sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Projetos antiaborto avançam no Congresso enquanto descriminalização segue suspensa no STF

Enquanto a descriminalização do aborto não avança no Supremo Tribunal Federal (STF), há pelo menos três propostas antiaborto em tramitação no Senado, que podem levar a retrocessos de direitos já conquistados.

A PEC 49/2023, de autoria do senador Magno Malta (PL-ES), altera a Constituição para incluir a garantia de direito à vida desde a concepção. Já o projeto de lei 4281/2023, de autoria do senador Eduardo Girão (Novo-CE), institui o dia do nascituro. Ainda há uma proposta de plesbicito, de autoria do senador Rogério Marinho (PL-RN), líder da oposição no Senado, sobre o aborto, em reação às discussões sobre o tema no Supremo.

O senador Eduardo Girão é um dos principais articuladores da ofensiva antiaborto no Congresso. Ele também é autor de outro PL no Senado, que veta qualquer modalidade de aborto por telessaúde. Essa PEC está em tramitação na Comissão de Direitos Humanos. A telemedicina é regulamentada no Brasil desde 2022, por normas do Conselho Federal de Medicina. O aborto legal, via telessaúde, foi criado pela ginecologista e obstetra Helena Paro, que lançou uma cartilha com orientações sobre o procedimento, em 2021. Desde então, a médica tem sido alvo de vários ataques.

Girão também está entre os senadores que assinaram a favor do plesbicito sobre aborto, apresentado na última terça-feira (26), em resposta ao julgamento no STF. A proposta já reúne 45 assinaturas. Ela pretende que a população vote “sim” ou “não” para a pergunta: “Você é a favor da legalização do crime de aborto?”

Em Brasília, durante a semana de 25 a 29 de setembro, aconteceram mobilizações pela legalização do aborto nas ruas e no Congresso. Nesta quinta-feira (28), dia da Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe, os atos começaram logo cedo, com um grande lenço verde, símbolo da luta pela descriminalização do aborto, estendido sobre o Eixo Monumental, a principal avenida do Plano Piloto. Outras manifestações também aconteceram em várias capitais brasileiras.

Ainda na véspera do dia 28, representantes de organizações feministas de vários estados brasileiros se movimentavam nos corredores do Congresso para articular apoio de parlamentares, tanto para o evento da Frente Feminista Antirracista, realizado no Plenário da Câmara nesta quinta, e também contra o avanço das propostas legislativas antiaborto. A Agência Pública acompanhou visitas do grupo aos gabinetes da senadora Augusta Brito (PT-CE) e Zenaide Maia (PSD-PB), onde o grupo foi recebido por assessores.

“Essas propostas legislativas antiaborto estão sendo impulsionados no bojo dessa discussão da ADPF 442 no STF”, explicou Jolúzia Batista, socióloga e assessora do Cfemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria). A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, é uma ação que busca descriminalizar o aborto, em qualquer circunstância, até a 12º semana de gestação. No Brasil, a interrupção legal da gravidez já é prevista em casos de violência sexual, anencefalia do feto e risco de vida da gestante.

Na semana passada, a ministra Rosa Weber votou a favor da descriminalização do aborto, mas o julgamento foi suspenso por pedido de vistas do ministro Luis Roberto Barroso. Ainda não foi marcada uma nova data.

“Estão ressuscitando propostas legislativas que estavam esquecidas e que agora estão tramitando muito rápido. O projeto do dia do nascituro entrou em pauta no mesmo dia em que a ADPF foi votada, surpreendendo todo mundo”, explicou Clara Wardi, assessora técnica do Cfemea.

A proposta de criação do dia do nascituro, ou seja, daquele que ainda não nasceu, de Eduardo Girão, foi recebido na Comissão de Direitos Humanos da Casa no dia 11 e aprovado no dia 20 de setembro, com relatoria do senador Magno Malta. Agora, ele pode seguir direto para a Câmara dos Deputados, se não houver interposição de recurso até o próximo dia 29.

Durante a visita do grupo feminista ao gabinete da senadora Augusta Brito, a assessora legislativa Olga Leitão, disse que enfrentar pautas antiaborto têm sido prejudicado por outros temas que estão mobilizado a atenção dos parlamentares neste momento, entre elas o Marco Temporal, aprovado no Senado na quarta-feira(27). “Acaba que outras coisas vão passando”, comentou a assessora.

·         “É uma reação conservadora aos nossos avanços”

Dentro das atividades realizadas no Congresso Nacional, para marcar o dia de luta pela descriminalização do aborto, a Frente Parlamentar Feminista Antirracista, encerrada na Legislatura anterior e ainda não oficialmente recomposta, retomou atividades com um seminário no Plenário da Câmara dos Deputados. “É uma frente que pautou lutas e resistências em um momento difícil. A gente agora tem um desafio maior, que é uma combinação de liberdades democráticas para seguir a luta em outro patamar, mas também seguir na luta”, disse a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS), na abertura da programação.

“A obstrução de votações na Câmara e no Senado, anunciada por frentes de direita, é mais do que um recado para o STF. É uma reação conservadora aos nossos avanços: o casamento homoafetivo, que é uma garantia desde 2011, a votação do Marco Temporal e a defesa dos Povos Indígenas e do meio ambiente, e a pauta a legalização do aborto”, acrescentou Melchionna.

“Ainda temos uma extrema direita e um conservadorismo fundamentalista muito organizado aqui no Congresso Nacional. As pautas que envolvem nossa liberdade, nosso corpo, nossos direitos sexuais e reprodutivos ainda vão ser muito atacadas”, diz Talíria Petrone, deputada federal do PSOL-RJ, que participou da abertura do seminário da Frente Parlamentar Feminista Antirracista.

 

Ø  Quase metade dos hospitais para aborto legal em São Paulo tem problemas no atendimento

 

Falta de protocolos e falhas de informação e de capacitação específica para os profissionais de saúde dificultam o acesso ao aborto legal em pelo menos oito dos 20 hospitais cadastrados pelo Ministério da Saúde para realizar o procedimento no estado de São Paulo. A constatação é do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, da Defensoria Pública de São Paulo (Nudem/SP), que encontrou problemas graves durante visitas aos atendimentos.

O Nudem adiantou, com exclusividade para a Agência Pública, uma avaliação parcial das visitas feitas entre maio e junho deste ano. Esse é um resultado prévio de um levantamento mais amplo, que a Defensoria está produzindo sobre a qualidade do serviço prestado em São Paulo. “Até agora, já é possível afirmar que o fato do aborto ainda ser criminalizado dificulta o acesso ao procedimento, mesmo quando ele já é previsto na lei”, explica Nalida Coelho Monte, coordenadora do Nudem. O aborto legal é garantido pela legislação brasileira quando há violência sexual, risco de vida da pessoa gestante e/ou anencefalia do feto.

Durante as visitas, o Nudem identificou a falta de uniformidade dos protocolos para o procedimento em casos como, por exemplo, idade gestacional avançada. O Código Penal não determina a idade gestacional para interrupção da gravidez nos casos já previstos pela lei. Mesmo assim, a Defensoria encontrou hospitais que usam essa justificativa para negar o atendimento.

Foi o que aconteceu com Juliana*, 38 anos, mãe de dois filhos e moradora de Santos. Ela precisou sair do estado para ter acesso ao aborto legal. “Sofri violência do meu ex-companheiro. Demorei para entender que tinha sido estuprada e também para identificar a gravidez, porque tive sangramentos durante todo o período”, conta. Como procurou o serviço de abortamento legal no estado de São Paulo quando estava com mais de 22 semanas de gestação, Juliana teve o direito negado.

Com apoio de uma organização chamada Projeto Vivas, que ajuda meninas e mulheres a acessar o direito ao aborto legal, Juliana conseguiu ser encaminhada ao Hospital Climério, em Salvador (BA), onde o procedimento foi feito. “Recebi apoio financeiro para a viagem, porque estou desempregada e não conseguiria pagar. No hospital, fui acolhida, bem tratada, em momento nenhum me senti julgada, mas foi difícil porque precisei viajar sozinha. Ficar longe da minha família”, lamenta. “É triste porque o fato do meu estado me negar um direito tornou tudo mais difícil. Tive que enfrentar tudo sozinha.”

O Nudem identificou também hospitais que negam o procedimento com menos de 20 semanas de gestação. Em Santo André, por exemplo, de acordo com as defensoras, um hospital informou que só realiza o aborto legal até 12 semanas e seis sétimos de gestação, em casos de violência sexual. “Não há nenhuma regra que determine esse prazo de 12 semanas de gestação como limite para interrupção da gravidez. O que existe é um posicionamento antigo do Ministério da Saúde, que não tem força de lei e já está sendo revisto, sobre a idade gestacional limite para o aborto de 22 semanas”, explica a defensora e coordenadora do Nudem, Nalida Coelho.

Em Bauru, o Nudem identificou que a  interrupção da gravidez também é feita em apenas até 20 semanas. Segundo a Defensoria, nos casos acima de 20 semanas, as orientações no hospital que presta esse serviço em Bauru seriam “levar a gravidez em frente, ficar com a criança, encaminhar para a adoção”.

Pública questionou a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo sobre os entraves para o aborto legal no estado. A secretaria não respondeu até a publicação.

·         “Deixar feto desassistido” é argumento em hospital cadastrado para aborto legal

As defensoras questionaram os hospitais sobre a existência de objetores de consciência, ou seja, membros das equipes de saúde que têm preceitos pessoais que se opõem ao serviço de abortamento.

Em Santo André, segundo o levantamento do Nudem, o hospital que realiza o abortamento legal disse que, embora não haja objetores de consciência, a equipe apenas consideraria “eticamente aceitável a interrupção da gestação avançada [mais de 20 semanas] nos casos diversos de violência sexual”. No caso de violência sexual, o entendimento da equipe seria diferente, de acordo com as informações colhidas pelas defensoras, porque haveria “um conflito entre a vida do feto e a dignidade da mulher, de forma que, segundo eles, haveria uma ‘infração ética’ em deixar o feto desassistido”.

Durante as visitas, as defensoras ainda observaram outros entraves que desencorajam e dificultam o acesso aos serviços de aborto legal em vários municípios de São Paulo. Segundo a Defensoria, os hospitais não apresentaram protocolos para atender mulheres trans.

Outra questão é a falta de divulgação dos serviços pelo poder público. “Não divulgam uma lista pública de hospitais que fazem esse atendimento, com endereço, o que cada serviço faz e as hipóteses de aborto legal. Essa informação não foi repassada nem para a Defensoria. Nós pedimos desde janeiro, mas não tivemos resposta”, conta Nalida.

Em muitos desses hospitais, as defensoras identificaram que as equipes de saúde não tinham recebido capacitações específicas, como em direitos humanos das mulheres, métodos de oferta de aborto legal e aborto por telessaúde, por exemplo. Também uma grande quantidade de serviços que realizam o aborto por meio de curetagem, um procedimento que não é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) há mais de dez anos.

O Nudem continua monitorando a qualidade dos serviços de aborto legal no estado. O levantamento completo e detalhado deve ser apresentado em breve.

 

Fonte: Por Mariama Correia, da Agência Pública

 

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