para que os pecuaristas retirassem o gado do território indígena. Antes do início da operação, a estimativa era de que 60 mil cabeças de gado estivessem pastando na área demarcada para o povo Parakanã.

·         Gado ilegal abastece grandes frigoríficos

Em 2020, uma investigação da Repórter Brasil mostrou que o gado criado em fazendas localizadas dentro da Apyterewa abasteceu frigoríficos de grande porte, como a Marfrig, e abatedouros regionais, como Frigol e Mercúrio. A prática, no entanto, não cessou. Em 2022, outra investigação da Repórter Brasil revelou que os invasores da terra indígena forneciam gado indiretamente para a JBS.

A equipe da Repórter Brasil acompanhou os primeiros dias da operação, registrando os momentos de tensão e a retirada do gado. Foram 14 caminhões carregados de bois saindo da terra indígena apenas na segunda-feira (30), segundo o boletim divulgado pela operação.

Situada no sudoeste do Pará, a TI Apyterewa é alvo de madeireiros, grileiros, pecuaristas e garimpeiros ilegais e já perdeu 106.000 hectares de floresta desde a sua criação, em 2007, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Dos 773 mil hectares da TI, cerca de 14% do total já foram desmatados. Mais da metade da destruição ocorreu nos últimos quatro anos, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Um levantamento do MapBiomas, a pedido da Repórter Brasil, aponta que aproximadamente 98% da floresta destruída na área deu lugar a pastagens para criação de bovinos.

Além de agentes da Força Nacional, a desintrusão da Terra Indígena Apyterewa conta com a participação de servidores da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e da Polícia Federal.

 

Ø  Organizações indígenas e indigenistas enviam ‘Chamado para uma ação urgente’ aos presidentes dos países amazônicos

 

“A Amazônia, nosso lar ancestral, enfrenta uma seca sem precedentes que ameaça nossa subsistência e o equilíbrio ambiental global”. Assim começa o “Chamado para uma Ação Urgente” elaborado por organizações indígenas, indigenistas e socioambientais latino-americanas e encaminhado aos nove chefes de estado que compõem a Amazônia – Brasil, Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa. O documento encaminhado na última sexta-feira (27) também foi endereçado à Secretaria Geral da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA).

A elaboração do chamado se dá em meio a situação de seca extrema que se abateu sob a Amazônia e suas populações este ano. As medidas paliativas e assistencialistas têm se mostrado insuficientes para enfrentamento da situação e exige uma visão mais ampla e articulada para ações contundentes e resolutivas.

No documento, as organizações alertam que a Amazônia está desidratada, que o “ponto de virada” chegou e que “os governos da Amazônia devem assumir a liderança em ações articuladas”. Elas advertem ainda para importância de se tomar medidas imediatas para conter os avanços devastadores das mudanças climáticas e para insistente implantação de projetos desenvolvimentistas em locais socio ambientalmente vulneráveis. As organizações também indicam medidas de soluções específicas para resolver os problemas.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Norte I é signatário do Chamado. A instituição, vinculada à Igreja Católica, comparte da visão do Papa Francisco expressa na Carta Encíclica Laudato si’, publicada há oito anos, e na recente Laudate Deum. Nas cartas, a Igreja mostra profunda preocupação com o cuidado da nossa Casa Comum e com o atual momento em que o mundo enfrenta as mudanças climáticas.

“As mudanças climáticas são um problema global com graves implicações ambientais, sociais, económicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade”, afirma o Papa na carta da Laudato si’.

Na Laudate Deum, publicada em 04 de outubro deste ano, o pontífice discorre sobre as mudanças climáticas e a extrema urgência da humanidade mudar seu comportamento diante da natureza, pois no mundo todo, em todos os biomas e ecossistemas, e especialmente na PanAmazônia, os sinais dessas mudanças estão cada vez mais evidentes.

“Nos últimos anos, temos assistido a fenômenos extremos, a períodos frequentes de calor anormal, com secas históricas como a que sofremos neste ano, assim como enchentes mais extremas ano a ano”, alerta no documento.

As ameaças e os riscos de morte em decorrência dos impactos das mudanças climáticas se intensificam a cada ano, afetando diretamente a vida de famílias de todo o mundo, especialmente da Amazônia. “Não há dúvida que o impacto da mudança climática prejudicará cada vez mais a vida de muitas pessoas e famílias. Sentiremos os seus efeitos em termos de saúde, emprego, acesso aos recursos, habitação, migrações forçadas e em outros âmbitos”, alerta o Papa, na Laudate Deum.

Num mundo degradado pelas potências mundiais, por um poder que em tudo vê apenas dinheiro, Laudate Deum nos faz lembrar que somos parte dessa natureza, não estamos fora dela, mas pertencemos a ela e com ela devemos nos harmonizar.

“Contrariamente a esse paradigma tecnocrático, afirmamos que o mundo que nos rodeia não é um objeto de exploração, utilização desenfreada, ambição sem limites. Nem sequer podemos considerar a natureza como uma mera ‘moldura’ onde desenvolvemos a nossa vida e os nossos projetos, porque estamos incluídos nela, somos parte dela”, evoca Papa Francisco na Laudate Deum.

A PanAmazônia com sua floresta ainda em pé, mas correndo sérios riscos de desaparecer, é um espaço chave para a conservação da vida do planeta. No Brasil, o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 2022 aponta que só no Amazonas estão 28,98% da população indígena do país.

Nesse sentido de pertencimento, de integração, de vida em sinergia com os seres pertencente à natureza, o Cimi destaca o papel dos povos indígenas como guardiões não mais dos recursos naturais, mas dos bens comuns que a natureza nos proporciona.

“A vida, a inteligência e a liberdade do homem estão inseridas na natureza que enriquece o nosso planeta, fazem parte das suas forças internas e do seu equilíbrio. Por conseguinte, um ambiente saudável é também o produto da interação humana com o meio ambiente, como sucede nas culturas indígenas e aconteceu durante séculos em várias regiões da terra”, enaltece o documento.

O grande problema atual é que o paradigma tecnocrático destruiu a ancestral relação saudável e harmoniosa de interação dos sistemas naturais «com os sistemas sociais», como bem vivenciam os povos indígenas, alerta Francisco. Porém, não é apenas dos indígenas a responsabilidade do cuidado com a Casa Comum. Essa é uma responsabilidade de todos, mas especialmente dos chefes de estado e parlamentos que conduzem as políticas que definem as formas de usufruto ambiental, se serão protetivas ou destrutivas.

O caminho apontado por Laudate Deum é de “responder aos novos desafios e reagir com mecanismos globais aos desafios ambientais, sanitários, culturais e sociais, sobretudo para consolidar o respeito dos direitos humanos mais elementares, dos direitos sociais e do cuidado da casa comum. Trata-se de estabelecer regras universais e eficazes para garantir esta proteção mundial”.

Essa é uma necessidade emergencial a ser estabelecida na Amazônia, um dos mais importantes biomas mundiais, o qual abriga a maior biodiversidade do planeta e que está relacionado aos regimes de chuva em todo o continente.

Este ano, assistimos diariamente pelos meios de comunicação os efeitos e consequências da pior e mais alarmante seca já vista em toda a região amazônica e essa situação traz a necessidade de buscar soluções universais em termos de regras e leis – e fiscalização – que protejam incondicionalmente o vasto e complexo território amazônico e suas vidas.

A lógica do capital estabelecida para a região com os projetos desenvolvimentistas é a principal ameaça ao equilíbrio da complexidade amazônica. Por isso, e por ser um bioma compartilhado por nove países – Brasil, Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa – regras universais de proteção devem ser organizadas e implementadas por todos.

É preciso que os nove países, organizados na OTCA, trabalhem juntos, assumindo a liderança e o protagonismo de ações para frear o processo de destruição estabelecido na Amazônia, pelas empresas que a pretendem explorar sem qualquer responsabilidade. É preciso que atuem colocando as populações que ali vivem no centro das prioridades e não mais no lucro da exploração desenfreada.

Que tracem e implementem o mais urgente possível um plano de ação integrado, com metas e objetivos claros e firmes. Enquanto sociedade civil, as organizações que assinam o “Chamado para uma Ação Urgente” se comprometem a agir integrados na cobrança e contribuição com os estados na “Conversão Ecológica Integral”, em consonância com o Papa Francisco e a Igreja.

 

Fonte: Reporter Brasil/Cimi

 

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