Marco temporal: votos de ministros ainda colocam em risco direitos
indígenas
Embora a tese do marco temporal tenha sido
rejeitada por ampla maioria do Supremo Tribunal Federal (STF), aspectos dos
votos de alguns ministros causam preocupação em entidades ligadas aos povos
indígenas. Isso porque o ministro Alexandre de Moraes seguiu um
"meio-termo" e apresentou uma tese que pressupõe que proprietários
rurais poderiam receber indenização do Estado pela terra nua, diante da
desapropriação para demarcação. Além disso, o ministro Dias Toffoli determinou
que o Congresso crie leis, em até 12 meses, sobre a exploração econômica em
territórios indígenas, o que pode abrir possibilidades de atividades como a
mineração. O ministro argumentou que a falta de regulamentação não inibiu o
garimpo ilegal e representa uma "omissão inconstitucional" do
Legislativo. O STF deve definir a tese final e analisar esses posicionamentos
na quarta-feira (27/9).
A possibilidade de indenização pela terra nua como
fator condicionante para demarcar territórios tradicionais tornaria o processo
demarcatório inviável, por falta de condições orçamentárias do Estado. Segundo
levantamento da Agência Pública, seria necessário um montante superior a R$ 1
bilhão para indenizar os proprietários rurais — valor 46% maior do que todo o
orçamento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Ao Correio, o
advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael
Modesto, explica que essa condição também aumentaria a judicialização e
violência contra os povos originários, já que as terras entrariam em
disputa.
Entidades questionam a necessidade das
indenizações. "A Apib se opõe a qualquer tipo de indenização, partindo do
entendimento de que a própria constituição aponta o direito originário à terra
e prevê no processo demarcatório as devidas garantias de direitos aos pequenos
agricultores e aos investidores, que possam ter manejado benfeitorias dentro
dos territórios, não demarcados pela morosidade do próprio Estado. Já os
grandes proprietários do agronegócio têm atuado sistematicamente com suas
frentes, confederações e articulações, para manipular leis, a economia e a
política, além do uso da violência e do extermínio, para impedir as demarcações
e se locupletar com as invasões", afirmou a Articulação dos povos
indígenas do Brasil, em nota.
Após o voto de Alexandre de Moraes, a Apib começou
a dialogar com o STF, na tentativa de desidratar a proposta do ministro.
"É como se declarasse inconstitucional o marco temporal, mas inviabilizasse
a demarcação", pontua Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib.
Segundo o especialista, a estratégia de apresentar as contradições do voto do
magistrado deu certo, pois os ministros Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso
apresentaram posicionamentos com aspectos considerados menos prejudiciais aos
direitos dos povos indígenas. Na perspectiva de ambos, a indenização não deve
ser pelas terras em si, mas sim pelo "ato danoso praticado pelo
Estado". Nesse caso, a demarcação não estaria atrelada às indenizações.
"A única forma que você teria de indenizar um
agricultor que perderia a propriedade porque comprou de quem não era dono é
dizer que foi um ato ilícito da União, porque pela demarcação de terra indígena
não cabe indenização”, defendeu o ministro Barroso. Rafael Modesto, do Cimi,
avalia que a natureza da indenização proposta por Zanin e Barroso é
"constitucionalmente adequada". "Poderia resolver a situação,
porque extrai ou joga a discussão das indenizações para procedimento próprio,
retira da demarcação. Essa discussão pode acontecer depois ou a margem do
processo demarcatório. Não é a demarcação que cria o direito indenizatório, mas
o contrário, é a titulação de terras sabidamente indígenas a terceiros pelo
estado federado ou pela União que cria expectativa do direito de alguém",
pontua o advogado.
• Brecha
para exploração econômica em territórios indígenas
Advogados ouvidos pelo Correio criticam o prazo
estabelecido por Toffoli para que o Congresso legisle sobre exploração
econômica em territórios indígenas, pois o tema não estava em discussão no
julgamento do marco temporal e essas atividades representam riscos aos povos
originários. "As motivações expostas pelo ministro não se resolvem com uma
lei. Se hoje há um avanço na exploração das terras indígenas por não-índios,
ela ocorre justamente pela falta das demarcações e pela falta de ação do Estado
em protegê-las. Jogar um tema tão sensível no final do debate, ao invés de
zelar pelos direitos indígenas, estimula ainda mais o avanço sobre essas terras,
que ressalte-se, devem ser as últimas a serem exploradas no país, conforme a
vontade do constituinte", avalia a advogada Paloma Gomes, do Cimi.
A Apib refuta o argumento de "omissão"
apresentado por Toffoli ao cobrar a regulamentação de exploração econômica,
citando o fato de que em 2022, o PL 191/2020, que versa sobre a mineração em
terras indígenas, tramitou em regime de urgência. "Os últimos anos foram
marcados por uma política anti-indígena que desmontou e desfinanciou os órgãos
responsáveis pela implementação da Política Indigenista Nacional e pelo
controle ambiental. Um dos eixos desta política se estruturou justamente sobre
facilitação da abertura de terras indígena à exploração econômica, combinando o
estrangulamento de instituições de proteção socioambiental com discursos e
sinalizações públicas em favor de agentes econômicos interessados nesta
exploração ilegal, que se viram incentivados a cometerem ilícitos ambientais
com a garantira de que não seriam punidos", ressalta a associação.
Entidades indígenas também lembram que essas
atividades ameaçam a sobrevivência física e cultural dos povos. "A
história recente nos mostra que a existência de empreendimentos para extração
de recursos hídricos, orgânicos (hidrocarbonetos) e minerais, na prática, gera
a destruição de territórios indígenas, a contaminação das populações por
agentes biológicos e químicos, como o mercúrio, e o esgarçamento do tecido
social destas comunidades, além de enfraquecer ou inviabilizar sua soberania
alimentar e submeter mulheres e crianças à violência física e sexual",
pontua a Apib.
• No
Congresso
A Comissão de Constituição e Justiça do Senado
também está analisando um projeto de lei sobre o marco temporal, sob relatoria
do senador Marcos Rogério (PL-RO), que fez a leitura do parecer favorável à
tese. "Com sua aprovação, finalmente o Congresso Nacional trará segurança
e paz às populações indígenas e não indígenas, especialmente do campo. Não se
pode aceitar que, 35 anos após a entrada em vigor da Constituição, ainda haja celeuma
sobre a qualificação de determinada terra como indígena, gerando riscos à
subsistência e à incolumidade física de famílias inteiras", disse.
Entretanto, após o STF declarar a tese do marco
temporal como inconstitucional, a bancada ruralista ameaçou obstruir votações no Congresso
Nacional e tem se articulado para apresentar Propostas de Emenda à Constituição
(PECs) sobre demarcação de terras. Esses movimentos têm sido acompanhados com
atenção por indígenas e defensores dos direitos originários. "Não adianta
o Congresso criar uma lei se ela não for reconhecida pelo Supremo. Os
congressistas têm pensado agora em mudar o próprio artigo 231 da Constituição,
para que aí sim, na nova redação, caiba um marco temporal. Essa é a bravata que
eles têm dito", ressaltou a advogada Lethicia Reis, do Cimi.
"Art. 231. São reconhecidos aos índios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."
Defensores do marco alegam que a tese garantiria
segurança jurídica e mais espaço para atividades econômicas do agronegócio. No
Suprema Corte, a análise sobre a demarcação de terras indígenas começou em
2019, com o reconhecimento da existência de repercussão geral do Recurso
Extraordinário 1.017.365, que discute uma reintegração de posse movida contra o
povo Xokleng, em Santa Catarina.
Conselho
estima em 867 terras indígenas impactadas pelo marco temporal; veja lista
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) estima
haver 867 terras indígenas impactadas pelo julgamento do marco temporal no
Supremo Tribunal Federal (STF).
Esse é o número de terras que, segundo o órgão, têm
pendências administrativas, pois ainda não estão registradas em cartório e nem
na Secretaria de Patrimônio da União (SPU).
>>> O número inclui:
• Terras
e reivindicações territoriais sem nenhuma providência: 588
• Terras
identificadas (analisada pela Funai, mas que aguarda portaria do Ministério da
Justiça): 46
• Terras
já declaradas pelo Ministério da Justiça: 65
• Terras
“a identificar”: 146
• Terras
com portaria de Restrição devido à presença de povos em isolamento voluntário:
6
• Terras
já homologadas, mas ainda não registradas na Secretaria de Patrimônio da União:
16
Os dados constam no Relatório “Violência contra os
Povos Indígenas no Brasil” publicado pelo Cimi em 2022.
O relatório lista ainda os estados com terras com
mais pendências, liderada pelo Amazonas:
• Amazonas
(223)
• Mato
Grosso do Sul (151)
• Rio
Grande do Sul (78)
• Mato
Grosso (55)
• Pará
(53)
• Paraná
(35)
• São
Paulo (33)
• Ceará
(31)
• Bahia
(30)
• Rondônia
(28)
• Santa
Catarina (22)
• Minas
Gerais (19)
• Pernambuco
(17)
O Distrito Federal possui uma terra passível de
reivindicação. No relatório do Cimi está batizado como “Fazenda
Bananal/Santuário dos Pajés” e aponta a localização como Setor Noroeste, um dos
que houve intenso investimento mobiliário nos últimos anos na capital federal.
No estado de São Paulo a ampla maioria das cidades
são litorâneas, mas no município de São Paulo há uma aldeia em uma área que faz
divisa com São Bernardo do Campo, São Vicente e Mongaguá.
A aldeia se chama Tenondé Porã e pertence ao povo
Guarany Mbya. Ela se insere na condição de “já declarada”.
Uma outra aldeia está na divisa da capital paulista
com Osasco. A terra se chama Jaraguá e pertence ao povo Guarani.
>>> Dentre grandes cidades que aparecem na
lista estão:
• Uberlândia
(MG)
• Dourados
(MS)
• Campo
Grande (MS)
• Londrina
(PR)
• Curitiba
(PR)
• Teresina
(PI)
• Niterói
(RJ)
• Porto
Alegre (RS)
• Joinville
(SC)
• Boa
Vista (RO)
Fonte: Correio Braziliense/CNN Brasil
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