Nuno Vasconcellos: Cada um no seu quadrado
O ministro Luís Roberto Barroso, que assumiu na quinta-feira passada
a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), sabe
da importância da missão que tem pela frente. O sucesso dessa missão, em
circunstâncias normais, já seria difícil de ser alcançado. Mas ele se tornará
praticamente impossível se os poderes da República, a começar pelo Judiciário,
não recolherem as armas que nos últimos anos têm sempre mantido uns na mira dos
outros.
O relacionamento entre os poderes tem se dado num
clima pesado e torná-lo mais leve não dependerá apenas de Barroso. Ele
necessitará, em igual medida, da disposição demonstrada por ele e pelos líderes
dos demais poderes no sentido de remover obstáculos ao invés de criá-los, como
tem acontecido nos últimos anos. E, assim, construir novas bases para o
relacionamento harmônico que a Constituição diz que deve existir entre os
poderes, mas que tem faltado no entendimento do Judiciário com o Executivo e,
principalmente, com o Legislativo.
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Cada um dos três poderes precisa fazer sua parte e,
antes de mais nada, procurar se manter nos limites de sua competência. E,
assim, contribuir para a criação de um ambiente em que o Executivo não queira
fazer aquilo que cabe ao Legislativo, em que o Legislativo não avance sobre as
atribuições do Judiciário e que o Judiciário não se arvore a tomar decisões que
cabem aos Executivos.
O melhor seria que cada um se mantivesse em seu
quadrado — e quanto antes esse equilíbrio for alcançado, melhor. Se, porém, o
clima atual for mantido, os poderes da República continuarão a bater cabeça e um
seguirá tomando para si as responsabilidades que deveriam caber a outro. A
consequência desse tipo de atitude é nefasta e não serve, como às vezes parece,
apenas para que alguma autoridade que ocupa um cargo importante demonstre que
manda mais do que o outro. Sua pior consequência é justificar a paralisia das
instituições.
Como uma delas sempre se mostra disposta a avançar
sobre o poder da outra, todas sempre poderão alegar que não cumprem suas
obrigações porque sempre tem alguém tentando impedir. E, assim, no final das
contas, ninguém é cobrado por não fazer aquilo que a sociedade espera que faça.
·
Contrariar interesses
Em seu discurso de posse, o novo presidente do STF
afirmou que "numa democracia não existem poderes hegemônicos". Ao
fazer essa afirmação, ele mencionou os nomes do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG),
e do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), presentes à
cerimônia. Em outro momento, e ao lado do presidente da República Luiz Inácio
Lula da Silva — que foi quem introduziu esse conceito na política brasileira —,
disse que "um país não é feito do nós contra eles".
Na presidência do STF, Barroso passará a ocupar o
quarto posto na linha de sucessão do presidente da República — depois do
vice-presidente, do presidente da Câmara e do presidente do Senado. Embora
tenha dito que "a virtude de um Tribunal jamais poderá ser medida por
pesquisa de opinião", que "contrariar interesses é inerente ao nosso
papel" e que "nós sempre estaremos expostos a críticas", ele
sabe que o atual clima de confronto entre poderes não faz bem às instituições.
No posto, terá que lidar com o rescaldo do impasse
criado na sessão do STF de terça-feira passada, a última sob a presidência da
ministra Rosa Weber, que decidiu sobre o chamado "marco temporal"
para a demarcação das terras indígenas. Os desdobramentos em torno desse tema,
ao invés de apaziguar, têm tudo para aumentar ainda mais a temperatura e o
clima de animosidade que têm marcado o relacionamento entre os poderes da
República.
·
Gasolina na fogueira
A discussão em torno do "marco temporal" tem despertado paixões de lado a lado e é necessário, antes
de avançar da discussão, esclarecer alguns pontos em torno desse debate. Da
forma como tem sido conduzido, esse debate tem gerado mais incompreensões do
que esclarecimentos e isso, é claro, dificulta o entendimento em torno de um
tema tão importante.
A Constituição de 1988 diz, em seu artigo 231, que
"São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens". Isso é o que diz o texto da lei. Como se
vê, a Carta não estabelece a data para essa ocupação — mas dá a entender que
ela não pode ter se dado de uma hora para outra para garantir aos indígenas a
posse da terra.
A discussão em torno do chamado "marco
temporal" refere-se a uma tese jurídica segundo a qual "os povos
indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que já ocupavam em 5 de
outubro de 1988", quando a Carta Magna foi promulgada. O conceito foi
utilizado pela primeira vez em 2009, quando a Advocacia-Geral da União, cujo
titular na época era o atual ministro José Antônio Dias Toffoli, elaborou um
parecer sobre a demarcação da reserva Raposa-Terra do Sol, no estado de
Roraima, que vinha sendo objeto de debates do STF desde os anos 1990.
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Àquela altura, já estava em curso na Suprema Corte
uma ação em torno da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, criada em 2003 no coração
do estado de Santa Catarina. Dela faz parte uma extensão de 80 mil metros
quadrados de terras, que vinha sendo objeto de disputa entre os indígenas da
nação Xokleng e agricultores — alguns dos quais descendentes de famílias de
imigrantes que se instalaram na região ainda no século 18.
Como o impasse em torno da questão não foi
resolvido, o governo de Santa Catarina entrou com uma ação conta a União no
Supremo Tribunal Federal (STF). O argumento central do governo catarinense foi
justamente o de que a terra não estava ocupada pelos Xokleng no dia 5 de
outubro de 1988. Os indígenas, por sua vez, entendiam que tinham sido expulsos
dali e que as terras lhes pertenciam por direito ancestral.
Ao decidir, na quarta-feira passada — por nove
votos contra dois —, que os indígenas têm direito à área em disputa na
Ibirama-Laklãnõ, o STF entendeu que, na prática, a tese do "marco
temporal" não existe. Se um determinado grupo entender que um determinado
pedaço de terra era ocupado por seus antepassados, tem todo o direito de reivindicar
sua posse. Por esse critério, um grupo pode se apresentar, por exemplo, como
descendente dos indígenas tamoios, que ocupavam os arredores da Baía de
Guanabara e apoiavam os franceses que invadiram a região no século 16.
Os tamoios foram expulsos de suas terras tradicionais
pelos temiminós liderados pelo cacique Arariboia — que viviam na região onde
hoje é Niterói. Eles apoiavam os portugueses nas batalhas do século 16 que
resultaram na fundação da cidade do Rio de Janeiro por Estácio de Sá em 1565.
Os descendentes dos tamoios poderão, esse caso, mover um processo para
reivindicar a posse de tudo o que existe entre a Vieira Souto e a Lagoa Rodrigo
de Freitas. Já no que aconteceria se eles ganharem a causa?
Essa possibilidade, claro, é caricata — mas, em
outros casos, a decisão em relação ao "marco temporal" poderá servir
de base para reivindicações bem reais, que poderão ter impacto negativo sobre o
agronegócio, setor que tem carregado a economia do Brasil nas costas nos
últimos anos. Sendo assim, e para piorar ainda mais o clima de confronto entre
os poderes, os representantes dos produtores rurais no Parlamento reagiram à
decisão do STF jogando um pouco mais de gasolina na fogueira que arde em torno
dessa questão.
·
Caneta presidencial
Antes de prosseguir, é bom deixar claro o seguinte:
concorde-se ou não com a decisão, o STF, neste caso específico, não se imiscuiu
em área de competência do Poder Legislativo. O que ele fez foi decidir sobre
uma ação movida por uma parte legítima, ou seja, o estado de Santa Catarina, em
torno de uma disputa que vinha se arrastando por 20 longos anos.
Em qualquer momento nesse longo período que se
estende de 2003, quando a área da Ibirama-Laklãnõ foi demarcada, e a semana
passada, quando o tribunal concluiu a discussão em torno da questão, os
parlamentares poderiam ter se articulado e aprovado uma lei que regulamentasse
o artigo 231 da Constituição. Eles, no entanto, esperaram que o STF começasse a
se mexer para tratar do assunto.
No instante exato em que o Plenário do STF concluiu
a decisão sobre o "marco temporal", os senadores, do outro lado da
rua, discutiram e aprovaram em regime de urgência um projeto que havia sido
votado em maio pelos deputados. Esse projeto transforma em lei a tese jurídica
do "marco temporal" e determina que só serão passíveis de demarcação
as terras que estavam ocupadas pelos indígenas no dia da promulgação da Carta
Magna.
A nova lei também estabelece critérios para
práticas que não estavam em discussão na ação julgada pelo STF — e que,
portanto, não foram contempladas pela decisão dos ministros. Entre elas está a
questão polêmica da exploração econômica das terras indígenas — inclusive pelo
agronegócio, por mineradoras e pelo turismo. "Somos a favor do PL
2903/23", disse o deputado Joaquim Passarinho (PL-PA), referindo-se à
medida que, agora, seguirá para sanção do presidente da República. Passarinho é
presidente da Frente Parlamentar do Empreendedorismo. "Precisamos dar uma
segurança jurídica para o campo. Não temos como empreender no país sem uma
segurança", declarou.
É claro que a celeridade com que o Senado agiu em
torno do tema é uma consequência direta do rumo que o julgamento da ação tomou
no STF. Mas, agora, virou uma questão que envolve os três poderes. A políticos
aliados, Lula já manifestou a intenção de vetar o texto. Os políticos que
apoiam a medida, em resposta, declararam que, se o presidente fizer isso, o
veto será derrubado no plenário do Congresso.
Não se trata, como se vê, de uma questão simples e
muita água ainda há de correr por essa enxurrada antes que o tema seja
pacificado. Caso o presidente realmente vete a lei aprovada na terça-feira, ele
estará desagradando políticos que vêm sendo atraídos para a base de apoio
parlamentar a seu governo à custa de postos no ministério e da liberação generosa
de bilhões de reais em emendas parlamentares. Esses políticos, em sua maioria,
foram eleitos com compromissos que incluem a defesa do agronegócio e não podem
correr o risco de desagradar suas bases de forma tão flagrante.
Nesse clima, o descontentamento dos parlamentares
em torno do fim da tese do "marco temporal" tenderá, na melhor das
hipóteses, a dificultar a aprovação de medidas de interesse do governo no
Congresso. Ou de torná-la, senão mais complicada, certamente bem mais cara. Se,
por outro lado, Lula não vetar o texto e deixar tudo como está, ele desagradará
políticos aliados e, também, o STF — que se sentirá desautorizado pela caneta
presidencial.
·
"Limites
constitucionais"
Em seu discurso de posse, o ministro Barroso
lembrou que, a partir do momento em que uma determinada questão é transformada
em lei, ela sai da esfera política e entra no domínio da esfera jurídica. A
princípio, ele está coberto de razão. A questão é que, no Brasil atual,
decisões judiciais como essa que foi tomada em relação ao "marco
temporal" costumam sair do campo jurídico e entrar diretamente para o
domínio da política.
Na quarta-feira passada, enquanto a notícia da
aprovação do Projeto de Lei em torno do "marco temporal" repercutia
pelo país afora, começou a tramitar na Câmara um projeto de autoria do deputado
Domingos Sávio (PL-MG) que vai dar o que falar se vier a ser aprovado. Com o
apoio de 175 deputados que assinaram o texto, Sávio pretende dar ao Congresso
poderes para derrubar decisões tomadas pelo STF.
Isso mesmo. Pela proposta, o Poder Legislativo
poderá, após o trânsito em julgado (ou seja, quando não cabem mais recursos a
uma decisão judicial), tornar sem efeito uma decisão judicial que tenha
extrapolado "os limites constitucionais". Como se vê, é uma questão
complexa, que vai na contramão das intenções de paz manifestadas pelo ministro
Barroso em seu discurso de posse.
Uma ideia como essa, por mais que os parlamentares
tenham motivos para se queixar de decisões do STF, tem poucas chances de seguir
adiante — e, ainda que seguisse, seria objeto de inúmeras controvérsias
judiciais. Barroso está certíssimo ao acenar uma bandeira branca em direção aos
demais poderes. Mas não pode, de qualquer forma, manifestar intenções de buscar
o equilíbrio e agir como se o poder que preside fosse superior aos demais.
Esse, sem dúvida, será o maior desafio de seus dois anos de mandato.
Fonte: iG
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