Entenda por que as crises entre os três Poderes são tão frequentes no
Brasil
Têm sido cada vez mais frequentes conflitos entre
os três Poderes. Uma das possíveis causas da cizânia seria uma incongruência
ideológica entre eles. Um Executivo de esquerda, um Legislativo
predominantemente conservador e uma Suprema Corte de perfil majoritariamente
progressista.
Essa diferença de preferências tem sido tamanha a
ponto de 175 parlamentares terem assinado uma Proposta de Emenda Constitucional
que autoriza o Congresso derrubar decisões do Supremo que o legislativo julgue
que os limites constitucionais da Corte foram extrapolados.
Ao invés de interpretar esses conflitos como
evidência de uma suposta crise institucional, é possível explicar esse fenômeno
justamente como virtude. Ou seja, um sistema político extremamente competitivo
e de perfil “consensualista” não permite que nenhuma força política consiga,
sozinha, ser majoritária.
Imagine se em um país complexo e diverso, como o
Brasil, houvesse um sistema político em que maiorias episódicas pudessem impor
as suas preferências sem grandes restrições. Certamente, os interesses de
minorias circunstanciais seriam alienados e os potenciaIs conflitos tenderiam a
ser muito mais polarizados ou mesmo explosivos.
No Brasil, entretanto, as saídas dos conflitos são
sempre negociadas e pactuadas a todo momento, porque perde-se eficiência
governativa. Tem-se a sensação de que nada acontece.
Quando existe cooperação entre as múltiplas forças
políticas, percebe-se que é fruto de negociações escusas, o que gera mal-estar
generalizado. Embora não de forma consistente, consegue-se impor perdas
políticas e judiciais a quem “cruza o sinal”.
Por outro lado, tem-se a certeza de que não vai
haver mudanças bruscas e que ninguém vai ser capaz de passar o “rolo
compressor” nas posições circunstancialmente minoritárias, como é comum em
regimes majoritários puros.
Mas, paradoxalmente, o jogo não quebra. Não temos
“virada de mesa” justamente porque cada uma dessas múltiplas forças se controla
mutuamente. O equilíbrio desse jogo não é estático, mas dinâmico, pois
raramente existe alinhamento de preferências entre poderes.
Em um ambiente institucional com esta natureza, é
exigido um coordenador (o presidente) com a capacidade de montar coalizões
minimamente coerentes.
Além disso, espera-se que os poderes e recursos
sejam distribuídos proporcionalmente ao peso político de cada um, e que a
coalizão não seja muito distante da preferência agregada do Congresso.
Como nem sempre o presidente tem essa requerida
virtude, a sociedade confunde e vaia o próprio sistema político ao invés do
governante de plantão.
Ø Senador sugere que os ministros do STF se acham “semideuses” e devem
ser contidos
Autor de uma PEC que propõe a fixação de mandatos
para ministros do STF, o senador Plínio Valério (PSDB-AM) rebateu há pouco
críticas à proposta feitas nesta terça-feira pelo ministro Gilmar Mendes,
decano da Corte. A mudança foi defendida nesta segunda-feira pelo
presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
“Agora, ressuscitaram a ideia de mandatos para o
Supremo. Pelo que se fala, a proposta se fará acompanhar do loteamento das
vagas, em proveito de certos órgãos. É comovente ver o esforço retórico feito
para justificar a empreitada: sonham com as Cortes Constitucionais da Europa (contexto
parlamentarista), entretanto o mais provável é que acordem com mais uma agência
reguladora desvirtuada. Talvez seja esse o objetivo”, escreveu Gilmar Mendes no
X (ex-Twitter).
“A pergunta essencial, todavia, continua a não ser
formulada: após vivenciarmos uma tentativa de golpe de Estado, por que os
pensamentos supostamente reformistas se dirigem apenas ao Supremo?”,
complementou o magistrado, que entrou no tribunal em 2002 e poderá permanecer
no cargo até dezembro de 2030, quando completa 75 anos — idade da aposentadoria
compulsória da magistratura.
Também pela rede social, o senador Plínio Valério
afirmou que Gilmar Mendes “está redondamente enganado: a proposta não tem nada
de mais, a não ser impor ao Supremo o sentimento de que eles não são semideuses
e semideuses e que estão sujeitos a mudanças”.
Ø Progressistas erram ao “celebrar” o avanço do Supremo sobre as pautas
do Congresso
O longo voto de Rosa Weber pela descriminalização
do aborto apresenta-se, quase inteiramente, como um discurso parlamentar. A
agenda definida pela magistrada para o Supremo – drogas, marco temporal, aborto
– forma uma pauta de deliberações apropriada ao Poder Legislativo. Por aqui, o
STF produz legislação, enquanto o Congresso dedica-se a distribuir verbas de
emendas a clientelas eleitorais e a indicar ministros ou diretores de estatais.
A alegação dos juízes supremos de que apenas
interpretam a Constituição não resiste nem mesmo a um escrutínio superficial.
Interpretar a Constituição é derrubar o que não pode ser feito; legislar é
decidir regras positivas sobre o que deve ser feito.
Weber determinou o período de aborto
descriminalizado (12 semanas), os magistrados procuram consenso interno sobre o
peso exato da maconha de uso pessoal, Fachin elabora regras específicas para
atribuição de terras aos indígenas.
Ou seja, o STF embarcou no veleiro do
neoconstitucionalismo, doutrina jurídica que, enfraquecendo a separação dos
Poderes, atribui aos magistrados a missão de reformar a sociedade a partir de
uma interpretação extensiva dos princípios constitucionais. O posto de
timoneiro é agora ocupado por Barroso, um expoente da doutrina. Na equipe,
Weber funciona como navegadora.
O neoconstitucionalismo equivale a uma declaração
de guerra dos juízes contra Parlamentos conservadores ou reacionários que
resistem à expansão de direitos sociais.
Na sua fúria legiferante, o STF enxerga-se – e é
enxergado – como representação do estrato mais progressista da sociedade. O
problema é que, como os juízes não foram eleitos, sua campanha de reforma
social tende a gerar consequências contraproducentes.
As regras de origem judicial são leis fracas,
sujeitas a bruscos retrocessos. Na Itália, o aborto é um direito forte porque
foi decidido pelo Parlamento e confirmado por plebiscito popular.
Nos EUA, foi um direito fraco, estabelecido pela
Suprema Corte em 1973 e revogado pelo mesmo tribunal, agora com maioria
conservadora, ano passado. Ao celebrar o avanço dos juízes sobre prerrogativas
parlamentares, os progressistas sacrificam o futuro no altar do presente.
Ruth Bader Ginsburg, icônica ex-magistrada
progressista americana, identificou o equívoco. O crescimento explosivo do
Movimento Pró-Vida, explicou, foi uma reação política ao voto da Suprema Corte
de 1973.
Concluiu daí que o caminho certo exigiria a
articulação da maioria social para consagrar o direito ao aborto em legislação
emanada do Congresso. Na prática, os progressistas que confiam suas pautas a
juízes reformadores estão renunciando ao dever de persuadir os cidadãos.
No Brasil, os partidos de esquerda insistem nesse
tipo de abdicação: Lula e Dilma recusaram-se a defender em campanha eleitoral o
direito ao aborto ou a descriminalização da maconha. Na raiz do silêncio
encontra-se a tese de que a maioria da sociedade é atavicamente conservadora –
e, que, portanto, precisaria ser resgatada do inferno de suas próprias
convicções pela mão providencial dos juízes.
Sondagens de opinião indicam maiorias contrárias à
descriminalização do aborto e do uso recreativo de maconha. O Congresso
espelha, de certo modo, essas inclinações gerais.
Contudo, ideias arraigadas sobre tais temas podem
mudar – com a condição de que as lideranças políticas progressistas tenham a
coragem de reorganizar os termos do debate público. Impera, porém, o medo, que
se traduz pela transferência da responsabilidade ao STF.
Quem ganha são os conservadores e, especialmente,
os reacionários. Nos EUA, legislaturas estaduais engajam-se na criminalização
irrestrita do aborto. Aqui, tenta-se reverter o direito à união homoafetiva.
Nas eleições, ressoará o discurso do voto contra o “governo dos juízes”. Um
Congresso de 11 togados não reinventará o Brasil.
Ø Polarização é problema de difícil solução tanto no Brasil como nos
Estados Unidos
O renomado cientista político Scott Mainwaring
acaba de divulgar, em coautoria com um importante intelectual público, Lee
Drutman, uma proposta de adoção da representação proporcional (RP) nos EUA,
visando a instituição do multipartidarismo naquele país. A justificativa é que
o sistema político americano se tornou disfuncional devido à polarização tóxica
recente.
Os autores argumentam que os EUA são a única
democracia que combina o presidencialismo e o sistema eleitoral majoritário
(distrital). Este desenho institucional só é encontrado em países não
democráticos: Gana, Libéria e Serra Leoa. Nos demais sistemas presidencialistas
adota-se a representação proporcional.
Funcionou nos EUA por que os partidos não eram
politizados: a distância ideológica entre eles era mínima. Democratas
conservadores e republicanos liberais tinham agenda similar.
Nos anos 90, houve intenso debate quando Mainwaring
argumentou algo diferente: que a “difícil combinação” envolvia presidencialismo
e RP, gerando paralisia decisória, polarização que ameaçava a democracia e
dificuldades na montagem de coalizões.
No Brasil, o problema se exacerbaria, acrescentava,
pela RP com lista aberta e um federalismo robusto. O primeiro criaria
incentivos para a indisciplina partidária; o segundo, uma dinâmica centrípeta,
localista, que impedia os partidos de adquirir caráter nacional.
Em sua visão, o resultado seria uma dinâmica
disfuncional nas relações Executivo-Legislativo. Reformas cruciais só seriam
aprovadas com concessões que as descaracterizariam e barganhas corruptas,
gerando instabilidade.
Nos EUA, a polarização na última década teria
levado à quebra do equilíbrio que garantia estabilidade ao sistema. A
combinação entre presidencialismo e multipartidarismo agora é vista não só como
“fácil” mas também necessária para restaurá-la. A RP permitiria que partidos
centristas tivessem viabilidade. A experiência exitosa de Chile, Costa Rica, e
Uruguai seria o modelo a ser emulado.
A terapia proposta pode ser discutida em relação ao
Brasil onde também temos a difícil combinação: a forte polarização foi mitigada?
(como discuti aqui) Sim, a resposta é positiva. Ela também foi crucial na
contenção de Bolsonaro. No entanto há custos e efeitos não antecipados.
No atual governo, os personagens que foram objeto
das críticas mais virulentas, de inimigos da pátria, sob Bolsonaro, ocupam
ministérios e dão sustentação parlamentar ao presidente Lula.
O congraçamento de inimigos reforça a ideia de um
conluio, o que incrementa a própria polarização e legitima outsiders, como
discutido aqui.
O “ministério envergonhado” de Lula — marcado por
posses de ministros a portas fechadas — é o símbolo de que a sociedade o
rejeita.
Ø Disputa entre Congresso e STF é ideológica e o marco temporal causará
muita confusão
O projeto de lei que o Senado aprovou para
restabelecer a tese do marco temporal para as terras indígenas não vale. O STF
já decidiu a questão e o Congresso só pode mudá-la via emenda constitucional
(PEC). A partir do momento em que o STF decidiu, decidir ao contrário é
inconstitucional.
O STF será acionado e dirá que é ilegal. Um detalhe
dessa disputa entre Congresso e STF é que ela é ideológica, entre um Congresso
mais conservador e um STF progressista. As discussões são todas com base em
valores — liberação da maconha, aborto, terras indígenas — questões que a
direita preza muito e que o STF está legislando ao contrário.
E o STF só está legislando porque o Congresso nunca
tentou fazer leis sobre isso. É majoritariamente conservador, mas não tem
maioria de dois terços para aprovar emenda constitucional.
Vão fazer barulho, haverá disputa institucional,
dificuldade para administrar a crise, mas na verdade só com PEC o Congresso
pode mudar alguma medida tomada pelo STF. Importante falar que o STF não mudou
nenhuma medida aprovada pelo Congresso. Se tentasse fazer isso, seria influência
indevida, como o presidente Lula tentou fazer com a desestatização da
Eletrobras, assunto já decidido pelo Congresso.
A disputa do Congresso conservador, STF
progressista e governo de esquerda é o que está causando tudo isso. A decisão
do STF sobre o marco temporal vai continuar valendo, a menos que o Congresso
consiga dois terços para a PEC, o que acho difícil.
Fonte: Agencia Estado/Veja/FolhaPress/O Globo
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