sábado, 30 de setembro de 2023

Disputa pelo 'coração do mundo': Eurásia e sua centralidade no jogo de poder entre grandes potências

O território da Eurásia (que inclui Ásia, Europa e também o Oriente Médio) possui ligação direta com as disputas por poder hoje em curso no mundo.

Eventos como a formação da aliança sino-russa durante os anos 2000, a criação da Organização para Cooperação de Xangai e o cerco do Ocidente à Rússia e à China estão intimamente relacionados com a busca por predominância nessa que é a região mais importante do planeta.

Ainda durante os anos 1990, o cientista político americano Zbigniew Brzezinski, em sua obra "O Grande Tabuleiro de Xadrez", já havia destacado a centralidade da Eurásia no plano geopolítico internacional, quando escreve que a "Eurásia é o lar da maioria dos Estados politicamente assertivos e dinâmicos do mundo" e que "todos os pretendentes históricos ao poder global tiveram origem na Eurásia".

Como exemplo de países que visam atingir uma espécie de hegemonia regional, Brzezinski citou Rússia, China e Índia, que hoje são membros do BRICS e ao mesmo tempo da Organização para Cooperação de Xangai, representando uma séria ameaça à primazia política e econômica americana.

Fato é que essa relevância geopolítica destacada por Brzezinski em finais do século XX continua claramente em voga em tempos atuais, dada a atenção contínua que a Eurásia tem recebido a nível global. Aliado a fatores como: numerosas populações, alto crescimento econômico e presença de recursos naturais abundantes, a região da Eurásia mais do que nunca detém o potencial de ditar os rumos da política mundial.

Questões como a crise no Leste Europeu (em especial o conflito na Ucrânia) e provocações no Sudeste da Ásia (envolvendo as tensões políticas em torno de Taiwan) apenas ratificam a atenção que Eurásia tem recebido nos noticiários e na academia em todo o mundo.

Nesse contexto, conceitos como Heartland e Rimland, oriundos da geopolítica de meados do século XX, também voltaram a ganhar importância. Heartland, por exemplo, foi um termo cunhado pelo geografo inglês Halford Mackinder em sua obra "O Pivô Geográfico da História" (de 1904), cuja tradução literal para o português equivaleria a "terra-coração", por representar a região central da grande massa terrestre eurasiática.

Por "terra-coração" (Heartland) Mackinder referia-se sobretudo ao Leste Europeu e à porção mais ocidental do Império Russo, que considerava o núcleo geopolítico do planeta, em função de seu potencial territorial, econômico e militar. Dessa forma, o controle do Heartland seria fundamental para qualquer potência que pretendesse empreender um projeto de dominação global, como era o caso à época dos ingleses.

Mackinder defendia o famoso pensamento de que: quem dominasse a Europa de Leste, dominaria o Heartland; quem dominasse o Heartland, dominaria a Eurásia (que o autor também chamava de Ilha-Mundo); e quem dominasse a Eurásia, dominaria o mundo. Isso se deve ao fato de a região, como mencionado anteriormente, possuir bastante abundância em recursos naturais, grandes populações e uma posição (geo)estratégica importante entre a Europa e a Ásia.

Prova disso é que atualmente novas disputas de poder entre as grandes potências têm tido lugar dentro do Heartland, conjuradas por (re)desenhos territoriais no continente, como a reunificação da Crimeia à Rússia em 2014 e a recente adição de quatro novas entidades políticas à Federação da Rússia em setembro do ano passado.

Além do mais, o conflito russo-ucraniano iniciado em fevereiro de 2022 atingiu uma magnitude pouco antes imaginável em decorrência da participação de outras potências importantes no conflito, como Estados Unidos e União Europeia (o chamado Ocidente coletivo). Em verdade, os interesses geopolíticos em torno da Ucrânia por parte do Ocidente são tão grandes que Kiev vem recebendo suporte militar da Europa e sobretudo de Washington já desde as primeiras semanas de combate.

Tal apoio tem sido fundamental para a Ucrânia, ainda que incapaz de almejar qualquer perspectiva de vitória contra os russos. Por outro lado, Moscou conta com parcerias políticas importantes na Eurásia, em especial com China e Índia, países com os quais a Rússia mantém relações próximas.

Outra das principais dinâmicas hoje em curso na Eurásia diz respeito à cooperação sino-russa como garante da estabilidade da Ásia Central, evitando que a região se transforme num foco de instabilidade política, dada sua importância estratégica para ambos os atores.

Afinal, os Estados Unidos (assim como os ingleses no passado) detêm especial interesse na Ásia Central por enxergar nesses países uma espécie de zona de contenção na Eurásia, onde Washington pode atuar para minar os interesses tanto da Rússia como da China.

Ora, para os americanos continua valido o pensamento do teórico geopolítico Nicholas Spykman, que em meados do século XX defendia a tese de que: eram as regiões periféricas – ou limítrofes – da Eurásia (o chamado Rimland) que representavam o verdadeiro epicentro do mundo. Dentro dessa área limítrofe – Rimland – encontram-se por exemplo o Sul do Cáucaso, partes da Ásia Central, o Sul e o Sudeste asiáticos, assim como o Japão e as demais ilhas do Pacífico.

Spykman, portanto, realizou uma inversão clara com relação a Mackinder, afirmando que: "Quem controla o Rimland, domina a Eurásia. Quem domina a Eurásia, controla os destinos do mundo". Disso resultou a política expansionista da OTAN e sua aproximação com países como a Geórgia nos anos 2000, as parcerias estadunidenses no Leste Asiático e no Pacífico, assim como os investimentos americanos e europeus na região da Ásia Central.

Em resumo, desde a Guerra Fria e mesmo após o seu término, o Rimland serviu ao Ocidente como espaço de contestação, primeiro à União Soviética e depois à Federação da Rússia, por meio sobretudo da expansão da OTAN no continente. Como resultado, ao suscitar o interesse da Ucrânia em fazer parte da Aliança Atlântica, Washington e seus aliados concorreram para ampliar as tensões com Moscou a ponto de provocarem o início da operação militar especial russa em 2022.

O Rimland também serviu ao Ocidente como espaço de contestação à China pós-revolução comunista, como demonstrado pelas alianças dos Estados Unidos com o Japão, Coreia do Sul e, mais recentemente, com a Austrália (através do AUKUS), Nova Zelândia e também a Índia por intermédio do Quad.

Dado o alto valor estratégico da Eurásia é que potências extrarregionais como os Estados Unidos (e o Reino Unido antes deles) têm se empenhado para influenciar os processos políticos na região, manifestado isso pelo apoio financeiro e militar americano à Ucrânia e pelas provocações à China em torno da questão envolvendo Taiwan.

Além disso, demais atores de peso como Índia, Irã, Turquia, Arábia Saudita, Paquistão e outros também vêm acompanhando o andamento desses jogos de poder, ao mesmo tempo em que procuram defender suas posições e interesses particulares no continente. É por isso que, sem sombra de dúvidas, a Eurásia é hoje o coração da geopolítica global. Certamente, o coração mais disputado do mundo.

 

       Recursos naturais, desdolarização e mercado: novo BRICS deve mudar domínio global, aponta analista

 

Depois de 13 anos, o BRICS anunciou uma expansão que surpreendeu o mundo e, principalmente, as potências ocidentais. A partir de 2024, o grupo passa de 5 para 11 membros. Abundante em recursos naturais, já impressiona com seus números: 72% das terras raras, cruciais para a tecnologia, e 42% do petróleo.

Para o mestre em história pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Instituto Tricontinental Marco Fernandes, as consequências desse poderio já devem ser vistas no próximo ano: uma alternativa cada vez mais concreta ao uso do dólar no mercado internacional.

"Esses debates só vão aumentar daqui para frente, graças à falta de habilidade dos Estados Unidos com esses temas. Esperamos que no próximo ano, com a assunção oficial dos novos membros do BRICS, possamos ter um avanço concreto [na desdolarização mundial]", diz o especialista em conversa com a jornalista Melina Saad, da Sputnik Brasil.

Formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, o grupo passa a contar também com Argentina, Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito e Etiópia. Conforme relatório do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, o BRICS concentra 75% do manganês mundial, que é crucial na fabricação de ligas metálicas, além de 50% do grafite e 28% do níquel, usado em moedas e aço inoxidável. Ainda possuem 55% das reservas de gás natural.

Outro fator que demonstra toda essa grandeza é a reunião de três dos cinco maiores produtores de lítio no mundo: Brasil, Argentina e China.

"Para os mercados energéticos, o alargamento do BRICS é, por enquanto, em grande parte simbólico — mas é outro sinal de que os países estão explorando formas de contornar o sistema financeiro dos EUA e o alcance do dólar", enfatiza o documento.

Durante encontro na Rússia com legisladores e autoridades da América Latina, o presidente Vladimir Putin frisou que o grupo não é uma aliança militar, "mas uma plataforma para desenvolver posições baseadas na soberania e no respeito recíproco". Independentemente das tendências políticas em cada país, que são diversas, Putin se mostrou confiante que os membros vão se posicionar conforme as preferências de suas populações.

"Enquanto a Rússia detiver a presidência do BRICS, fará de tudo para que os países-membros entendam quais são as perspectivas de seus desenvolvimentos", afirmou Putin.

•        Comercialização de petróleo em outras moedas

Marco Fernandes lembra que o uso de outras moedas na comercialização do petróleo já é uma realidade, diante das sanções impostas por Estados Unidos e demais economias do G7.

"A Rússia e o Iraque já estão vendendo o recurso em yuan chinês, e a Arábia Saudita sinaliza fazer o mesmo. Então teremos um outro golpe possível no domínio do dólar, que em um futuro muito breve pode deixar de ser a única moeda de referência no comércio mundial de petróleo", explica.

Segundo o especialista, por dominarem um elevado percentual das reservas, há ainda a possibilidade de o BRICS regular os preços do petróleo.

"Inclusive esse aumento recente para perto de US$ 100 (cerca de R$ 500) [no preço do barril] em parte tem a ver justamente com uma articulação entre Rússia e Arábia Saudita. [...] Não há dúvida de que, com a entrada dos novos países, o grupo se torna uma plataforma estratégica não só do recurso, mas do ponto de vista energético", alega.

Já o professor de economia do Ibmec em Brasília Renan Silva destaca que, por enquanto, "as reservas mundiais [de dinheiro], inclusive as do BRICS, são compostas por dólares".

Ele cita o desalinhamento socioeconômico como um desafio para o sucesso do grupo, dadas as diferentes políticas monetárias e fiscais. Porém vê como maior potencial de expansão o mercado consumidor dos 11 países.

"Ademais, Brasil e Rússia se destacam na exportação de insumos, a Índia oferta mão de obra a um baixo custo e a China figura como a segunda maior economia global. Isso tem peso nos futuros acordos comerciais com o G7", aponta, em entrevista à Sputnik Brasil.

•        Referência em energia nuclear

Atualmente, só Rússia e China representam 70% da produção de urânio enriquecido no mundo, conforme a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). A Rosatom, empresa estatal russa do segmento, exporta 25% de todo o material consumido pelos Estados Unidos e também um terço do que é usado na União Europeia. Além disso, o pesquisador do Instituto Tricontinental, Marco Fernandes, pontua que o país é o maior financiador e construtor de usinas nucleares no mundo.

"A Rússia tem mais de 30 projetos aprovados ou em andamento em dez países. Por mais que Estados Unidos e França ainda liderem com folga a produção de energia nuclear no mundo, elas dependem da Rússia, que tem feito este movimento de financiar a expansão da rede mundial de usinas. [...] Vejo que o país, no interior do BRICS, tem feito um movimento importante nesse sentido", argumenta.

•        Ampliação de empréstimos

Pouco antes do anúncio da expansão, durante a última cúpula do agrupamento, na África do Sul, a presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o banco do BRICS, Dilma Rousseff, revelou planos da instituição que vão ao encontro da menor dependência do dólar: ampliar a participação das moedas locais de seus participantes em empréstimos.

Em discurso no último mês, Dilma também ressaltou que o bloco conta com 46% da população mundial, 35% do PIB global e maior poder de compra que os países do G7.

"Vivemos uma etapa de conflitos geopolíticos e sanções desenfreadas, que levam ao protecionismo e à insegurança. [...] Mas também é um momento de grande oportunidade para o crescimento do Sul Global, se soubermos enfrentar os desafios. Nesse contexto, o BRICS se torna ainda mais relevante para modificar esse panorama."

 

       Putin: América Latina conduz política independente e terá papel de liderança na política mundial

 

O presidente da Rússia participou de uma conferência em Moscou, onde acolheu líderes políticos, sociais e econômicos dos países da América Latina.

Os países latino-americanos estão adotando uma política independente e terão um dos papéis principais na política mundial, disse na sexta-feira (29) Vladimir Putin, presidente da Rússia.

"Também agora os países latino-americanos estão mostrando um padrão de sucesso na formação progressiva de um sistema multipolar de relações internacionais baseado na igualdade, justiça, respeito ao direito internacional e aos interesses legítimos de cada um", disse Putin durante a Conferência Parlamentar Internacional Rússia-América Latina.

"Nessa nova arquitetura policêntrica, os Estados latino-americanos, com seu enorme potencial econômico, recursos humanos e aspirações de conduzir uma política externa independente e soberana, desempenharão um papel de liderança no mundo, não há dúvida sobre isso", disse Putin.

De acordo com ele, a Rússia deseja sinceramente que os países latino-americanos se desenvolvam de forma progressiva e dinâmica, e que reforcem suas posições na economia e na política mundiais.

"Somos e temos sido a favor de que a América Latina seja forte, independente e bem-sucedida em sua unidade e diversidade", acrescentou o presidente russo.

"Em Moscou se reuniram representantes de autoridades legislativas e líderes de vários partidos políticos, chefes de organizações públicas, especialistas e diplomatas da maioria dos Estados latino-americanos. A chegada de um grupo representativo de legisladores da América Latina, expressando a vontade de seus eleitores e chamados a trabalhar em seus interesses, é uma evidência adicional do desejo dos povos de nossos países de desenvolver uma parceria abrangente e mutuamente benéfica", disse Putin, falando na conferência.

O alto responsável da Rússia referiu que o país está sempre pronto para ajudar países latino-americanos, incluindo em questões como desastres naturais e combate ao terrorismo, ao extremismo, ao crime organizado e ao tráfico de drogas.

Vladimir Putin elogiou em particular o presidente chileno Salvador Allende (1970-1973), o líder revolucionário cubano Che Guevara, e o líder cubano Fidel Castro (1959-2008) por sua luta pela justiça e igualdade social, se lembrando em particular dos encontros com o último.

"Era uma pedra, você sabe. Este é um homem que pensava nas pessoas todo segundo, e não apenas nos cubanos. Ele estava pensando em toda a América Latina também, pensando em todas as pessoas do planeta, da Terra. E, de fato, toda a sua consciência estava enchida de uma preocupação em alcançar o bem comum e a justiça. Era uma personalidade única. Esse é o tipo de pessoa que a América Latina dá à luz", disse.

O líder russo revelou que a Rússia também trabalhará para reforçar as ligações da América Latina com a União Econômica Euroasiática e com o BRICS.

"O BRICS é uma organização desse tipo, não é um tipo de aliança militar, é apenas uma plataforma para coordenar posições e elaborar soluções mutuamente aceitáveis com base na soberania, independência e respeito mútuo."

"As relações modernas de crédito financeiro no mundo estão estruturadas de tal forma que atendem exclusivamente aos interesses do chamado 'bilhão de ouro'. Eles, esse 'bilhão de ouro', ou, para ser mais preciso, os líderes desses países do 'bilhão de ouro', exploram praticamente todos os outros países do mundo. Eles abusam de sua posição tecnológica, informacional e financeira", detalhou Putin.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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