sábado, 28 de outubro de 2023

Jean Pierre Chauvin: Pequeno vocabulário da imprensa cínica

Domingo, 22 de outubro de 2023, das 16h em diante. A intervalos regulares, um empolgado locutor de corrida anuncia que, logo mais, o canal de televisão (cuja marca celebra os morticínios provocados pelas Entradas e Bandeiras, nos séculos XVII e XVIII) exibirá matéria exclusiva sobre a guerra de “Israel contra o Hamas”. Segunda-feira, 23 de outubro, das 20h45 em diante. O noticiário da mesma emissora dedica um bloco inteiro nomeando alguns israelenses desaparecidos, enquanto o rodapé do ecrã realça os dizeres “Israel x Hamas”.

Reparem bem: os mais de cinco mil mortos na Palestina ainda não entraram na conta da emissora; e, como sabemos, não se trata de fato isolado. Por sinal, seria preciso muita ingenuidade para acreditar que se trata de mero ponto de vista de um grupo ou setor. O que estamos a assistir é a tentativa de validar, como única e legítima, a perspectiva veiculada dia e noite por cartéis da comunicação de massa.

Não é o bom senso que alimenta as emissoras; é o cinismo de seus porta-vozes que forja o suposto senso comum, reproduzido orgulhosamente pelos “homens de bem”.

Os donos da imprensa, assim como os senhores da guerra, sabem muito bem como utilizar a ideologia do “direito de defesa” em favor das potências mundiais, reforçando estereótipos. No noticioso, de meia hora atrás, um homem fardado israelense declarou que o ataque ao Líbano (de hoje) teria prevenido ações do Hezbollah.

Foi graças à imprensa corporativa que aprendemos, pela opinião reproduzida por nossos pais, que uns são ditadores e outros, presidentes; que aqueles representam a liberdade de expressão, a propriedade individual e a “saudável” livre-concorrência, enquanto os outros simbolizam formas totalitárias e atrasadas de pensar ou lidar com setores da cultura e da macroeconomia; que uns têm poder de veto, pois seu assento é permanente, enquanto outros, chamados (por um oportunista sem escrúpulo) de países de “pequena relevância”, não merecem sequer ser ouvidos no Conselho de Segurança da ONU.

Que as siglas ONU e EUA comungam de pseudovalores equivalentes, resta pouca dúvida. Porém, há que se perguntar ainda uma vez: qual o horizonte imediato de Israel, Estados Unidos e companhia? Escoar a produção da indústria de armas, despejando balas, mísseis e bombas sobre os civis palestinos, em nome do “bem”. Infelizmente, como as armas são teleguiadas, mas ainda não averiguam identidade, idade, religião e filiação partidária, não demora muito, os porta-vozes do massacre poderão reciclar afrontosamente o que também declarava George Bush sobre os milhares de mortos na guerra “contra o terror”, no Iraque, em outubro de 2015. Até mesmo a CNN reproduziu a notícia em tom crítico, na ocasião.

O objetivo maior, que corre em paralelo aos mísseis, é fortalecer a crença de que é preciso extirpar “o mal”, mesmo porque ele seria praticado por “animais”, como disse um membro do governo genocida israelense. Basta rolar o feed do instagram para topar com vídeos de gente sádica: uma atriz usa ketchup, talco, lápis preto e fruta para ridicularizar o sofrimento de mulheres palestinas e seus filhos; um grupo de israelenses, com crianças, homens e idosos, reúne-se com faixas de incentivo ao Tzahal e gritos de ódio, sugerindo que é preciso exterminar os árabes em geral, preferencialmente os palestinos.

Evidentemente, a luta não é “contra o Hamas”. A começar porque os conflitos entre Israel e Palestina se pautam em mitologias milenares, supostamente fundamentadas em livros sagrados. No Brasil, onde a Bíblia é mais conhecida pelos ateus e religiosos progressistas que pelos crédulos acríticos, os mesmos que se dizem pró-vida e vociferam que “aborto é assassinato” estão lá a hastear orgulhosamente seus preconceitos todos, cristãmente justificados, na defesa intransigente de Israel, fechando os olhos para homens, mulheres e crianças massacradas. Para começar, seria preciso averiguar se os fundamentalistas made in Brazil reconheceriam as diferenças entre os períodos mosaico e cristão.

O vocabulário, ou seja, a escolha lexical dos veículos corporativos de comunicação produz efeitos sérios e, em alguns casos, irremediáveis. Seria relevante investigar se os guardiões dos factoides aprenderam algo com o vendaval neofascista no Brasil. A julgar pelo modo brando como se referem ao candidato da ultradireita argentina, parcialmente derrotado ontem, o cinismo é mais lucrativo que a ética. A simulação de compromisso com a verdade continua a comandar as emissoras de rádio, os canais de tevê, os veículos “com maior credibilidade” e os podcasts, capitaneados por “produtores de conteúdo” tão superficiais quanto oportunistas.

Só um otimista incurável pode vislumbrar saída, neste país de golpistas, reacionários e hipócritas tarados por armas, que:

(1) tentaram contatar alienígenas alternando sinais de luz com mensagens nas línguas dos terráqueos;

(2) oraram em torno de pneus;

(3) treparam no para-choque de um caminhão simulando heroísmo intransigente;

(4) sequestraram filhos de povos originários para “evangelizá-los” segundo a teologia da prosperidade (lucrativa apenas para os pastores de televisão);

(5) juram defender a honra da família, enquanto praticam feminicídio, violentam mulheres e crianças;

(6) votam em inimigos da saúde, da moradia popular, da educação pública etc., etc., etc.

 

Ø  Homo sapiens sapiens: Gaza, o fracasso da espécie. Por Marcos Roitman Rosenmann

 

Não posso deixar de me espantar. O que ouço e vejo é a razão da irracionalidade. O Egito abre um corredor humanitário em sua fronteira com Gaza para que entrem 20 caminhões com alimentos, água e medicamentos na Palestina, cuja população está bloqueada por decisão de Israel. A comunidade internacional, Nações Unidas, União Europeia, OTAN, demonstra satisfação. Os meios de comunicação comentam tal ato como um triunfo humanitário. Aplaudem e pedem mais trailers autorizados.

Enquanto isso, Israel convida para que a zona norte de Gaza seja abandonada, prolongando seus bombardeios. É o mundo de cabeça para baixo. Membros da espécie humana praticam o extermínio de seus semelhantes, com a anuência de outros seres humanos. Suas razões, sejam quais forem, demonstram o desprezo pela vida. A esta altura, alguém deve estar se perguntando, se já não fez isto, como chegamos até aqui?

Em vez de promover a paz, líderes mundiais estimulam a guerra, exigindo que suas regras sejam respeitadas. É preciso matar sem exagerar. Com argumentos canalhas, clamam que Israel tem o direito de se defender, concedendo uma licença para cometer o genocídio do povo palestino.

O que se diz de Israel serve para o genocídio dos povos originários e para as mais de 30 guerras ativas que sacodem o planeta. Não importa se você é um conservador, liberal, progressista ou da autodenominada esquerda democrática, todos confluem: é preciso salvar o capitalismo a qualquer preço, mesmo que isso signifique o fim da nossa espécie.

Para não cair em duplas ou triplas morais, falo do humano que nos faz humanos. Os milhares de migrantes mortos no Mediterrâneo deveriam ser um exemplo suficiente da desumanização que nos afeta.

Não se conhece espécie social que pratique a guerra, a competitividade, a exploração, estimule o ódio, a inveja e a desigualdade como parte de sua organização social. Também não há evidências de espécies cuja existência resulte no colapso de seu nicho ecológico. As crises de extinção são alheias à vontade dos seres vivos que habitam o planeta.

Agora, se nos atermos ao Homo sapiens sapiens, essa máxima não se aplica. Um ser que sabe que sabe, reflete e tem consciência de seus atos, acaba se esquivando de suas responsabilidades. O humano, a relação ética que une a natureza biológica e social, é negado em prol de justificar seus holocaustos. Refiro-me aos fatos.

Nos últimos 100 anos, o ser humano provocou duas guerras mundiais, lançou bombas atômicas sobre a população civil, desenvolveu armas químicas e biológicas com o objetivo de impor uma vontade, seja a favor de uma raça, de um deus ou uma razão cultural. Aviões, drones, submarinos, porta-aviões, tanques de guerra. Tecnologias de morte criadas para gerar terror, medo e submissão.

Os cidadãos do mundo protestam, levantam a voz, saem às ruas, pedem o fim das guerras, desnudando as vergonhas de seus dirigentes. No entanto, nada muda. Ouvidos surdos. A desumanização avança em ritmo acelerado. O verdadeiro vencedor do processo de desumanização é o complexo financeiro-industrial-militar. Na página digital Estrategias de Inversión, a jornalista Raquel Jiménez publica o atual artigo As empresas armamentistas, as grandes beneficiadas do conflito entre Israel e Hamas na bolsa.

Desde a escalada do conflito palestino-israelense, dirá, quatro empresas estadunidenses viram subir os seus valores na bolsa e aumentar seus lucros. A Lockheed Martin recebeu mais de 5,7 bilhões de dólares em contratos com Israel. As ações da Raytheon Technologies sobem desde o dia 7 de outubro, 5,5%. A General Dynamics obtém um lucro de 9,3% e a Northrop Grumman, a quinta maior fabricante de armas do mundo, tem uma rentabilidade de 15,5%, em 10 dias.

Junto a isso, deve-se somar os altos retornos da companhia francesa Dassaut Aviation, com 8,3%; a britânica BAE Systems, a segunda maior contratista militar do mundo, com lucros de 9,6%, e as alemãs MTU Aero Engines e Rheinmetall AG, cujas ações demonstram uma alta de 4 e 15%, desde o dia 7 de outubro. Sem nos esquecer do grupo italiano Leonardo, que está com lucros anuais máximos.

A espécie humana fracassou. O que nos torna humanos, o reconhecimento do outro, a empatia diante do sofrimento, enclausurou-se em nome dos poderosos. Primo Levi, em sua Trilogia de Auschwitz, define a desumanização. É assim que o povo palestino deve se sentir hoje:

“Pela primeira vez, então, percebemos que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem. Em um instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais para baixo não é possível: uma condição humana mais miserável não existe, não dá para imaginar. Não temos nada nosso. (…) Vão nos tirar até o nome: e se quisermos mantê-lo, teremos que encontrar dentro de nós a força para tanto, para que, além do nome, algo nosso, algo do que somos, permaneça (…). Na história e na vida, parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa: a quem já tem, será dado, de quem não tem, será tirado”. Esse algo é a dignidade. Por isso, luta-se.

 

Fonte: A Terra é Redonda/IHU OnLine

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário