"Mudança do clima na Amazônia aumentou estação de seca",
afirma Carlos Nobre
A seca deste ano na Amazôniacriou um cenário de
terra arrasada. Com os rios em níveis baixos históricos, comunidades inteiras
isoladas e com difícil acesso a alimentos e água potável. O tempo seco
contribuiu ainda para a proliferação das queimadas, que destroem florestas e
plantações e poluem o ar.
O aumento de períodos severos de estiagem na
Amazônia acende um alerta sobre o presente e o futuro da região. A comunidade
científica adverte que asmudanças climáticas e o desmatamento podem levar a morte da floresta. Esse
processo de degradação geraria enormes emissões de carbono, desregularia o
sistema de chuvas no continente e causaria a extinção de centenas de espécies
endêmicas do bioma.
Em entrevista a DW, Carlos Nobre, climatologista do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e referência mundial em
estudos sobre mudanças climáticas, falou sobre a atual seca na região, o
possível colapso irreversível da floresta e como reverter esse processo.
LEIA A ENTREVISTA:
• Seus
estudos indicam que a Amazônia pode perder suas características de floresta
tropical úmida e virar um bioma desértico, semelhante ao Cerrado, passando pela
chamada "savanização". Como ocorreria esse processo?
Carlos Nobre: Ocorreria pelo fato de que o clima na
Amazônia está mudando. Em primeiro lugar, nós temos o aquecimento global, que
induz a uma estação seca muito longa em uma parte muito grande da Amazônia.
Junto com isso, há também o desmatamento. A pastagem recicla muito menos água
do que a floresta. A estação seca já está quatro a cinco semanas mais longa em
todo o sul da Amazônia, que vai do Atlântico até a Bolívia, quatro semanas na
floresta, e cinco semanas em áreas muito desmatadas.
O início da estação chuvosa está sendo atrasado.
Antes, no sudeste da Amazônia, começava no fim de setembro, agora está
começando no fim de outubro. Toda a estação seca durava de três a quatro meses,
agora já são quatro a cinco meses. Quando atingir cinco a seis meses, passa a ser
o envelope climático da savana tropical.
Se continuar nesse ritmo, a floresta vai se
degradando, vai sendo substituída por uma vegetação degradada de céu aberto,
com muito poucas árvores, muito pouco armazenado de carbono. Não será mais a
floresta do céu fechado.
• A
atual seca já é histórica. Ela pode ser vista como um sintoma desse processo de
desertificação?
O aquecimento global está induzindo secas mais
frequentes. Nós tivemos cinco secas na Amazônia em menos de 20 anos: 2005,
2010, 2015 e 2016, 2022 e agora, 2023. A seca deste ano está sendo muito forte,
se continuar nesse nível, ela pode até bater o recorde da seca registrada em
2015 e 2016.
Essas secas têm a ver com o fenômeno El Niño no
Oceano Pacífico Equatorial. Mas secas fortes eram raras e agora estão
acontecendo com enorme frequência no sul da Amazônia. El Niños mais fortes
estão acontecendo. Tudo isso acelera a degradação da floresta e esse processo
de mudança drástica no seu bioma, que pode acontecer se alcançarmos o ponto de
não retorno.
• Em
que estágio nós estamos agora? Se seguirmos nesse ritmo de desmatamento, quando
alcançaremos esse limiar crítico?
O desmatamento já está na faixa de 17%. Nos últimos
anos, a Amazônia tem aumentado 1% de desmatamento a cada quatro anos. Seguindo
nesse ritmo, atingiria 20% de desmatamento em menos de duas décadas. De acordo
com os últimos compromissos da COP 27, o aumento da temperatura chegaria de
2,4°C a 2,6°C em 2050. Então, no máximo em 2050 já alcançaríamos o ponto de não
retorno. Mas já estamos vendo o aumento
da mortalidade e da duração da estação seca agora. Isso já está acontecendo, em
todo o sul da Amazônia.
• Temos
como reverter esse quadro de desertificação?
Alguns cientistas até dizem que o sudeste da
Amazônia já atingiu o não retorno, nessa região em que a mortalidade de árvores
aumentou e a floresta virou uma fonte de carbono. Mas vários cientistas como
eu, acham que não. Se conseguirmos zerar o desmatamento, a degradação, o fogo e
criar um grande projeto de restauração florestal em todo o sul da Amazônia,
temos como reverter. Uma vez que a floresta secundária se regenere, ela
consegue absorver muito carbono, baixar a temperatura e reciclar de forma muito
eficiente a água, impedindo a chegada do não retorno.
• A
degradação extrema na parte sul pode comprometer outras regiões da Amazônia?
Compromete as outras partes, porque toda a floresta
ali está reciclando muito menos água. Então os ventos transportam menos vapor
d'água para o oeste da Amazônia, por exemplo, que vai ficar mais vulnerável e também
pode se degradar.
• A
Amazônia entrando nesse processo extremo de degradação e desertificação, quais
seriam as consequências para o resto do país e para o mundo?
A Amazônia presta uma série de serviços
ecossistêmicos. Ela armazena uma grande quantidade de carbono no solo e os
cálculos indicam que se passarmos do ponto de não retorno, numa faixa de 30 a
50 anos, a região vai liberar cerca de 250 bilhões de toneladas de gás
carbônico na atmosfera. Com isso, ficaria ainda muito mais difícil atingir as metas
do Acordo de Paris, a temperatura aumentaria uns 0,3°C a 0,4°C a mais.
A floresta também regula a temperatura da Amazônia,
se ela for substituída por esse ecossistema degradado ou por pastagens e
pecuária, a temperatura sobe na faixa de dois a três graus, e o vento que passa
pela Amazônia e desce para o Cerrado, chegará mais quente, aumentando ainda
mais os riscos para esse bioma.
A floresta recicla uma grande quantidade de água.
Se passar do ponto no retorno, ela passa a reciclar menos água e a exportar
muito menos vapor d'água, que são os chamados rios voadores. Esses rios
alimentam sistemas de chuva ao sul da Amazônia, no Cerrado, no centro, no sul
do Brasil, centro-leste da Argentina, Uruguai, Paraguai, nos Andes, e até no
Sudeste. Além disso, a Amazônia tem a maior biodiversidade do planeta. A
savanização afetará imensamente centenas de milhares de espécies que são
endêmicas, só existem na Amazônia. Elas vão desaparecer. E lógico, isso tem um
grande risco ecossistêmico, risco de epidemias e pandemias, por exemplo.
• Podemos
afirmar que houve um aumento de eventos extremos na região amazônica e eles vão
ficar mais comuns nos próximos anos?
Esses eventos extremos já estão mais comuns. Isso é
devido ao fato de que a temperatura até o ano passado tinha aquecido 1,15°C em
relação à média da temperatura de 1850 a 1900. No mundo, os meses de junho,
julho, agosto e setembro, foram os quatro mais quentes da história, desde que
existem registros históricos, e também a partir de dados geológicos que revelam
um passado ainda mais distante. Nunca a temperatura esteve tão alta. Com isso,
os extremos já acontecem em todo o planeta e também na Amazônia, como os El
Niños mais fortes.
• Que
soluções você propõe para zerar o desmatamento ilegal e garantir que as pessoas
tenham condições de viver na Amazônia com um sustento digno e certa
infraestrutura, sem degradar a floresta?
Primeiro, precisamos de uma ação imediata contra o
desmatamento em todo o sul da Amazônia, porque está muito próximo do ponto de
não retorno. E então zerar o desmatamento em toda a Amazônia até 2030. Esse ano
temos a boa notícia de uma enorme redução de desmatamento na Amazônia
brasileira, 50% até setembro em relação aos mesmos meses de 2022, reduziu
também na Colômbia, no Peru, no Equador.
Fiz parte da idealização do projeto Arcos da
Restauração Florestal, que visa criar talvez um dos maiores projetos de
restauração florestal de todo o mundo, e restaurar pelo menos 500 mil km² de
floresta, um quarto dos 2 milhões de km² desmatados e degradados em toda a
Amazônia.
Por fim, temos que buscar soluções baseadas na
natureza. Desenvolver uma nova economia para a Amazônia. Uma economia baseada
no conhecimento dos povos originários e comunidades locais, em sistemas
agroflorestais, e nos produtos da biodiversidade. Os indígenas convivem há
milhares de anos com a floresta em pé e desenvolveram uma ciência indígena
muito importante, temos que aproveitar esse conhecimento.
Fonte: Deutsche Welle
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