Milhares de pessoas foram resgatadas de trabalho escravo contemporâneo
em 2023 no Brasil
A Campanha
Nacional de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da Comissão
Pastoral da Terra (CPT), revela
que os dados parciais do número de pessoas resgatadas até o dia 10 de setembro
ultrapassam de 2.500. Os dados provisórios da campanha, apontam que a violência
contra as pessoas em situação de vulnerabilidade é crescente nos últimos anos.
A CPT coordena a Campanha Nacional de combate ao trabalho escravo desde 1997.
Com o lema “De olho aberto para não virar escravo”, há
mais de 15 anos a campanha recolhe denúncias e colabora para os resgates de
pessoas que caem nas armadilhas do trabalho escravo. A campanha da CPT é
parceira da Comissão Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano (CEETH) da CNBB. O cenário atual do enfrentamento ao trabalho escravo no país
tem avançado e foi uma das poucas políticas públicas que o governo anterior não
conseguiu derrubar.
No início do mês de setembro o Ministério do
Trabalho e Emprego (MTE),
divulgou o resultado da Operação
Resgate III que retirou mais de 500 pessoas de trabalho escravo. A
operação é uma ação conjunta de seis instituições: Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE), Ministério
Público do Trabalho (MPT),
Ministério Público Federal (MPF),
Defensoria Pública da União (DPU),
Polícia Federal (PF) e Polícia
Rodoviária Federal (PRF). Mais
de 70 equipes de fiscalização participaram de 222 inspeções em 22 estados e
no Distrito Federal. A operação conjunta de
combate informou que foi uma das maiores ações de enfrentamento. O estado
de Minas Gerais liderou com maior número
de pessoas resgatadas, 204, no total, maioria em área rural na lavoura de café.
O estado de Goiás ficou
em segundo lugar com 126 e São Paulo em terceiro lugar com 54
pessoas resgatadas. As vítimas foram libertadas de atividades econômicas na
área rural e na área urbana, com destaque para as atividades em restaurantes,
oficinas de costura, construção civil e trabalho doméstico. Os dados da
operação, somados aos dados da Campanha da CPT, indicam que os números de homens, mulheres e jovens em
situação de Trabalho Escravo contemporâneo podem ultrapassar o número
de 2.500.
Frei Xavier Plassat um dos coordenadores
da Campanha Nacional Contra o
Trabalho Escravo da CPT,
em entrevista ao site da Cepast,
confirma que os números da operação em conjunto realizada no início do mês,
confirma que o crime é restrito a uma cultura que perpassa todo o ambiente
brasileiro, tanto empresarial como doméstico. A luta contra a escravidão
moderna é desafio do cotidiano. Frei Xavier alerta que essa luta se
torna ainda maior quando ameaçam ferramentas de enfrentamento, como
a Lista Suja ou quando não há mão de obra por parte do governo para
fiscalizar regiões onde as denúncias são maiores, o caso da região Amazônica da
qual a ação conjunta do último mês não aconteceu. Xavier Plassat também
chama atenção para as novas formas de aliciadores que tentam burlar as leis.
Apesar da ausência de contratação de agentes fiscais pelo Estado, Frei Xavier revela que o número de operações nos últimos três anos
aumentou, se comparado aos anos 2000.
Acompanhe a entrevista com Frei Xavier
Plassat da coordenação da Campanha
de combate ao trabalho escravo da CPT.
>>>> Eis a
entrevista.
·
Qual a sua análise para
esse número de pessoas resgatadas de trabalho escravo no Brasil até este mês de
setembro de 2023?
Os números da operação demonstram a importância em
investir nas operações concentradas e abrangentes do Ministério do Trabalho. O resultado
da Operação Resgate 3, é um
indicativo ao tamanho da realidade do trabalho escravo e
o tráfico de pessoas de maneira geral que é
invisibilizado no Brasil.
Atualmente o Ministério do trabalho dispõe de 45% da força de trabalho
necessária de auditores fiscais. Desde 2003 não foi realizado concurso para
contratação de agentes fiscais, recentemente foi anunciado concurso para
contratar 900 agentes auditores fiscais do trabalho, isso vai resolver apenas
uma parte, mas não soluciona. A realidade que temos à nossa frente diante dos
nossos olhos é muito difícil, temos que se precaver da tendência do aliciamento
moderno, a exemplo da lavoura de frutas no Sul, usou de intermediários “gatos modernos” que exonera o
empregador das suas responsabilidades. Se observa o número crescente do trabalho escravo doméstico,
a exemplo da idosa com mais de 80 anos de idade que ficou mais de cinquenta
vivendo nestas condições. Estes exemplos nos mostram o caminho importante que
temos para desnaturalizar as diversas situações do trabalho escravo que não é
restrito a Amazônia,
lavoura de frutas, canavial, carvoaria e a regiões. Esse crime é restrito a uma
cultura que perpassa todo o ambiente brasileiro, tanto empresarial como
doméstico. Temos que abrir os olhos porque isso não é normal, levanta-se e
denuncie.
·
Considerando déficit
orçamentário, força de trabalho do Estado, quais as razões que contribuíram
para esse enfrentamento?
Faltou investimento para a mão de obra, teve
orçamento para custear as ações realizadas pelo governo. Podemos observar que
nos dois últimos anos houve um número de fiscalização elevado para o
enfrentamento do trabalho escravo. A média de fiscalização entre os anos de
2014 e 2020 era de 250 fiscalizações por ano. Em 2021 esse número saltou para
500 e em 2022 foram mais 540 fiscalizações. Então nestes últimos anos tivemos
o dobro de fiscalização. O
combate ao trabalho escravo foi uma das poucas políticas que o governo
Bolsonaro não conseguiu derrubar e por esta razão conseguimos manter essa
pauta que é um instrumento com capacidade de atuar com vários parceiros
envolvidos, além dos auditores fiscais do Ministério Público do Trabalho (MPT), a Polícia Rodoviária Federal (PRF), a Polícia Federal que
agem de forma articulada que desde 1995 chamamos de grupo móvel. Então nós
saudamos estes fiscais de combate ao trabalho escravo pela força, determinação
para enfrentar os contratempos e marés para mudar essa realidade.
·
A operação resgate III
apresenta um número elevado de pessoas resgatadas na lavoura de café na região
sudeste, já na região amazônica onde há denúncias quase não aparece. Essa situação
corresponde a forma de enfrentamento?
Ao compararmos a situação entre a região sudeste,
neste caso o estado de Minas Gerais, onde a atividade na lavoura
do café é tão
tradicional e o número alto de pessoas resgatadas, se deve número de fiscais
lotado em Minas Gerais, enquanto no estado do Pará o número de fiscais é bem menor e vemos essa
desproporção da quantidade de auditores fiscais na região amazônica. Vejo com
muita preocupação o fato de que na Amazônia não
tem fiscalização nos últimos 10 anos. A Amazônia Legal já registrou no passado 46% dos resgates, este
ano foi 7%. A Operação Resgate III não
ocorreu no estado do Pará. Não houve operação de onde recebemos informações
diárias sobre o desmatamento, mineração ilegal, invasão de territórios
indígenas e violações que se acompanha da prática de trabalho escravo e
que são fadadas a invisibilidade.
Tudo isso se tornou invisível porque houve desmonte nos últimos anos na
fiscalização ambiental, o agronegócio nas
suas várias vertentes continua sendo o carro chefe de onde se encontra várias
situações, tudo isso contribui para a invisibilidade crescente.
·
Em referência aos
empregadores, fazendas e grupos que cometem ou contribui para o trabalho
análogo a escravidão e que acreditam no poder da impunidade, qual a forma da
lei fazer a justiça para estes crimes?
A prática do trabalho escravo ocorre em função da
ganância, o objetivo principal é aumentar a taxa de lucro em comparação ao
resto da categoria. A Lista Suja foi promovida em 2003
no Brasil para
denunciar e punir empresas. O objetivo essencial da Lista Suja é dizer ao
mercado: ‘olha, tem parte de vocês que não estão cumprindo a regra do jogo,
estão jogando com regras erradas’. Expor essas empresas ao mercado não
prejudica somente a imagem do setor, mas prejudica a sua capacidade competitiva
porque cria falsas condições de competição de concorrência, portanto é
interesse da categoria empresarial dos vários setores limpar a sua cadeia produtiva desses maus
jogadores. Por isso a ideia de promover o pacto de empresas contra o
trabalho escravo é importante e essa lista é atualizada a cada seis meses. O
problema a ser enfrentado é que alguns setores fazem pressão para inviabilizar
a eficácia do instrumento comprovado que é a Lista Suja. Uma ferramenta de
enfrentamento reconhecida, inclusive por outros países. Alguns setores promovem
acordos ou decisões judiciais para retirar os nomes das empresas denunciadas
nesta lista.
Portanto, às vezes quando pensamos em punição, se
pensa em prisão, mas oito anos de detenção não é tão eficiente quanto outros
mecanismos. As multas aplicadas pelo Ministério Público do Trabalho, obrigam as empresas e os
empregadores a pagar indenizações por danos morais no individual e no coletivo
para ressarcir pagamentos e direitos trabalhistas. Outra forma também como um
instrumento para a punição é a desapropriação da terra, desde que esse confisco
configure o desrespeito à função social da propriedade, mas desapropriação
efetiva de imóveis rurais tem sido algo raríssimo.
·
O que são e como agem os
aliciadores modernos, os “gatos” modernos?
Um exemplo perfeito é o fato ocorrido nas vinícolas
de Bento Gonçalves (RS), onde mais de duzentas pessoas foram
resgatadas do trabalho análogo a escravo, quase todos eram do estado da Bahia e foram aliciados através
de uma empresa intermediária de mão de obra. O Ministério Público apurou
que a empresa não tinha condições legais para exercer ou prestar esse tipo de
serviço. A empresa não tinha capital para garantir os riscos, além de não ter
os requisitos mínimos exigidos por lei para funcionar como uma empresa. Em
resumo, é o tipo de empresa que faz serviços de intermediações de mão de obra
ilegal. O que tem acontecido é que essas empresas maiores terceirizam a
contratação de mão de obra para diminuir custos e retira a responsabilidade de
algo que possa acontecer com os trabalhadores.
O avanço que nós conseguimos é de
corresponsabilizar a empresa que é a tomadora dos serviços e a empresa
terceirizada, ou seja, a empreiteira que
faz o papel de “gatos”. O que
tem sido um problema é que estas grandes empresas que terceirizam a contratação
de mão de obra, em situações de trabalho análogo a escravo, se dizem
desconhecidas do fato, pois acusam os serviços terceirizados. Na última reforma
trabalhista houve uma legalização para a terceirização, inclusive das
atividades fins e não somente das atividades meio. Então é arguindo do
fato que a terceirização é legal, para o fato que a responsabilidade de quem
pratica o trabalho escravo é da empresa terceirizada. Isso é inadmissível, é
uma forma de mascarar a realidade, principalmente das grandes marcas que estão
na área têxtil, alimentícios e outras produções. Se essa linha continuar será
preocupante, por isso precisamos debater.
·
Como trabalhar a
conscientização do que é a escravidão contemporânea?
A discriminação racial é um dos elementos
envolvidos no tráfico de pessoas e isso é muito visível no trabalho
escravo. A maioria dos trabalhadores resgatados do trabalho escravo são afrodescendentes. Portanto essa
realidade da discriminação racial estrutural é um dos pontos para enfrentarmos
com informação e formações. Parece óbvio, mas é necessário trabalhar a
conscientização sobre essa realidade com a sociedade. Só com o conhecimento é
possível fazer a denúncia.
>>> Trabalho
escravo é crime, denuncie
Uma das formas para enfrentar a violência do trabalho escravo é fazer a denúncia. Além de contribuir no mapeamento, são ações que salvam
vidas. Mesmo que as denúncias sejam baseadas em suspeitas, pode ser feita
através do Disque 100 ou
acesse a plataforma Ipê,
canal de denúncia Ipê é um site ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego que
recebe e encaminha denúncias exclusivas de crime de trabalho análogo ao de
escravo. Outra forma é procurar ajuda através de organizações ligadas à Igreja
Católica e solicitar orientações e ajuda, a Comissão Pastoral da Terra é uma delas.
Fonte: Entrevista com Frei Xavier Plassat, para Cláudia
Pereira, da Comissão Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano (CEETH),
em IHU
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