A reforma tributária favorece o consumo de ultraprocessados?
De um lado, organizações ligadas à defesa da
cidadania e da saúde argumentam que a proposta precisa beneficiar a dieta
saudável e aumentar impostos sobre os ultraprocessados. Já o setor produtivo
alega que a tributação tem que ser a mesma para todos os produtos, em nome da
segurança alimentar da população.
O dilema se concentra em trechos da PEC 45/2019 que
tratam dos alimentos e a definição das alíquotas entre diferentes categorias. O
texto substitutivo apresentado pelo senador Eduardo Braga (MDB-AM) em 25 de
outubro alterou a matéria aprovada pelos deputados em julho.
Para atender a demandas da Frente Parlamentar da
Agropecuária (FPA), como a trava para que produtos alvo de desoneração não
sejam sobretaxados no Imposto Seletivo, o relator da proposta na Câmara,
Agnaldo Ribeiro (PP-PB), isentou todos os itens da Cesta Básica. No entanto,
não havia definição sobre quais alimentos seriam contemplados pela medida. Isso
poderia incluir desde arroz e feijão até macarrão instantâneo e salsicha. A
bancada conta com 304 deputados e 41 senadores.
Agora, o relator no Senado propôs dois tipos de
tributação na Cesta Básica para limitar o alcance da renúncia de impostos, o
que vai impactar no preço final dos produtos. A alíquota zero deve recair sobre
produtos da Cesta Básica Nacional, em uma lista restrita de itens. O texto
especifica que esse grupo de alimentos deve ter na composição produtos
regionais e nutricionalmente adequados. Já a Cesta Estendida será alvo de uma
alíquota reduzida.
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Definição dos alimentos
A escolha de quais alimentos vão compor as cestas
será feita pelos próprios parlamentares depois que a PEC for aprovada pelo
Congresso, por meio de uma lei complementar. Há ainda a previsão de um regime
diferenciado para "alimentos de consumo humano", que terão abatimento
de 60% na alíquota.
"Alimento não é tudo igual. Existe uma
categoria muito séria que não pode ser estimulada, e que sempre vai ser uma
opção mais barata. Há um interesse de que os ultraprocessados entrem na cesta
básica e nas desonerações", afirmou Marília Albiero, coordenadora de
alimentação da ACT Promoção da Saúde.
No entanto, a Associação Brasileira da Indústria de
Alimentos (Abia) rechaça o aumento de impostos sobre qualquer tipo de produto,
e argumenta que a fome no Brasil é agravada pela baixa renda. A associação
afirma que "em um país em que 33 milhões de pessoas convivem com a fome e
a insegurança alimentar, a oportunidade de simplificar e reduzir o custo de
alimentos e bebidas não pode ser desperdiçada pelos parlamentares. Todos os
alimentos têm valor, são direito do povo brasileiro e essenciais para a vida
humana”.
A economista Tathiane Piscitelli, da Fundação
Getulio Vargas, contesta esse argumento e classifica como "dissenso"
conceder desonerações a alimentos ultraprocessados. "Da perspectiva do
direito tributário, não pode ter bônus para alimento que gera um impacto público
negativo. O problema de as pessoas ficarem doentes não é só do indivíduo, mas
de saúde pública: resulta em mais pressão dos cofres públicos em saúde e
seguridade social. O debate tem que vincular isso aos alimentos saudáveis.
Senão, há uma brecha para favorecer os ultraprocessados”.
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Imposto Seletivo
O texto substitutivo da Reforma também propõe um
Imposto Seletivo (IS) que vai penalizar com uma carga extra de tributos os
produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente. Mais uma vez, o relatório não
especifica quais serão. A lista será determinada pelo Congresso em uma lei
complementar, que será debatida depois da aprovação da PEC.
Marília Albiero, da ACT, admite uma convergência
com o setor produtivo: também é contra onerar os alimentos. No entanto, refuta
que qualquer tipo de alimento possa ser empregado no combate à fome. Por isso,
a ACT defende que haja na Reforma incentivos fiscais à produção e ao consumo de
alimentos in natura e minimamente processados e desestímulo aos
ultraprocessados com o IS.
"Os ultraprocessados já têm uma série de
vantagens comerciais: preço mais competitivo, praticidade, propaganda, acesso
nos mercados. Se o alimento saudável não for extremamente mais barato, o
ultraprocessado sempre vai ter a preferência, a concorrência é desleal. Existe
uma desigualdade tributária em todos os alimentos. A reforma poderia ser a
grande chance de o país fazer essa correção”, assinala.
Para Leonardo Rosati, diretor de Tax da consultoria
Mazars, sem especificar a taxação dos alimentos por tipo de processamento, a reforma
possibilita a manutenção de benefícios fiscais aos ultraprocessados.
"Essas brechas poderiam ser sanadas caso o texto da reforma inclua de
maneira expressa a composição dos produtos e serviços considerados como nocivos
à saúde".
A Abia, por sua vez, é contra o imposto seletivo e
defende que os alimentos não são nocivos à saúde ou ao meio ambiente
"Diante de um cenário de agravamento da fome e da insegurança alimentar,
não é razoável propor aumento de carga tributária sobre os alimentos – sobre
qualquer alimento. Pedir aumento de impostos sobre alimentos é pedir que todos
paguem mais caro pela comida".
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Desequilíbrio tributário
Atualmente, o sistema tributário já penaliza a
produção de alimentos in natura. Leonardo Rosati explica que, embora a
incidência de tributos federais sobre essa categoria seja mais baixa ou até
isenta, os produtores rurais acumulam mais custos cumulativos (com insumos,
combustíveis, investimentos, energia, água) com impostos estaduais. Além disso,
ultraprocessados contam com incentivos fiscais e isenções.
Esse cenário gera distorções no preço final para os
consumidores. "O preço dos alimentos saudáveis é cada vez mais
inacessível, e dos ultraprocessados, mais baratos. Em alguns estados, o
macarrão instantâneo tem a mesma alíquota do ICMS do arroz e feijão. O IPI do
refrigerante e dos achocolatados é quase zero, como o da água mineral",
enumera Marília Albiero.
Estudos científicos associam o consumo de
ultraprocessados a um maior risco de obesidade, diabetes e doenças
cardiovasculares. Dados levantados por outro grupo de pesquisadores da USP
indicam que, em dez anos, o consumo de ultraprocessados no país aumentou 5,5%,
sobretudo entre pessoas de grupos populacionais de menor nível de renda e
escolaridade.
Um levantamento do Núcleo de Pesquisas
Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens) publicado em 2022 na
revista científica American Journal of Preventive Medicine atribuiu 57 mil
mortes no Brasil ao consumo de ultraprocessados. Segundo os pesquisadores, esse
total corresponde a 10,5% das mortes prematuras de 2019 entre adultos de 30 a
69 anos.
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Tributação no limbo
A ACT reconhece que o relatório do senador Eduardo
Braga representa um avanço em relação ao texto-base aprovado na Câmara. No
entanto, Marília Albiero ressalta que a proposta continua ambígua e dá margem
para que ultraprocessados sejam favorecidos pelos regimes de desoneração de
impostos, previstos para itens de "consumo humano".
"Vai ter uma disputa para o Congresso definir
quais alimentos são esses. Precisava envolver técnicos do Ministério da Saúde,
ter uma ação mais integrada com o Executivo", afirmou. Tathiane
Piscitelli, da FGV, acrescenta que o Congresso é naturalmente um órgão político
e sofre pressão inclusive da indústria. "O local para discussão (das
desonerações) é a lei complementar, mas deveria ter uma discussão com a
sociedade civil, porque o impacto será sobre ela”.
O setor produtivo, por sua vez, manifestou apoio ao
projeto. "O texto fala sobre alimentos, e reconhece a necessidade de
reduzir a carga tributária da alimentação. O Brasil está diante de uma grande
oportunidade para reduzir os impostos sobre todos os alimentos e bebidas, pois
todos eles têm valor, são essenciais para a vida e para o bem-estar da
população", disse a Abia, em nota.
Os especialistas concordam que o modelo ideal para
evitar a renúncia fiscal para alimentos ultraprocessados seria que essa
proibição estivesse expressa no texto da PEC.
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Diretrizes
Além do Imposto Seletivo, o Ministério da Saúde
disse, por meio de nota, que o Guia Alimentar da População Brasileira deve
servir de parâmetro para a definição dos alimentos necessários para uma dieta
saudável, que devem ser incentivados na lei complementar. O documento recomenda
que a alimentação deve se basear sobretudo em produtos obtidos diretamente de
plantas e animais.
O secretário Extraordinário da Reforma Tributária
do Ministério da Fazenda, Bernardo Appy, afirmou em audiência pública no Senado
que "reforma resolve os problemas do sistema tributário de fato”. Por meio
de nota, o Ministério da Fazenda afirmou que avalia como positivo o relatório
de Eduardo Braga, e que está empenhado na aprovação da proposta.
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Tramitação no Congresso
Depois da leitura do relatório, a discussão e a
votação do texto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) está marcada para
terça-feira (07/11). Se for aprovada, a matéria segue para análise no plenário
do Senado. A PEC tem que ter o apoio de três quintos dos senadores (49) em dois
turnos de votação. Após essa etapa, a proposta retorna para a Câmara, já que o
texto original foi modificado. A previsão do presidente Rodrigo Pacheco
(PSD-MG) é que isso deve ocorrer até 10 de novembro.
Fonte: Deutsche Welle
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