quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Jeferson Miola: Lições do déficit zero

Quando apresentada, a proposta de déficit zero para o orçamento de 2024 foi muito combatida dentro e fora do governo. A ministra Simone Tebet e o presidente Lula entendiam que apesar de servir como calmante para o deus-mercado, a proposta seria irrealista e arriscada para o governo.

No debate público, muitas vozes também questionaram o objetivo do ministro Fernando Haddad. Alertavam que poderia se tornar uma arapuca, deixando o governo obrigado a praticar uma austeridade severa, com corte de gastos sociais e dos investimentos essenciais.

Com o agravante disso acontecer no ano das eleições municipais mais relevantes e decisivas da história do Brasil no enfrentamento ao fascismo e à extrema-direita [artigos A armadilha do arcabouço, de 13/4 e A armadilha do déficit zero, de 5/9].

Apesar da contrariedade do próprio Presidente da República, prevaleceu, entretanto, a meta defendida pelo ministro da Fazenda. Haddad tinha como um dos pressupostos para sustentar sua posição a expectativa –duvidosa, no mínimo– de que a Câmara eliminaria os “ralos fiscais” ampliados sobremaneira com o golpe de 2016.

Tratam-se de regalias tributárias pelas quais um punhado de indivíduos e famílias ricas, bem como empresas e grandes conglomerados econômicos se apropriam indecentemente de centenas de bilhões de reais do orçamento público ano após ano.

Uma rotina secular de pilhagem que não será mudada sem mudança na correlação de forças no Congresso. O simulacro de taxação de milionários e bilionários pela Câmara deve ter desfeito a ilusão do Haddad em conter o que ele chama “erosão tributária”.

Depois que Lula conheceu os números da Fazenda que confirmam a impossibilidade de se zerar o déficit em 2024, ele reagiu [27/10]: “Eu não vou estabelecer uma meta que me obrigue a começar o ano fazendo corte de bilhões nas obras que são prioritárias para este país”. E acrescentou: “E se o Brasil tiver déficit de 0,5%, de 0,25%, o que é [que acontece]? Nada!”.

Haddad se recusa a mudar de rota mesmo conhecendo o irrealismo do seu objetivo. “A minha meta está estabelecida. Não mudei de ideia, continuo com a mesma ideia, porque acredito que vai ser o melhor para o país. Agora, eu preciso de apoio político”, disse.

Importante destacar a ênfase de Haddad no emprego reiterado da primeira pessoa do singular – “minha meta”, não a meta do governo; “[eu] continuo com a mesma ideia”; “[eu] acredito que vai ser o melhor para o país”. “Eu”, e não o governo Lula, “preciso de apoio político” …

O governo agora projeta um déficit de 0,5%. Com isso, se desviará da armadilha criada por um dogma neoliberal que não é obedecido por nenhum país do G20. A imprensa noticia, porém, que a mudança ainda não tem “a chancela de Haddad”.

Mudando a política fiscal que engessaria seu governo em pleno ano eleitoral, Lula antecipou para o presente as críticas, ataques e prejuízos políticos que o desgastariam durante a eleição.

Esta crise será muito proveitosa se, além de evitar a armadilha do déficit zero, o governo também souber tirar lições sobre os limites do seu processo de decisão – isolado, com baixa capacidade de escuta externa e opção pelo não-enfrentamento de conflitos, mesmo em questões cruciais para a governabilidade e para a democracia como as finanças, os militares e outras questões.

Voltando 11 meses no tempo até regressar ao período de transição, é possível se relembrar as escolhas equivocadas que levaram ao impasse atual do governo. Na campanha, Lula anunciou a revogação do Teto de Gastos. Com o estouro do Teto em quase R$ 800 bilhões pelo desastroso governo fascista-militar, os neoliberais perderam legitimidade e credibilidade para impor qualquer substituto fiscal.

Apesar disso, contudo, na discussão da PEC da Transição o governo eleito inexplicavelmente se comprometeu a apresentar até agosto de 2023 uma proposta de nova âncora fiscal – mesmo sem necessidade e desperdiçando a enorme autoridade da vitória do Lula em 30 de outubro. Na época [novembro/2022], o governo não deu ouvidos a alertas importantes.

O senador Renan Calheiros, por exemplo, recomendou que, em lugar da PEC, Lula enviasse ao Congresso uma Medida Provisória no primeiro dia do seu mandato. Ele evitaria, desse modo, se tornar refém do bando extorsionário e achacador chefiado por Arthur Lira.

No entanto, o governo outra vez escolheu um caminho contraproducente e contraditório com seus próprios interesses. Desmontar a armadilha do déficit zero é fundamental para o governo Lula, sobretudo devido à eleição municipal do próximo ano. Este episódio traz, além disso, outras lições que precisam ser aprendidas.

 

Ø  Lula não devia explicações sobre a batalha fiscal "déficit x superávit". Deu-as e o eco foi ruim: erro de comunicação. Por Luiz Costa Pinto

 

Mesmo quando dão entrevistas coletivas formais ou informais, presidentes da República têm de ter em mente que as perguntas são desimportantes: só será realmente relevante o que ele disser. Ou seja, o domínio da pauta é dele. Chefes de poderes republicanos devem sempre estar aptos a conversar com jornalistas, a abrir a agenda para um café a qualquer hora do dia, e não necessariamente em salões montados para que tudo pareça um pronunciamento solene. Isso devia ocorrer por aqui com periodicidade muito maior do que costuma acontecer. Encarando o dia a dia da comunicação palaciana como ele deve ser, é preciso que os ocupantes da cadeira presidencial, suas equipes de assessoria e seus ministros diretamente envolvidos na coreografia desses momentos de prestação de contas à sociedade por meio da imprensa (que cumpre, ali, seu papel de mediar as pretensões de Governo com os anseios da sociedade e tudo passado pelo prisma da vida real da política, a tal realpolitik) saibam que quem domina a pauta não dá resposta - mas, sim, pronuncia-se.

Presidentes da República fazem pronunciamentos mesmo quando respondem a perguntas. Pronunciamentos têm de ser pensados, esquadrinhados e lapidados para caberem dentro de objetivos e metas de Governo. Logo, têm de passar por um crivo mais ou menos assim: o que eu quero dizer? Por que dizer isso agora? Qual o movimento que provoco ao dizer tal coisa hoje? Como isso será compreendido por A, B ou C, que estarão na “audiência qualificada” do que direi e farão textos para impactar e “traduzir” o que tenho a dizer? Qual a estratégia e as armas que temos para neutralizar ataques advindos da má compreensão do que disse? E, por fim: posso dizer o quero dizer sem contextualizar? 

Na última sexta-feira, dia de seu aniversário de 78 anos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu o Salão Leste do Palácio do Planalto para receber um grupo de jornalistas convidados diretamente pela Secretaria de Comunicação de Governo. O ponto de corte para a produção da lista de convidados foi escolher nas redações os nomes dentre os quais o ministro da pasta e seus assessores mais próximos têm maior afinidade. Acreditaram que isso bastava para que o ambiente estivesse sob controle de ruídos. Trataram de relaxar a caminho do café da manhã como se tudo fosse um convescote entre amigos destinado a celebrar a vida da maior e melhor personalidade política do País, ser único que poderia ter resgatado o Brasil do fundo do poço de uma trágica viagem em looping acelerado na direção do passado e do garroteamento da Democracia. Lula é tudo isso, sabemos todos. Ainda assim, uma comunicação profissional de Governo não podia ter deixando os flancos abertos para uma derrapagem do gênio da Política - nós temos, ele se chama Lula e despacha no 3º andar do Planalto - sem a existência de acostamento, guard rail e ambulância do SAMU à espreita para conter danos e restaurar a normalidade da pauta sem permitir que o acidente de percurso parecesse uma tragédia.

Lula ter dito que o seu Governo não tinha compromisso com déficit zero (e depois ele explicou, detalhadamente, sendo desprezado nesse ponto pela maioria dos jornalistas presentes, que podia ser -0,25% ou +0,25%, como se fosse uma espécie de banda fiscal flutuante) é de menor importância. O presidente da República ter dito aquilo sem estar a responder pergunta alguma, foi um erro. Não ter preparado com o ministro da pasta, com a equipe pública ou privada que monta as estratégias da Secom (ele dispõe das duas) denota uma certa soberba de auto-suficiência de várias partes e pouco profissionalismo na lida com a comunicação pública. Por fim, foi erro perverso e rotundo terem convocado às pressas Fernando Haddad, ministro da Fazenda, o mais hábil e mais comprometido integrante do Governo, a personalidade que sabe melhor do que ninguém o que Lula quer para o País e como o presidente enxerga a perversidade de nossas desigualdades e quais são os principais inimigos e obstáculos postos no caminho de quem se propõe a mitigá-las, convertendo-o em uma espécie de coordenador de atendimento do SAMU chamado a ressuscitar o corpo à beira da estrada.

Socorrista de múltiplas habilidades, advogado com mestrado em Filosofia e doutorado em Economia, professor nato, Haddad vestiu um imaginário macacão laranja do “SAMU de Governo” e esgrimiu um assertivo e honesto rol de argumentos em defesa dos compromissos que assumiu na tentativa de resgatar o Brasil da UTI em que ele foi deixado. Falou duro e direto, dando exemplos concretos do como e do porquê chegamos aonde estamos na crise fiscal e vem sendo intensamente e desonestamente cobrado por isso. 

Antes de sentar diante do grupo de jornalistas que testemunhou risonha e francamente a construção da escadaria por qual a crise escalou - desde a formação do argumento diáfano de “pedaladas fiscais” que foram usadas como ferramenta de manipulação para o impeachment sem crime de responsabilidade até a maquiagem engenhosamente planejada pela turma de Michel Temer para esconder os déficits por trás de um “teto de gastos” que arruinou e paralisou a máquina pública à guisa de responsabilidade para governar e a ruína absoluta do Estado com o consórcio farsesco formado por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes - o ministro da Fazenda havia debatido a fala de Lula com o próprio presidente e discutido a oportunidade dela com os colegas de ministério Paulo Pimenta (Secom) e Rui Costa (Casa Civil). A relação do trio é fria, distante e eivada por provocações pouco lisonjeiras. Lula admira Haddad, e vice-versa. O ministro da Fazenda sabe o que o presidente quis dizer na entrevista, que na verdade era pronunciamento e foi mal coreografada pela equipe palaciana. Mais além: Fernando Haddad saiu do Planalto para a coletiva em seu ministério irritado com a enésima constatação de que além de ressuscitar o compromisso com a perseguição ao menor déficit fiscal possível em 2024, e o ideal é que fosse zero, ele seguiria sendo vendido pelos ministros palacianos como uma espécie de mordomo incopetente do Governo - aquele que sempre tem alguma culpa quando algo dá errado e não cumpre suas missões direito. 

Queridas, queridos: é isso o que está acontecendo por dentro do Governo, e os jornalistas que não contam o caso como o caso é, ou têm o rabo preso com algum agente do mercado ou dentro de alguma sala palaciana.

 

Ø  O déficit zero e as fake news da mídia e da Faria Lima. Por Bepe Damasco

 

Recentemente a Petrobras anunciou mudanças nos critérios para as nomeações para seu Conselho Administrativo e nas regras para a distribuição de dividendos. Em consequência, as ações da estatal, impulsionadas pelo alarido sem conteúdo da mídia corporativa despencaram na Bolsa de Valores.

No dia seguinte, estava em todas as manchetes uma mentira grosseira: a maior empresa brasileira perdera 32 bilhões de seu valor de mercado. Nenhuma das noticias que li e ouvi sobre o assunto cuidaram de informar o óbvio: na gangorra das ações do mercado de capitais, nada mais natural que o sobe e desce da valorização das ações. Perde-se em um dia, ganha-se no outro.

Isso não tem nada a ver com o valor real de uma companhia. Os poços de petróleo no pré-sal e no pós-sal, a produção diária de óleo e gás, as refinarias, distribuidoras, centros de pesquisas, a produção de biocombustíveis, as plataformas e plantas, enfim todo o ativo da empresa, permanece impermeável às oscilações do mercado financeiro. 

Dias depois, o mundo da Faria Lima e da imprensa comercial pareceu desabar quando o presidente Lula comentou em entrevista coletiva que o Brasil dificilmente conseguiria cumprir a meta de déficit primário zero das contas públicas em 2024, conforme está previsto no arcabouço fiscal proposto pelo governo e aprovado pelo Congresso Nacional. 

E pegaram pesado. Até de sabotar o país Lula foi acusado em editorial do jornal Folha de São Paulo. Na mesma toada crítica, para os analistas globais, Lula desautorizara e enfraquecera seu ministro da Fazenda. E, claro, a cereja do bolo: a bolsa caiu e o dólar subiu.

Se não estivessem engessados pela condição de ventríloquos da especulação, os veículos de comunicação conseguiriam enxergar que o ministro Haddad e o presidente Lula estão e sempre estiveram sintonizados.

Enquanto Lula cuida da agenda prioritária do crescimento econômico com distribuição de renda e inclusão social, cabe a Haddad engolir sapos em suas negociações com o mercado e seus porta-vozes e zelar por um mínimo de equilíbrio das contas públicas, destroçadas pela farra eleitoreira de Bolsonaro. 

O que Lula fez foi chamar para si a responsabilidade, caso não seja possível zerar o déficit, que é o cenário mais provável. Cabe lembrar, no entanto, que o novo arcabouço fiscal prevê uma margem de tolerância de 0,25% de déficit em relação ao PIB. 

Haddad, nesta segunda-feira (30), tratou de jogar um balde de água fria nos que apostavam na deterioração de suas relações com o presidente da República. Além de destacar o compromisso fiscal de Lula, apontou os inúmeros gargalos tributários herdados de outros governos como gerador de enormes prejuízos para a arrecadação do governo e maior ameaça ao déficit zero.

Contudo, o oligopólio midiático reduziu a coletiva do ministro, repleta de temas importantes para a economia  do país, a uma simples e medíocre conclusão: "Haddad desconversa sobre déficit zero."

Quem torce contra não tem jeito.

 

Fonte: Brasil 247

 

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