A necessária e inadiável transição: como fazer?
Os sinais da mudança climática estão deixando de
ser alertas de comitês científicos especializados, nem sempre ouvidos e
devidamente considerados. Eles estão se tornando fenômenos presentes no nosso
cotidiano. Os eventos climáticos destrutivos de vidas e territórios concretos
vem se multiplicando e se espalhando pelo mundo. São algo vivido como tragédia
por muitos no acontecer, sem aviso prévio, provocando mortes e ameaçando as
condições de vida de todos nos territórios afetados. As imagens dos desastres e
perdas pelas famílias atingidas se difundem instantaneamente, via imagens
televisivas e redes sociais, impactando até os descrentes.
Estamos convivendo com alarmantes fenômenos
climáticos naturais intensos: chuvas e temporais fora do comum, monumentais
inundações, furacões e ciclones mais numerosos e devastadores, em algumas
regiões do planeta; ao mesmo tempo, secas, ondas de calor, incêndios e
gigantescas nuvens de fumaça, em outras. Também, não é novidade a destruição de
amplos territórios e sua biodiversidade, com montanhas de lixo e poluição, com
a falta de tratamento de saneamento para grandes contingentes humanos, a
contaminação de aquíferos, rios e mares, a falta de água para beber…
Tomamos o clima como algo que é o que é: quente,
frio, ensolarado, nublado, com ventos fracos ou fortes, chuvoso, feio, bonito,
e por aí vai, pois é intrínseco a ele ser instável e surpreendente, mas dentro
de certos limites. Ao sair dos limites, não dá para saber o que vai acontecer.
Convivemos com o clima, falamos muito dele no dia-a-dia, mas não o vemos ou,
melhor, não pensamos o que seria se tudo virasse uma ameaça destrutiva, fora da
normalidade com que fomos acostumados, onde os dias rodam e mudam e nós
seguimos com eles. O quanto o clima é fundamental nem pensamos, pois sempre foi
um elemento dado para a vida. Nossas vidas tem uma relação permanente com o ar
que respiramos, do jeito que está disponível para todas e todos. Sim, notamos
mudanças no dia a dia e sentimos, por exemplo, a poluição. Assim mesmo, vamos
levando a vida, achando que a mudança é coisa restrita a algumas partes do
mundo. Que ilusão! Pior ainda é não associar a mudança climática a todas as
outras mazelas ecológicas e sociais, até políticas pois tudo é produto do mesmo
processo de dominação para acumular riquezas a todo custo, aqueles 1% de super
ricos capitalistas.
O fato central é que o clima é um dos grandes
sistemas ecológicos da integridade natural do Planeta Terra, nosso lugar comum,
nossa base de vida. Apesar disto, tal fato determinante não nos faz
automaticamente pensar nele e nos preocupar em cuidar dele, como ele cuida de
nós. Poucos se dão conta que o próprio clima está sendo destruído, pois vem
sendo colonizado por emissões de gases deste sistema capitalista e seu
desenvolvimento em que todos estamos envolvidos, queiramos ou não. Nosso estilo
de vida e de consumo tem por trás algo destrutivo dos territórios em que
vivemos, tendo o descontrole do clima como uma ameaça oculta mais assustadora
no imediato, mas não se restringe ao clima.
Estamos em comunhão permanente com os sistemas da
natureza e a vida se reproduz em troca com o ciclo natural. Mas, como humanos,
temos a capacidade de inventar modos de nos relacionar entre nós mesmos e com a
natureza, algo admirável. Mas as invenções podem e são agressivas, destrutivas,
tanto pelas relações sociais profundamente desiguais, como pela ameaças de
descontrole total com a destruição do clima e de outros sistemas ecológicos,
parte de um todo natural fundamental e único. Ou seja, vivemos dentro de
“limites ecológicos” que são dados e precisam ser respeitados para garantir a
continuidade da integridade natural que nos dá a vida e o direito de viver das
futuras gerações.
É sobre esta questão que se faz a história humana.
Vivemos hoje no mais destrutivo modo de produção das condições naturais da
vida, pois já superemos vários dos “limites ecológicos” e caminhamos para uma
situação que pode até inviabilizar todas as formas de vida. O fato é que o
capitalismo e seu desenvolvimento movido em busca de acumulação gera uma
economia e um modo de consumo que apontam o colapso, tanto em termos naturais,
pelo extrativismo, destruição – onde a mudança climática é o sinal mais
evidente e perigoso, no imediato –, como em termos de exclusão social e
desigualdade social, destrutivas de gente.
Enfim, precisamos urgentemente de uma transição que
seja sistêmica, transformadora em termos ecossociais, nas relações com a
natureza e entre nós mesmos. Ninguém tem a solução “milagrosa” diante do
capitalismo que mina as condições de vida de todo mundo e destrói a natureza.
Na verdade, não se trata de uma solução, mas de uma busca coletiva de modos de
nos organizar para viver a partir da diversidade de territórios e das nossas
próprias diversidades como humanos, com valores e princípios éticos
compartilhados, nos reconhecendo como humanos titulares de direitos iguais à
vida. Estamos diante da necessidade de fazer valer com determinação o princípio
da igualdade na diversidade humana e na diversidade de territórios humanos do
próprio planeta, nossa comum maior.
Bem, toda esta longa consideração tem a ver com a
busca de “sentidos e rumos”, para além do emergencial. Estamos entrando numa
fase da história humana de emergência total, sem dúvida. Mas não dá para
enfrentar a mudança climática com mais do mesmo, com capitalismo verde, com
geoengenharia, continuando a explorar energia fóssil a todo vapor, com mercado
de carbono, com títulos verdes, com carros elétricos e cidades feitas para
carros, não para gente. As soluções da produção de energia hidrelétrica, solar
e eólica são, sim, mais sustentáveis, mas dependem também, a seu modo, de mais
extrativismo, de mais minerais, alguns raros, para produzir placas solares,
“fazendas” solares e eólicas, hélices gigantescas, torres, linhas de
transmissão, com ocupação de territórios imensos, provocando expulsões de
moradores, no geral de povos e comunidades mais fragilizadas. Basta lembrar o
desastre ecossocial da mais recente hidrelétrica gigante, a Belo Monte, na
grande volta do Xingu, território milenar de vários povos indígenas. Ou, ver o
que está acontecendo no sofrido Nordeste do Brasil com aquelas fazendas solares
e eólicas, mais uma vez contra as comunidades camponesas que buscam formas de
conviver com o semiárido, com cisternas coletando água de chuvas.
Precisamos mudar as bases em que produzimos o
necessário para viver, os estilos de vida, os padrões de consumo, as nossas
concepções e os valores que nos guiam. No linguajar mais científico e
acadêmico, precisamos mudar de paradigma civilizatório. Em linguagem política,
uma transformação sistêmica – transformação ecossocial democrática, como
prefiro definir.
Mas quem e como fazer a transição que aponte a uma
transformação desta magnitude? A partir de minha opção política estratégica de
buscar formas de democracia ecossocial transformadora, determinadas por
hegemonia construída e conquistada a partir do chão da sociedade, em sua
diversidade de identidades e vozes de cidadanias, gostaria de apontar certos
sinais e possibilidades. Inspiro-me em produções e debates animados por algumas
redes mundiais de movimentos sociais, ativistas e intelectuais que tenho
acompanhado, nas últimas duas décadas. Vou destacar algumas ideias que podem
ser consideradas como um saber estratégico comum em construção e
experimentação.
Uma primeira ideia fundamental a descartar é que
não existe um modelo e nem se trata de tentar construir um. O que existe é
muita expressão de cidadanias em movimento, cidadanias ativas, em seus
territórios de vida, voltando às raízes. Claro que não existe “coordenação”
entre este pipocar de iniciativas, mas podemos identificar “fundamentos” comuns
como constantes na maior parte das iniciativas. A questão mais intrigante é que
o modo como nos organizamos no mundo com um sistema hegemônico comandado por um
capitalismo hoje globalizado, neoliberal e financerizado, precisa mudar pois
desconsidera a diversidade planetária – os territórios e sua biodiversidde – e
nos impõe a homogeneidade, um espécie de colonização real e de imaginários,
impondo um estilo de vida e um padrão de consumo a ser almejado que ele produz.
A própria história mostra que mudar com um modelo único imposto a todo mundo é
como continuar fundamentalmente na mesma direção: tratar a humanidade e o
planeta como se só existisse uma forma para tratar conjuntos extremamente
diversos e a seu modo diferentes, condições do próprio viver.
Diante disto, uma primeira e fundamental ideia que
começa a se firmar no seio das redes mundiais a partir de grupos humanos
locais/territoriais é a de valorizar e potenciar o “pluriverso” como
alternativa ao homogêneo. A força da ideia tem a ver com conviver com a enorme
diversidade de situações territoriais e humanas distribuídas pelo planeta, hoje
submetidas a um modo único dominante e, por isto mesmo, destruidor em termos
naturais e excludente socialmente.
Nesta linha, considero algo inspirador a rede
Global Tapestry of Alternatives – GTA (literalmente, Tapete Global de
Alternativas). Trata-se de uma rede em construção, onde os integrantes se
conectam e trocam experiências e saberes entre si e com muitas outras
iniciativas territoriais e suas redes, tecendo e ampliando o “tapete” com sua
diversidade de territórios, suas gentes com engajamentos e imaginários
mobilizadores, criando sentido de fazer outro mundo acontecer. No momento, na
Great Transition Initiative – GTI e na rede onde se debatem temas relacionados
– Great Transition Network – GTN – está havendo uma discussão extremamente
interessante, com textos de muitos participantes, a partir de um texto
produzido por Ashish Kothari e Shrishtee Bajpai sobre a proposta da GTA.
A intrigante questão tem a ver com a própria ideia
de tecer continuamente um tapete com diversidade de cores e formas humanas e
territoriais. A transformação sistêmica virtuosa aí contida vai na linha dos
Zapatista: fazer “muitos mundos no interior de um mundo”. A diversidade é um
dos elementos fundamentais do Planeta Terra e, portanto, de nosso viver como
humanos. Construir a partir dos “territórios humanos” como comuns
compartilhados dá origem ao conceito de “pluriverso” de soluções e de
movimentos que lutam por alternativas.
É possível e precisamos realizar uma enorme
cartografia social planetária de iniciativas, muito mais diversas e complexas
do que a gente imagina. Todas legítimas a seu modo e que existem porque tem
gente engajada nelas, localmente. Será uma cartografia de iniciativas locais
com vocação de tecer um outro global por fios que juntam e unem, sem negar ou
destruir diversidades. Certamente, cada iniciativa é portadora de inovação e,
por isto mesmo, prenhe de muito saber estratégico, desenvolvido para aquela
realidade ecossocial local, territorial, um quilombo, uma reserva de povo
indígena, uma área de extrativismo sustentável, uma cidade, uma periferia, um
município, em busca do bem comum e do bem viver, uma iniciativa solidária para
acesso à água, para a produção orgânica, para manter o emprego num
empreendimento em vias de extinção por causa de ganância do empresário, um
espaço de educação popular, uma creche comunitária, uma cozinha solidária… Bota
diversidade nisto!
Isto, sem dúvida, é um aspecto fundamental. Mas o
problema da mudança é de transição sistêmica, que precisa acontecer no mundo
todo, no Planeta todo, mantendo a sua fantástica e poderosa diversidade
ecossocial para tentarmos viver diferentemente, em relação virtuosa com o que
existe no local em que vivemos. Questão que precisamos enfrentar na luta contra
o capitalismo imposto e seu desenvolvimento destruidor e excludente, com todas
as outras mazelas somadas (colonialismo, racismo, patriarcalismo, violência,
etc). Mas o caminho não é de cima para baixo. Trata-se de ser e agir
radicalmente de baixo para cima, formando um tapete global de muita diversidade
humana e territorial, dando lugar para todas e todos. É uma perspectiva
estratégica de regeneração planetária baseada na diversidade ecossocial, não na
tecnologia em busca de aumento da produção e lucros para os donos do capital.
Aliás, continuamos precisando muito de ciência e tecnologia, mas a serviço do
bem comum.
A internet, criada num dos centros de excelência, o
MIT, e registrada como creative common é uma ferramenta a serviço da conexão da
diversidade quase sem limites. A sua privatização por grandes plataformas a
serviço da mercantilização da informação está produzindo uma nova conquista e
colonização de todos os povos a serviço da acumulação de não muito mais do que
uma dezena de trilhonários. Mas há iniciativas pela “libertação” da internet
para que seja um comum planetário, como a água, as línguas, o saber, o ar que
respiramos, a biodiversidade e muitos mais.
Na verdade, trata-se de buscar o comum no
pluriverso de iniciativas: concectar-se com respeito à diversidade, a partir do
diálogo e tecendo conexões, coisa que, por exemplo, o FSM não conseguir
produzir, aliás até se recusou a buscar o sentido político transformador que
tal construção implicaria.
Isto é apenas um apontar de pistas. Não consigo
estar acompanhando tais debates e não socializar, pois desde meu território de
“adoção”, na periferia da Região Metropolitana do Rio, continuo com aquela gana
de analista e ativista que quer mudar o mundo. O último debate na rede da GTI
está sendo sobre a necessidade ou não de um Movimento Cidadão Global para a
“grande transição”. As contribuições a partir do texto sobre GTA tem sido
fantásticas, mas as divergências são sobre o movimento global em si, como se
fosse possível um. Talvez o foco seja fortalecer a diversidade das conexões a
partir dos territórios e situações humanas e não um “centralismo democrático”
definidor da tal “linha correta”, que alguns continuam propondo.
Deixo para uma próxima postagem alguns aspectos
mais inspiradores no sentido de conexões da “pluridiversidade”, algo em si
mesmo nunca completo, pois viver é ir mudando sempre… exatamente para poder
viver.
Fonte: Por Candido Grzybowski, em Sentidos e Rumos
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