As possíveis consequências para Bolsonaro e generais por suposta
reunião do golpe
A delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid,
ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), deverá ser um dos
principais temas das próximas reuniões da Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito (CPMI) dos atos de 8 de janeiro, que terão sessões ao longo desta
semana.
Aguardada com ansiedade tanto por apoiadores quanto
por opositores de Bolsonaro, a delação foi fechada com a Polícia Federal (PF) e
homologada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.
Cid teria narrado à PF que Bolsonaro teria
participado de uma suposta reunião com militares do alto escalão, de acordo com
reportagens do portal UOL e do jornal O Globo, na qual se teria discutido uma
minuta de um ato presidencial para convocar novas eleições e prender
adversários.
A suposta reunião teria ocorrido em 24 de novembro,
após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno das eleições
em que Bolsonaro foi derrotado.
As reportagens não apontam os nomes de todos os
oficiais que teriam participado dessa reunião. Mas afirmam, citando a delação
de Cid, que o então comandante da Marinha, o almirante Almir Garnier, teria demonstrado
apoio à suposta tentativa de impedir a posse de Lula.
A BBC News Brasil não conseguiu localizar os
contatos do militar e não identificou os contatos de sua defesa.
Procurada pela BBC News Brasil, a Marinha disse em
nota que não teve acesso à delação de Cid e que não se manifesta sobre
processos investigatórios que tramitam no Judiciário.
Afirmou ainda que "eventuais atos e opiniões
individuais não representam o posicionamento oficial da Força" e que a
Marinha está à disposição da Justiça para contribuir com as investigações.
Em nota publicada na semana passada após a
divulgação dos relatos de Cid, advogados de Bolsonaro afirmaram que o
ex-presidente "jamais tomou qualquer atitude que afrontasse os limites e
garantias estabelecidas pela Constituição" e que, ao longo dos quatro anos
de seu mandato, "sempre jogou dentro das quatro linhas da Constituição
Federal".
Após a publicação das reportagens sobre a delação
de Mauro Cid, o atual ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, disse querer que
o episódio seja esclarecido e admitiu que pudesse haver oficiais favoráveis a
um possível golpe de Estado.
"Essa questão do golpe, acho que eram questões
isoladas. Podia o Garnier querer, mas a Marinha não queria", disse o
ministro em entrevista à Revista Veja.
Múcio disse ainda esperar que a delação premiada
possa ajudar a identificar eventuais "infratores" envolvidos em uma
suposta tentativa de golpe.
"Torço para que as delações aconteçam e tenho
certeza de que as Forças Armadas irão se antecipar e tomar suas posições com
relação a todos os pretensos infratores. Vai ser bom para as Forças e vai ser
bom para o Brasil. As Forças Armadas estão ao lado da sociedade", disse o
ministro na mesma entrevista.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam
que, caso seja confirmado que a reunião ocorreu e que foi discutido de fato um
plano para mudar o resultado das eleições, os participantes do suposto encontro
teriam cometido crimes como tentativa de golpe de Estado, abolição ao Estado
democrático de direito e prevaricação (quando um funcionário público tem
conhecimento de uma irregularidade, mas não toma medidas para impedi-la).
As penas, segundo os especialistas, variam de
quatro a doze anos de prisão.
Mas estes mesmos especialistas enfatizam que ainda
é cedo para afirmar categoricamente que esses crimes foram cometidos.
Segundo eles, é preciso que a PF aprofunde as
investigações e encontre elementos que corroborem a versão dada por Mauro Cid.
Investigadores da PF ouvidos pela reportagem vão na
mesma linha e ressaltam que uma delação é apenas uma parte da investigação e
que precisa ser comprovada ao longo do inquérito.
·
Abolição do Estado
democrático de direito
Os dois principais crimes que, segundo os
especialistas, poderiam ser atribuídos a Bolsonaro e aos oficiais presentes à
suposta reunião, caso o relato de Cid seja verdadeiro, são abolição violenta do
Estado democrático de direito e tentativa de golpe de Estado.
De acordo com o Código Penal, o primeiro crime se
configura ao "tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o
Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos
poderes constitucionais".
As penas para esses crimes variam de quatro a oito
anos de prisão.
O segundo crime, golpe de Estado, acontece ao
tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente
constituído. As penas vão de 4 a 12 anos de prisão.
Os dois crimes foram incorporados ao Código Penal
brasileiro somente em 2021 e são a base das acusações feitas aos réus que
respondem a processos criminais por terem invadido e depredado as sedes dos
Três Poderes, em 8 de janeiro deste ano.
"Em tese, um presidente da República que
convoca uma reunião para um ato golpista pode, sim, estar cometendo crimes,
inclusive crimes de responsabilidade", diz Juliana Bertholdim, professora
de Processo Penal da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Paraná.
O criminalista Celso Vilardi, professor de Direito
Penal, também avalia que os crimes investigados com base no relato de Mauro Cid
seriam a abolição violenta do Estado democrático de direito e golpe de Estado.
Ele diz, no entanto, que os elementos divulgados
até agora ainda seriam insuficientes para atribuir, de forma peremptória, os
crimes tanto a Bolsonaro quanto aos militares.
"É preciso saber se nessa reunião foi discutida
alguma ação concreta para tirar essa suposta minuta do papel. Se nenhuma
atitude foi tomada, não acho que podemos falar que houve crime", disse.
"Você pode dizer: 'Pretendo matar alguém.
Posso fazer isso com o apoio de terceiros'. Isso não significa que estamos no
campo do crime. O crime vai começar a partir de atitudes concretas que, no meu
modo de ver, ainda não estão próximas de estarem comprovadas."
Ricardo Jacobsen, professor do programa de Ciências
Criminais da PUC do Rio Grande do Sul, concorda com Bertholdi e afirma que, no
caso do crime de tentativa de abolir o estado democrático de direito, a mera
convocação de uma reunião com chefes militares para discutir uma suposta minuta
golpista já poderia ser vista como um crime.
"No Direito Penal, uma das coisas fundamentais
é estabelecer se houve ou não o dolo, ou seja, a intenção. Me parece, no
entanto, que se o presidente convoca uma reunião para discutir essa minuta, ele
passa à fase de execução do crime. A mera tentativa já enseja uma punição",
afirma o professor.
Bertholdi ressalta que o próprio tipo penal cita o
termo "tentativa" de abolição do estado democrático de direito.
"Porque se o sujeito que empreender essa
tentativa tiver sucesso, não teríamos um Judiciário constituído para fazer o julgamento,
logo, não faria sentido que o crime só existiria na sua forma consumada",
diz a professora.
"A dificuldade ao analisar o caso é saber se
eles chegaram ao ponto de tentativa de abolição do estado democrático de
direito ou se as conversas estavam apenas na fase das ideias sem um plano
estruturado."
Jacobsen avalia que o seu entendimento também
poderia ser aplicado ao almirante Garnier que, segundo as reportagens do UOL e
do jornal O Globo, teria demonstrado apoio à suposta tentativa de impedir a posse
de Lula.
"Se um dos militares declarou apoio a um
suposto plano golpista, esse oficial poderia responder pelo crime de golpe de
Estado", diz.
·
Prevaricação e prisão em
flagrante
Outro debate que se teve logo após a divulgação de
detalhes da delação premiada de Mauro Cid é sobre se os militares que teriam
participado da reunião poderiam ser punidos por prevaricação ou se poderiam ter
dado voz de prisão contra Bolsonaro.
Os juristas Celso Vilardi e Pierpaolo Bottini
afirmam que, mesmo que Bolsonaro tivesse deixado claro na suposta reunião uma
intenção de dar início a uma ruptura do regime democrático, os oficiais não
poderiam ter dado voz de prisão ao então presidente.
"Há uma imunidade aos presidentes da República
prevista na Constituição Federal. Ele só poderia ser preso após uma sentença
condenatória expedida pelo STF. Ele poderia responder pelos crimes no exercício
da Presidência, mas só poderia ser preso após o fim do seu mandato",
explica Bottini, que é professor de Direito Penal na Universidade de São Paulo
(USP).
Celso Vilardi também avalia que o presidente não
poderia ser preso nestas uspostas circunstâncias.
"Os comandantes militares teriam que comunicar
às autoridades sobre essa reunião e, aí, uma investigação seria feita",
diz.
A resposta de Vilardi, em parte, aponta sua opinião
sobre qual deveria ter sido a conduta dos oficiais caso eles tenham sido, de
fato, apresentados a um plano golpista. Caso eles não tenham tomado essa
medida, teriam, em tese, cometido do crime de prevaricação.
No Código Penal, o crime de prevaricação ocorre
quando um funcionário público retarda ou deixa de praticar um ato dentro de
suas atribuições para satisfazer algum interesse ou sentimento pessoal. As
penas previstas para esse crime variam de três meses a um ano de prisão.
Em situações como essa, em função do tamanho
reduzido da pena, raramente os acusados cumprem a pena na prisão.
No caso da suposta reunião que teria sido citada
por Mauro Cid, Vilardi defende que os militares deveriam ter procurado as
autoridades competentes para reportar o teor da suposta reunião.
"Ainda que não coubesse a prisão por conta da
imunidade presidencial, se estava em curso um golpe de Estado, eles deveriam
instaurar um procedimento para apurar o caso ou procurar as autoridades
responsáveis por investigar o presidente", afirmou.
Entre as autoridades que Pierpaolo e Vilardi
mencionaram estão a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e a Procuradoria
Geral da República (PGR).
·
Perda de patente
Além das consequências no âmbito criminal, os
militares que caso venham a ser condenados por um suposto envolvimentos na
reunião que teria sido mencionada por Cid ainda correriam o risco de enfrentar
processos na Justiça Militar.
De acordo com a legislação brasileira, oficiais da
ativa ou da reserva condenados por crimes comuns podem ser submetidos a tipo de
processo que tramita no Superior Tribunal Militar (STM) destinado a avaliar se
o militar é digno ou não de permanecer nos quadros das Forças Armadas.
No caso de serem considerados indignos, os oficiais
ficariam sujeitos à perda de suas patentes e a até mesmo ser expulsos das
Forças Armadas.
·
O caminho das investigações
Investigadores da PF ouvidos pela BBC News Brasil
em caráter reservado afirmam que delações premiadas como a de Cid são apenas
uma parte da investigação e, antes de resultarem em indiciamentos, denúncias ou
condenações, elas precisam ser comprovadas a partir do andar das investigações.
No caso de Mauro Cid, a PF ainda deverá tomar novos
depoimentos de Mauro Cid e procurar provas que comprovem ou refutem o relato
dado pelo ex-ajudante-de-ordens.
Caso as provas encontradas indiquem que o relato
seja verdadeiro, caberá à PF indiciar os participantes da reunião com base nas
responsabilidades de cada um deles.
Após o indiciamento, caberá ao Ministério Público
oferecer uma denúncia contra os suspeitos. Só depois que a denúncia for feita e
aceita pelo STF é que os ministros e ministras da Corte deverão julgar o caso.
A suposta reunião que teria sido mencionada por Cid
em sua delação é investigada no bojo do inquérito que investiga atos
antidemocráticos e que tramita no STF.
Cid, porém, é investigado em outros inquéritos como
o que apura a suposta venda ilegal de joias dadas de presente a Bolsonaro e o
que apura a suposta fraude em cartões de vacina de Bolsonaro, seus auxiliares e
de sua filha.
Em relação a esses dois casos, Bolsonaro e sua
defesa já deram declarações negando seu envolvimento em irregularidades.
Além das investigações no âmbito jdo Judiciário, a
delação de Cid também teve repercussões no mundo político. Desde que detalhes
do seu conteúdo começaram a ser divulgados, integrantes da Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito (CPMI) do Congresso Nacional que investiga os atos de 8 de
janeiro passaram a pressionar pela convocação do almirante Garnier para depor.
A relatora da comissão, senadora Eliziane Gama
(PSD-MA), disse em entrevista a veículos de imprensa na segunda-feira (25/9)
que gostaria de ter os depoimentos de Garnier e outros dois ex-comandantes
militares: o ex-comandante do Exército, general Freire Gomes, e o ex-comandante
da Aeronáutica, brigadeiro Baptista Júnior.
É preciso que os requerimentos de convocação dos
três seja votado pelos integrantes da CPMI. Gama disse esperar que isso ocorra
na terça-feira (26/9).
Fontes ouvidas pela BBC News Brasil em caráter
reservado afirmaram, porém, que ainda não há consenso entre os integrantes da
comissão se Garnier será ou não convocado a depor.
Fonte: BBC News Brasil
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