O que é o crédito de carbono? Entenda o mercado que pode gerar recursos
para quem mantém a floresta em pé
Toda atividade humana depende de recursos da
natureza. E aquelas que usam combustíveis fósseis ou desmatam, além de extrair,
ainda devolvem para a atmosfera gases de efeito estufa (GEE) que provocam
aquecimento global e eventos climáticos extremos.
É consenso entre os cientistas que o mundo precisa
reduzir e eliminar as fontes que emitem esses gases, sobretudo dióxido de
carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O).
Para os casos em que isso não é possível agora, os
créditos de carbono surgiram como uma forma de compensar as emissões de GEE:
empresas ou países que conseguem deixar de despejar gases de efeito estufa na
atmosfera vendem esse serviço prestado. Em geral, cada unidade de crédito de
carbono é igual a uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) ou seu equivalente
em outros gases que deixou de ser emitida.
>>> Abaixo, neste texto, você vai saber em
detalhes:
• 1.
Por que os créditos de carbono foram criados?
Em 2022, segundo a Agência Internacional de
Energia, o mundo bateu um novo recorde com a emissão de 36,8 bilhões de
toneladas de gases do efeito estufa. Essa poluição acontece por meio de
atividades industriais, uso de combustíveis fósseis (como gasolina e diesel),
queima de carvão para geração de energia elétrica, criação de animais para
pecuária, além de desmatamentos e queimadas, entre outros.
O acúmulo de gases do efeito estufa na atmosfera já
levou a um aumento de 1,1ºC na temperatura média do planeta, na comparação com
as temperaturas pré-industriais. Esse aquecimento vem provocando as chamadas
mudanças climáticas: subida do nível do mar e aumento da frequência e
intensidade de eventos extremos estão entre as consequências.
Desde 2015, dezenas de países se comprometem, por
meio do Acordo de Paris, a reduzir suas emissões, a fim de evitar que a
temperatura média do planeta ultrapasse, até o fim deste século, 2ºC de
aquecimento na comparação com as temperaturas pré-industriais -- o que
agravaria ainda mais os efeitos das mudanças climáticas.
Em 2021, um estudo apontou o Brasil como o quarto
maior emissor histórico (principalmente por causa do desmatamento), atrás
apenas de Estados Unidos, China e Rússia.
É nesse contexto que empresas também vem publicando
suas próprias metas para chegar à neutralidade de carbono ou ao chamado
“carbono zero”, ou seja: zerar as emissões geradas por suas operações. O
dióxido de carbono é o principal gás do efeito estufa.
No Brasil, 77% das 80 principais empresas já
publicaram alguma meta de corte de emissões, segundo a consultoria McKinsey. A
redução pode ser alcançada pela descarbonização das operações, por exemplo,
adotando a eletrificação de alguns processos ou tecnologias menos emissoras.
Essas medidas são parte da chamada transição energética.
Mas empresas de muitos setores -- como aviação,
mineração e transporte -- ainda não conseguem optar totalmente por esse caminho
e recorrem aos créditos de carbono para fazer a compensação.
• 2. O
que são os mercados de crédito de carbono
O crédito de carbono funciona como um mecanismo de
transferência de recursos que visa promover ações para enfrentar o aquecimento
global e atingir as metas de reduções de emissões. Como já mencionado, um
crédito de carbono equivale a uma tonelada de dióxido de carbono.
O valor de cada crédito depende do mercado no qual
ele é negociado: regulado ou voluntário.
• Mercados
regulados: os governos (seja nacional, regional ou estadual) determinam metas
ou limites de emissões para as empresas emissoras que devem ser cumpridos por
lei. Aquelas que conseguem emitir menos que o teto estabelecido podem vender
seus créditos de carbono às que excederem o limite. Nesse caso, o preço do
crédito é definido pela instância reguladora.
• Mercado
voluntário: o valor do crédito é negociado em contrato com base nas
características do projeto. Nesse mercado, as empresas não possuem obrigações
legais de reduzir emissões, mas aquelas que querem compensá-las, por causa de
suas próprias metas e para atender a demanda do mercado consumidor por empresas
comprometidas com o meio ambiente, podem comprar créditos de carbono.
Em ambos os casos, os créditos, por sua vez, são
gerados a partir de diferentes tipos de projetos, como de energia renovável,
gestão de resíduos sólidos, reflorestamento ou de redução do desmatamento.
Os mercados de carbono estão em forte expansão. A
estimativa da consultoria McKinsey é de que a demanda por créditos aumente 15
vezes até 2030, saltando de US$ 1 bilhão em 2021 para um mercado de pelo menos
US$ 50 bilhões na próxima década.
• 3.
Como funciona o mercado voluntário de créditos de carbono
No mercado voluntário, diferentes atores se
relacionam:
• Desenvolvedores
dos projetos: empresas, organizações ou associações que elaboram os projetos.
Nem sempre essas empresas ou organizações são as mesmas responsáveis pela
implementação do projeto em determinada área. Também pode haver diferentes
financiadores de um projeto. Os desenvolvedores não necessariamente são os
proprietários das áreas onde os projetos serão realizados, que podem ser
públicas ou privadas.
• Certificadoras:
são organizações sem fins lucrativos responsáveis pelos chamados programas de
registro ou padrões internacionais, que estabelecem critérios e metodologias
para registrar projetos e determinar quantos créditos de carbono são gerados
por eles.
• Compradores:
empresas com metas de redução de emissão, como a maioria das multinacionais.
Essas empresas podem comprar os créditos diretamente de um projeto ou por meio
de uma corretora especializada.
A principal certificadora usada no mercado
voluntário é a Verra, uma organização sem fins lucrativos com sede nos Estados
Unidos responsável pela metodologia que calcula quantos créditos de carbono um
determinado projeto pode gerar, a chamada “Verified Carbon Standard (VCS)”.
Em 2021, segundo um relatório do Banco Mundial, 62%
de todos os créditos gerados no mundo eram do tipo VCS, emitidos pela Verra.
Outros 9% foram emitidos pela Gold Standard, outra certificadora sem fins
lucrativos, com sede na Suíça.
• 4. O
que são os projetos de crédito de carbono de redução do desmatamento?
Ao longo dos últimos anos, os setores que mais têm
gerado créditos de carbono no mercado voluntário são o de energia e o chamado
AFOLU (Agricultura, Floresta e Ooutros Usos do solo).
Os projetos voltados especificamente para florestas
também são conhecidos pela sigla REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e
Degradação Florestal).
Segundo um estudo do Observatório de Bioeconomia da
FGV, entre 2019 e 2021, projetos de crédito de energia aumentaram em 2,5 vezes
a geração de créditos de carbono. Já os projetos de carbono florestal do tipo
REDD+ quase quadruplicaram o número de créditos gerados no mesmo período.
Os projetos REDD+ são os mais comuns no Brasil, por
causa das vastas áreas de florestas nativas no território ameaçadas pelo
desmatamento. Em 2021, quase 75% das emissões de gases de efeito estufa do país
foram relacionadas ao uso do solo: 49% provenientes do desmatamento e 25% da
agropecuária.
Segundo um levantamento do escritório de advocacia
Hernandez Lerner & Miranda Advocacia em Direitos Humanos, até janeiro de
2023, a maioria dos projetos localizados no Brasil e em diferentes estágios de
registro na Verra eram do setor de floresta, agricultura e outros usos do solo:
87 em um total de 190 iniciativas.
Projetos de redução do desmatamento geram créditos
por evitarem as emissões que seriam causadas em caso de derrubada da floresta.
Quando a floresta é desmatada, o carbono armazenado nas plantas, árvores e no
solo é liberado para a atmosfera. Preservada, a floresta também absorve carbono
por meio do processo de fotossíntese das plantas.
No mercado voluntário, para calcular quanto carbono
deixa de ser emitido e, portanto, quantos créditos são gerados, esse tipo de
projeto compara dois cenários:
• cenário
linha de base: sem o projeto, no qual uma área estaria exposta a agentes do
desmatamento. Normalmente, esse cenário é baseado na extrapolação das
tendências históricas de emissões na área.
• e o
cenário com projeto: no qual haveria controle e monitoramento desses agentes,
para garantir a floresta em pé.
A diferença entre esses dois cenários é a chamada
“adicionalidade do projeto”, critério crucial para que um determinado projeto
possa gerar créditos de carbono. Quanto maior a adicionalidade do projeto, mais
créditos ele gera.
Uma característica dos projetos de redução de
desmatamento é a longa duração: eles oscilam entre 22 e 44 anos -- enquanto os
demais tipos são mais curtos, entre cinco e dez anos.
No caso dos projetos em Portel, por exemplo, as
iniciativas propõem gerar créditos ao longo de 30 até 41 anos, nos períodos de
2009 a 2048, 2016 a 2045, 2018 a 2048 e 2019 a 2058.
Essa longevidade impõe vários riscos de incertezas
futuras, segundo o escritório Hernandez Lerner & Miranda Advocacia em
Direitos Humanos, como “mudanças no cenário político, flutuações de mercado e
situações que podem colocar em questão a implementação e sucesso do projeto,
como por exemplo desmatamento, queimadas ou eventos extremos e imprevisíveis”.
Esses riscos impõe a necessidade de monitoramento e
verificação constantes, o que pode incidir nos custos do projeto.
• 5.
Possíveis falhas e benefícios de projetos de floresta no mercado voluntário
A lógica por trás de projetos do tipo REDD+ é
oferecer uma alternativa econômica para que as florestas ao redor do mundo
valham mais preservadas do que derrubadas ou degradadas por atividades como
extração de madeira, agricultura e pecuária.
No esforço global contra a crise climática, a
vantagem da conservação florestal é dupla: florestas em pé não só deixam de ser
emissoras dos gases do efeito estufa, como são sequestradoras do gás carbônico
já emitido (as plantas absorvem gás carbônico no processo de fotossíntese e
liberação gás oxigênio).
Isso sem nem entrar no fato de que as florestas ao
redor do mundo são a casa de dezenas de povos, além de milhares de espécies de
plantas, animais e fungos, trazem inúmeros benefícios (da manutenção da
biodiversidade e do regime de chuvas à promoção da qualidade do ar), além de
possuírem valores culturais, sociais e espirituais que são intangíveis e
imensuráveis.
No mercado regulado e no âmbito do programa específico
da ONU para REDD+, iniciativas do tipo precisam cumprir uma série de obrigações
não apenas ambientais, mas também sociais, como garantir que as comunidades
locais sejam consultadas e participem dos projetos.
Também precisam respeitar os direitos e os
conhecimentos de comunidades tradicionais, como povos indígenas. Além de terem
mecanismos claros de governança e de repartição dos benefícios dos projetos com
os moradores locais.
No mercado voluntário, a consulta às comunidades
tradicionais também é necessária em países como o Brasil, que é signatário da
Convenção Nº 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Muitos projetos também procuram programas de
registro adicionais para atestar que geram outros benefícios sociais e
ambientais para além da redução de emissões, é o caso do programa CCBS, que
emite créditos de carbono para projetos que incluem, entre outros, conservação
da biodiversidade e desenvolvimento comunitário. O CCBS também exige a
participação e o benefício das comunidades locais.
• Proteção
dos direitos dos povos e comunidades tradicionais
No Brasil, o Ministério Público Federal, em
conjunto com o Ministério Público do Estado do Pará, publicou, em julho, uma
nota técnica com orientações para a proteção dos direitos dos povos e
comunidades tradicionais no mercado de carbono. Os órgãos recomendam que:
• o
direito à consulta livre, prévia e informada seja resguardado
• os
contratos de crédito tenham intervenção estatal
• a
repartição de benefícios advindos pelos projetos seja feita respeitando a
autonomia dos povos e comunidades tradicionais
• as
empresas certificadoras ou beneficiárias de crédito de carbono criem auditorias
que comprovem a garantia dos direitos das populações locais e ouvidorias
externas para o encaminhamento de denúncias
Recentemente, vários estudos científicos e
investigações jornalísticas vem apontando falhas em projetos de crédito de
carbono de redução do desmatamento negociados no mercado voluntário.
Uma investigação do jornal britânico "The
Guardian", em parceria com a revista alemã "Die Zeit", a
organização SourceMaterial e baseada em três estudos científicos, concluiu que
94% dos créditos comercializados por projetos ativos e registrados pela Verra
não representaram reduções reais de emissões de gases do efeito estufa.
O principal problema encontrado pela investigação é
a distorção do chamado cenário linha base. Os projetos analisados estariam
superestimando esse cenário para aumentar a adicionalidade de seus projetos e,
assim, gerar mais créditos. A Verra defendeu sua metodologia e refutou a
abordagem usada pelos estudos.
Em julho, pesquisadores do Instituto Federal de
Tecnologia de Zurique, na Suíça, revisaram estudos empíricos que abarcam mais
de 2 mil projetos de créditos de carbono de vários setores no mercado voluntário
e concluíram que apenas 12% do volume total de créditos gerados representou
reduções reais de emissões.
Para se ter uma noção de grandeza: essa lacuna
entre o quanto os projetos dizem evitar de emissões e as emissões realmente
reduzidas por eles corresponde a quase o dobro do emitido anualmente pela
Alemanha. No caso dos projetos do tipo REDD+, apenas 25% dos créditos gerados
corresponderam a emissões realmente evitadas.
“O nosso estudo dá mais apoio ao encontrado pelo
Guardian no sentido de que existem sérias questões sobre a verdadeira
adicionalidade desses projetos voluntários de carbono florestal”, disse ao g1 o
professor da Universidade de Cambridge Andreas Kontoleon, co-autor do estudo e
de uma das pesquisas que embasou a reportagem do jornal britânico.
Para Kontoleon, nem todos os projetos do setor de
floresta são problemáticos e as novas pesquisas devem ajudar a compreender o
que torna uma iniciativa bem-sucedida.
“Como economista, eu não sou ideologicamente contra
a esse tipo de projeto de compensação [de emissões]. Pelo contrário, eu sou a
favor de soluções de mercado para combater as mudanças climáticas. Nós só
precisamos descobrir quais que estão funcionando e ficar com essas”, afirmou
ele.
Além da dúvida sobre o verdadeiro impacto dessas
iniciativas na redução de emissões, muitos projetos vêm sendo denunciados por
ameaças a povos indígenas e comunidades locais.
Várias reportagens no Brasil e no mundo trouxeram à
tona denúncias de assédio e coação contra essas comunidades, falta de
transparência nas negociações, acirramento de conflitos fundiários, ameaças aos
modos de vida tradicional e de expulsão.
Para Juliana Miranda, do escritório de advocacia
Hernandez Lerner & Miranda Advocacia em Direitos Humanos que analisou o
cenário do mercado voluntário, é importante não generalizar. Ela lembra que,
como em qualquer mercado, há bons atores e maus atores também no mercado de
crédito de carbono.
• 7.
Qual é a proposta do governo para regularização do mercado de carbono?
Em setembro, foi apresentada a versão mais recente
de um projeto de lei que pretende regulamentar o mercado de crédito de carbono
no Brasil, criando o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de
Efeito Estufa (SBCE).
Pela proposta, em análise pelo Senado e construído
em conjunto com o Executivo, projetos no mercado voluntário terão que ter
metodologias credenciadas pelo órgão gestor do SBCE, além de serem mensurados e
verificados por uma entidade independente.
O texto também tem um capítulo específico para
tratar do mercado de carbono voluntário em áreas de comunidades tradicionais --
caso dos projetos em Portel -- e prevê a obrigatoriedade do consentimento das
comunidades “resultante de consulta livre, prévia e informada”, além de
“definição de regra para a repartição justa e equitativa” e gestão
participativa dos eventuais ganhos da comercialização dos créditos.
A autora do substitutivo mais recente é a senadora
Leila Barros (PDT-DF), relatora do projeto de lei nº 412, de 2022. O texto está
sob análise da Comissão de Meio Ambiente do Senado. No último dia 27, a votação
do texto na comissão foi adiada.
Fonte: g1
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