Assassinato do ativista em Direitos Humanos Jamal Khashoggi: o mundo já
esqueceu?
Os ativistas dos direitos humanos sauditas que se
empenham para obter justiça para o jornalista dissidente Jamal Khashoggi,
assassinado em 2 de outubro de 2018, desejariam que a comunidade internacional
adotasse um posicionamento menos utilitário em relação a seu país.
"É sabido que vivemos no mundo real, em que os
governos têm que lidar com a Arábia Saudita", comenta Abdullah Alaoudh,
subdiretor para o país da Freedom Initiative, sediada nos Estados Unidos.
"Mas ignorar os direitos humanos, ignorar os valores democráticos básicos
ao lidar com ditaduras e regimes autocráticos, não serve nem aos direitos
estratégicos do próprio país nem promove os direitos humanos.
"Quem negocia nossas liberdades em troca de
segurança, acaba sem nenhum dos dois", pontifica Alaoudh. Por sua vez,
Lina al-Hathloul, da organização ALQST for Human Rights (al-qist é
"justiça" em árabe), acrescenta: "Ao tratar com a Arábia
Saudita, acreditamos que há um meio de navegar a política atual sem ser
ingênuo."
"Pode-se comprar petróleo saudita e, ao mesmo
tempo, criticar os crassos abusos dos direitos humanos no país. A Arábia
Saudita tem peso de negociação, mas o mundo – a União Europeia, Reino Unido e
EUA – também têm peso sobre ela, e deveriam o estar empregando."
A ativista faz campanha por sua irmã Loujain
al-Hathloul, que esteve presa durante quase três anos por lutar pelo fim da
interdição de dirigir automóveis para as mulheres da Arábia Saudita. Atualmente
liberta, ela está proibida de sair do país.
Além disso, o estudioso do islã Salman Al-Hathloul,
pai de ambas, é prisioneiro político desde 2017 por advogar, numa postagem no
Twitter, a coexistência pacífica entre o Catar e os Estados do Golfo Pérsico.
• Como
morreu Jamal Khashoggi
O caso Khashoggi permanece sendo uma das mais
gritantes violações dos direitos humanos pelo governo saudita, mas, ao que tudo
indica, nos últimos anos a atenção mundial se desviou dele.
Em setembro, o noticiário internacional sobre o
país se concentrou em temas como a potencial normalização diplomática com
Israel, boatos de um pacto de defesa com os EUA, a possiblidade de a rede de
energia saudita ser conectada à da Grécia, e a sensação pela abertura no país
da primeira fábrica montadora americana de carros elétricos Lucid.
Cinco anos atrás, as manchetes sobre a Arábia
Saudita eram bem diferentes: "CIA conclui: príncipe herdeiro saudita
ordenou assassinato de Jamal Khashoggi", acusava o Washington Post.
"Matando Khashoggi: como transcorreu um brutal
crime encomendado saudita", anunciava uma investigação visual do New York
Times.
"Jamal Khashoggi: assassinato no
consulado", estampava o jornal britânico The Guardian.
Em 2 de outubro de 2018, o jornalista Jamal
Khashoggi dirigiu-se ao consulado saudita em Istambul, Turquia, onde tinha
horário marcado para retirar um documento atestando seu divórcio, a fim de
poder casar-se com a acadêmica turca Hatice Cengiz.
Khashoggi havia sido uma personalidade destacada na
Arábia Saudita, sua família tinha conexão de longa data com a realeza. Porém,
quando o príncipe herdeiro e atual líder de fato Mohammed bin Salman começou a
ascender ao poder, o jornalista caiu em desgraça.
Emigrado para os EUA em 2017, ele passou a publicar
editoriais antigoverno mais eloquentes no jornal Washington Post. No ano
seguinte, conheceu Cengiz e propôs-lhe casamento. Ela conta que em 2 de outubro
esperou por dez horas pelo noivo, do lado de fora do consulado. Mas ele nunca
apareceu.
Nos meses seguintes, ao longo de uma sequência,
amplamente coberta pela imprensa, de acusações, negações e contradeclarações,
ficou constatado que o dissidente fora morto dentro do consulado saudita. Seu cadáver
havia sido esquartejado e nunca foi encontrado.
À medida que emergiam os atrozes detalhes, Riad
alegou ter-se tratado de uma operação "clandestina", realizada por
agentes do governo, mas sem o conhecimento deste. Bin Salman negou qualquer
envolvimento pessoal.
Em dezembro, num julgamento a portas fechadas, a
Arábia Saudita sentenciou cinco indivíduos à morte e mais três a penas entre
sete e dez anos de prisão. Mais tarde, as penas capitais foram comutadas para
20 anos de cárcere, e as autoridades declararam o caso encerrado.
• Desconhecimento
de Riad "altamente improvável"
Houve quem discordasse da versão saudita dos
eventos, inclusive serviços secretos americanos e turcos, e o relator especial
das Nações Unidas para homicídios extrajudiciais.
"Avaliamos que o príncipe herdeiro da Arábia
Saudita, Mohammed bin Salman, aprovou uma operação em Istambul, Turquia, com o
fim de capturar e matar o jornalista Jamal Khashoggi", declarou em 2021 o
diretor de Inteligência Nacional dos EUA John Ratcliffe, ressaltando ser
"altamente improvável os funcionários sauditas terem realizado uma
operação dessa natureza sem a autorização do príncipe herdeiro".
Com o processo a portas fechadas na Arábia Saudita
amplamente criticado, houve outras tentativas de obter alguma justiça para o
jornalista assassinado. Em 2020, a Turquia julgou in absentia 26 cidadãos
sauditas, mas no início de 2022 o processo foi sustado: as autoridades
nacionais alegaram que seria impossível dar prosseguimento por os réus não
estarem presentes em pessoa. Segundo organizações de direitos humanos,
tratou-se de uma decisão política, advinda da reconciliação entre Riad em
Ancara após o homicídio.
Cengiz e a organização Democracy for the Arab World
Now (DAWN), cofundada pelo próprio Khashoggi, também iniciaram um processo
civil nos EUA. Contudo também este foi sustado no fim de 2022: segundo o
governo americano, Salman – que fora nomeado primeiro-ministro em setembro –
gozava de imunidade, na qualidade de chefe de Estado.
Enquanto isso, na Arábia Saudita, os quatro filhos
adultos da vítima receberam propriedades de valor milionário, como indenização
pelo assassinato do pai. As autoridades locais alegam tratar-se de uma lei
tribal do país, que prevê ressarcimento, em geral financeiro, por parte do
perpetrador.
• Ditadores
não garantem estabilidade
Apesar de tentativas isoladas de obter justiça,
nesse ínterim está mais do que claro que, em relação a Khashoggi, o mundo
seguiu adiante. Se em 2020 o presidente americano, Joe Biden, ameaçava
transformar Riad em "pária global", devido ao crime de alto escalão,
no fim de setembro de 2023 o secretário de Estado Anthony Blinken emitiu um
comunicado por ocasião do Dia Nacional saudita, expressando o quanto os EUA
"prezam grandemente a relação duradoura com a Arábia Saudita ao longo das
últimas oito décadas".
Analistas alertam que os líderes ocidentais e
outros vêm sistematicamente ignorando os mais recentes abusos dos direitos
humanos na potência doOriente Médio e colocando seus interesses nacionais em
primeiro plano. O petróleo saudita, acima de tudo, é essencial, assim como o
peso financeiro o país e suas insistentes tentativas para se transformar num
protagonista diplomático importante.
"Continuamos lutando, de qualquer modo",
assegura Lina al-Hathlou,. "Como saudita, eu acredito que, no longo prazo,
lutar por Jamal vai trazer justiça para ele, sua família e o seu legado. E no
curto prazo, estamos fazendo questão de lembrar que isso poderia acontecer
novamente."
A partir de Washington, Abdullah Alaoudh, da
Freedom Initiative, tenta convencer as autoridades da política externa
americana a reavaliarem o que ele considera uma falsa dicotomia entre realidade
política e direitos humanos, e a abandonarem a ideia de que ditadores garantam
estabilidade.
"Porque você não está perdendo só o povo
saudita com esse tipo de raciocínio: você perde todo mundo. Pois envia a
mensagem errada, ao mundo e a todos os ditadores, de que enquanto você estiver
sentado em cima de um poço de petróleo, literalmente escapa impune até mesmo
com assassinato."
Fonte: Deutsche Welle
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