sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Extrema direita fincou os dentes em Marcelle Decothé para tentar arrancar Anielle Franco do governo

VOCÊ DEVE TER VISTO O POST da então assessora de Assuntos Estratégicos do Ministério da Igualdade Racial, Marcella Decothé, chamando a torcida do São Paulo de “descendente de europeu safade”. O comentário indecoroso acabou com sua carreira no Executivo e lhe rendeu intensos ataques, incluindo acusações de que a jovem negra e periférica seria racista. O que talvez tenha te escapado é que o linchamento de Marcelle tinha um objetivo maior: abrir caminho para que sua chefe, a ministra Anielle Franco, fique mais vulnerável às investidas da extrema direita.

A postagem de Marcelle foi feita no domingo e referia-se à final da Copa do Brasil, entre Flamengo e São Paulo. Dois dias depois, a assessora, que ocupava um cargo chave em uma das pastas mais necessárias para corrigir a injustiça histórica do racismo, foi exonerada. Há quem diga que o caso teve uma repercussão desproporcional. O que eu vejo é um alerta.

Não há dúvidas sobre a infelicidade do post de Marcelle, que revela um descompasso pessoal com seu compromisso institucional. Mas sua exposição e os ataques sofridos são um aviso para as pessoas negras desse governo: elas não terão paz até que saiam da política. Como a sociedade brasileira vive se escondendo atrás de eufemismos, evitando enunciar os problemas e desigualdades que doem, “desproporcional” é uma ótima palavra para disfarçar o racismo nos ataques à assessora.

A reação “desproporcional” é a vingança dos chamados outsiders de 2018 contra uma nova geração de outsiders, que chegou ao Executivo este ano. Os primeiros já são conhecidos: extremistas, violentos, antidireitos, anticultura, neoliberais, homens macho-alfa com porte de arma, que diziam detestar a política tradicional e amavam a liberdade de expressão irrestrita para ofenderem pobres, negros, gays, favelados e outros grupos que, na visão deles, eram “tudo vagabundos”. Essa gente invadiu o mundo da política pelo portal bolsonarista e represou seu ódio racista em 2020 e 2021, acuada pela pressão global dos levantes antirracistas que vieram no rastro do assassinato de George Floyd.

Com a derrota de Bolsonaro, essa primeira leva de outsiders deixou o Executivo federal. Foi substituída, então, por uma nova geração de outsiders, que passou a ser governo com o esforço – muito mais simbólico do que efetivo – de Lula de dar algum grau de diversidade à sua gestão.

Essas são as pessoas que que foram às ruas durante a pressão global antirracista. As que lotaram o funeral de Marielle Franco, enquanto os antigos outsiders quebravam placas com o nome da vereadora. As que tomaram as ruas dos Complexos do Alemão e da Maré, em apoio à candidatura de Lula. As pessoas gays e trans tão humilhadas, os cotistas tratados como peso para a sociedade, os indígenas, negros e negras acuados como “mimizentos”.

Mas há uma diferença crucial entre esses dois grupos de outsiders. O primeiro estava muito mais conectado com a política tradicional que alegava desprezar, muito mais acolhido na estrutura de poder. A violência deles, inclusive, ainda é necessária para blindar os decanos da política conservadora. O segundo grupo é realmente bloqueado dos cargos decisórios.

Assim, sobre Marcelle, não pairou uma repercussão desproporcional, mas uma máquina de moer pessoas como ela: jovem, negra, periférica, ativista de direitos humanos e desconhecida pela política, um corpo estranho nas entranhas do poder. Por isso, digo que isso tudo é muito menos sobre Marcelle, e mais sobre um projeto de destituir esses corpos estranhos. E o próximo alvo, ao que tudo indica, deve ser Anielle Franco.

•        ‘Vamos para cima da Anielle’

A primeira investida da extrema direita e da mídia não foi contra Marcelle Decothé, mas sim contra Anielle Franco. Em um tweet já apagado, o deputado estadual Guto Zacarias, um homem negro do União Brasil paulista e do MBL, escreveu, se referindo a Marcelle Decothé: “A pelega já caiu, agora só falta quem colocou ela lá. Vamos pra cima da Anielle!”.

Os ataques contra a ministra da Igualdade Racial se intensificaram em  24 de setembro, quando ela usou um avião da Força Aérea Brasileira, a FAB, para ir a São Paulo assinar o protocolo de intenção de combate ao racismo no futebol. Se ela devia ou não ter evitado os custos do uso de uma aeronave da FAB pegando um voo comercial é um debate que pode ser feito. Mas não houve qualquer ilegalidade: Anielle é uma ministra de estado e participava de um ato institucional, portanto, tinha direito ao voo.

O Estadão, contudo, fez diversas reportagens (1, 2, 3, 4) sobre o tema, insistindo numa indução de que Anielle fez e segue fazendo algo errado e não deve se manter no cargo. Em 27 de setembro, o jornalista José Roberto Guzzo afirmou que “Anielle Franco é um desastre do começo ao fim”. No rastro do jornal, muitos veículos de imprensa, do ecossistema da extrema direita à grande mídia, repercutiram o caso com títulos que não enfatizavam a missão institucional do ministério, mas sim a final da Copa do Brasil. Quem não leu mais que os títulos está convicto de que Anielle prevaricou ao usar o avião da FAB para dar um rolê em São Paulo.

Essa espera de um erro de gravidade questionável para dar início a um ataque sistemático contra pessoas negras valeu para Margareth Menezes. A ministra da Cultura foi acusada de “inexperiente” em suas primeiras semanas no comando da pasta, depois de uma investigação sobre supostas dívidas de sua organização na Bahia.

Vale também para o ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida, que precisou ser fortemente blindado pela sociedade civil, e especialmente pela comunidade negra, para que não fosse rifado pelos acordos entre PT e o Centrão.

De maneira dissimulada e desonesta, praticamente todos os textos sobre o caso de Anielle Franco fizeram questão de ressaltar que, ao contrário dela, Almeida foi ao mesmo evento em avião comercial. Faltou dar ênfase ao fato de que a pasta de Silvio Almeida não estava envolvida no ato, mas apenas as de Esportes e de Igualdade Racial.

Silvio realmente foi coerente e sensato em ter recusado a “oportunidade” de ir no voo da FAB, mas, sobretudo, foi coerente com o fato de sua ida ter um caráter privado, e não como autoridade do órgão signatário do ato. Silvio é um homem negro, seu pai foi um goleiro negro importante e, principalmente, sua pasta é fundamental para monitorar as violações à dignidade humana empreendida pelo racismo.

•        Anielle Franco e Marcelle Decothé não têm direito ao erro

Pode haver muitos erros na postura ministerial de Anielle Franco. Deslumbramento e inexperiência custam muito caro no mundo da política. Há erros nítidos de leitura política e análise de conjuntura.

Anielle comanda uma equipe de pouca senioridade política. Pode haver o equívoco de querer estar em tudo, gerando gastos e recursos demasiados em ações que podem não trazer qualquer resultado efetivo em termos de política pública geridas pela pasta. Pode haver inclusive má gestão. Mas, com menos de 10 meses de trabalho em uma pasta que nunca existiu e tem o menor orçamento entre todos os ministérios, há tempo suficiente para aprender, refazer rotas e repensar.

A sociedade dá aos homens brancos da política tradicional esse direito. Afinal, inexperiência, ineficácia, gastos desnecessários e declarações equivocadas não são raros entre eles.

O Poder 360 noticiou em 12 de agosto que 104 congressistas pegaram carona com ministros de Lula em voos da FAB – e, para eles, vida que segue. Quando o então ministro da Previdência de Dilma Rousseff, Garibaldi Alves, realmente usou o avião da FAB para ir ao Rio de Janeiro assistir à final da Copa das Confederações, recebeu críticas, mas ressarciu o dinheiro e seguiu no ministério sem ser pressionado a se retirar. A fritura de Anielle Franco, portanto, tem outras camadas, e não é difícil saber quais são. Pessoas negras convivem com a falta de direito ao erro.

Talvez o principal erro de Marcelle Decothé tenha sido não fazer uma leitura correta e profunda sobre quem ela era, de onde veio e onde estava. Se Marcelle tivesse lembrado que o “erro” do então ministro do STF Joaquim Barbosa com Lula é tido até hoje como razão para o presidente relutar em indicar uma pessoa negra para o STF, a ex-assessora teria previsto que não teria nenhuma chance de sobreviver a qualquer falha ou excesso.

A questão principal não é a exoneração de Marcelle. Pessoas tomam posse e são exoneradas a todo o tempo. Se a conduta não bate com o esperado e o ministério entende que não é razoável que o servidor continue na pasta, dar fim à sua atuação ali é legítimo. Mas o caso de Marcelle definitivamente não é sobre isso.

A extrema direita tem sangue nos olhos: os conservadores meritocráticos, que odeiam o discurso sobre raça e gênero, correm para denunciar e protocolar pedidos de explicações no parlamento para cada vez que aqueles outsiders vindos da margem negra se colocam em situações vulneráveis.

Não é normal, nem razoável ver uma jovem negra reconhecida como ativista e defensora dos direitos humanos ser denunciada formalmente como racista. Não é razoável que a branquitude frágil consiga alcançar tão rapidamente a solidariedade dos formadores de opinião, incluindo muitos do campo progressista, que chegam a afirmar que as críticas aos brancos se equiparam simetricamente às ofensas sofridas pelas pessoas negras.

É inaceitável e falacioso que “torcida branca” esteja no mesmo lugar que “cambada de preto” ou que “europeu safade” seja equivalente a se referir a um negro como “macaco”. Não é razoável que esse debate seja interditado sob o risco de ser entendido publicamente como uma “passada de pano”. Ninguém passa pano para pessoas negras. É esse portal aberto pelo extremismo racista e neoliberal que me surpreende. Mas isso é o Brasil para os negros e negras.

 

Fonte: The Intercept

 

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