quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Supremo declara inconstitucional tese da legítima defesa da honra

A tese da legítima defesa da honra, ainda usada por acusados de feminicídio, não é, tecnicamente, legítima defesa. Portanto, não exclui a ilicitude do ato. Além disso, tal argumento viola os princípios constitucionais da dignidade humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero, estimulando a violência contra mulheres.

Com esse entendimento, o Supremo Tribunal Federal decidiu nesta terça-feira (1º/8), por unanimidade, que é inconstitucional o uso da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio, tanto na fase processual quanto pré-processual, bem como perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.

O Supremo já havia formado maioria contra a tese em junho. Na sessão desta terça-feira, o julgamento foi finalizado e os ministros acompanharam uma alteração proposta por Dias Toffoli, relator do caso.

Toffoli incluiu em seu voto trecho segundo o qual não fere a soberania do Tribunal do Júri o provimento de apelação contra absolvições fundadas na tese da legítima defesa da honra.

Votaram na tarde desta terça as ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber, presidente do STF. Para Cármen, a tese da legítima defesa da honra admite como aceitável que se mate mulheres, sem que os agressores sejam punidos.

"É preciso que isso seja extirpado inteiramente. Mais que uma questão de constitucionalidade, que tem como base a dignidade humana, estamos falando de dignidade no sentido próprio, subjetivo e concreto de uma sociedade que ainda hoje é sexista, machista, misógina e mata mulheres apenas porque elas querem ser o que elas são: mulheres donas de suas vidas", disse a ministra.

Para Cármen, é um bom momento para que o Judiciário retire do cenário jurídico a "possibilidade de se ter como aceita a morte provocada por um homem, sem pena alguma [a ele imposta]".

"A jurisprudência há de se fazer coerente com o tempo em que vivemos. Um tempo de dignidade humana descrita constitucionalmente, mas de indignidades desumanas que prevalecem, especialmente contra alguns grupos".

Segunda a votar nesta terça-feira, a ministra Rosa Weber afirmou que a tese da legítima defesa da honra traduz expressão de uma sociedade "patriarcal, arcaica e autoritária".

"Não há espaço no contexto de uma sociedade democrática, livre, justa e solidária, fundada no primado da dignidade da pessoa humana, para a restauração de costumes medievais e desumanos do passado, pelos quais tantas mulheres foram vítimas da violência e do abuso por causa de uma ideologia patriarcal fundada no pressuposto da superioridade masculina."

"Atualmente, sob a égide da ordem constitucional de 1988, a sociedade brasileira comprometida com o princípio da dignidade da pessoa humana e com o repúdio à violência e à todas as formas de discriminação, já não mais tolera que nenhuma pessoa seja privada do direito à vida", concluiu.

ADPF

A decisão foi tomada na ADPF 779, ajuizada pelo PDT. Na ação, a legenda pede para que seja afastando o entendimento da legitima defesa da honra e que se dê interpretação conforme a Constituição ao artigo 483, III, § 2º, do Código de Processo Penal.

Ao votar em junho, Toffoli afirmou que  a tese não se enquadra na legítima defesa estabelecida pelo artigo 25 do Código Penal: "Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem".

O relator destacou que quem usa violência contra a mulher para reprimir um adultério não está protegido por essa excludente de ilicitude. Afinal, essa pessoa não está se defendendo de uma agressão injusta, mas atacando uma mulher "de forma desproporcional, covarde e criminosa".

Ele também ressaltou que a honra é um atributo personalíssimo, que não pode ser abalada em virtude de ato atribuído a terceiro. Quem tiver sua honra lesada pode buscar compensação por outros meios, como ações cíveis, disse Toffoli.

"A legítima defesa da honra é recurso retórico odioso, desumano e cruel, usado por acusados de feminicídio para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo para a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no país", disse.

 

       O que muda com o fim da alegação de 'legítima defesa da honra' em feminicídios

 

Em uma decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal (STF) invalidou o uso da tese da "legítima defesa da honra" em julgamentos de feminicídios no tribunal do júri.

Com isso, acusados não poderão ser absolvidos usando o argumento, que não tem respaldo em leis, como base. Se autoridades ou réus insistirem em usar a tese, terão o ato ou o julgamento anulados.

Entenda nos pontos a seguir a decisão tomada pelo Supremo:

•        O que é o feminicídio?

•        Por que os casos de feminicídio são julgados no tribunal do júri?

•        O que é a tese da "legítima defesa da honra"?

•        Por que o júri admitia o argumento?

•        O que dizia a ação do PDT?

•        Por que coube ao STF analisar o caso?

•        O que muda na prática?

•        Quais os efeitos da decisão?

•        É possível recurso?

<<< O que é o feminicídio?

O feminicídio ocorre quando uma mulher é assassinada por "razões da condição de sexo feminino" — isto é, por violência doméstica ou familiar, ou discriminação à condição de mulher.

Na prática, quando o assassinato é cometido nessas condições, o criminoso está sujeito a uma pena de 12 a 30 anos.

•        Por que os casos de feminicídio são julgados no tribunal do júri?

Pela Constituição, os crimes dolosos — praticados com intenção — contra a vida são julgados pelo tribunal do júri. Entram na classificação homicídios e suas variações.

O tribunal do júri é um sistema de julgamento no qual a acusação criminal é analisada por 7 jurados.

Os jurados são cidadãos comuns sorteados a partir de uma lista com 25 indicados. Cabe ao grupo sorteado decidir se o réu será absolvido ou condenado.

Uma vez condenado, caberá ao juiz que preside o júri elaborar a sentença, que vai estabelecer, tendo como base a lei, o tempo de pena a ser cumprido.

•        O que é a tese da "legítima defesa da honra"?

A tese da "legítima defesa da honra" é um argumento que vinha sendo utilizado em julgamentos de casos de feminicídio, durante o tribunal do júri.

De certa forma, é uma tentativa — sem base na lei — de justificar os motivos que levam, por exemplo, um homem a matar sua companheira ou esposa.

Segundo a tese, a morte serviria para "lavar" uma suposta honra masculina ferida, por exemplo, em uma traição da mulher.

O argumento é diferente do mecanismo da legítima defesa. Isso porque o dispositivo permite a um cidadão rebater uma agressão injusta de outra pessoa, por meios moderados, na intensidade suficiente para cessar o perigo.

•        Por que o júri admitia o argumento?

A Constituição prevê que o tribunal do júri funcionará com base em princípios, como a plenitude de defesa e a soberania dos vereditos.

Para usar a tese da "legítima defesa da honra", as defesas recorriam ao princípio da plenitude de defesa.

O mecanismo permite que, na prática, qualquer argumento que permita a absolvição do réu seja usado pela defesa, mesmo que a tese envolva uma questão que vai além do direito.

Assim, é possível apelar para a clemência dos jurados, por exemplo. Nessa brecha, também passou a ser aplicada a tese da "legítima defesa da honra".

•        O que dizia a ação do PDT?

O PDT acionou a Corte em 2021 para impedir o uso da tese. A sigla argumentou ao STF que a prática não era compatível com a Constituição.

Além disso, pontuou que os princípios que regem o júri popular — plenitude de defesa e soberania dos vereditos — não poderiam ser usados para justificar a aplicação do argumento.

•        Por que coube ao STF analisar o caso?

O Supremo analisou o tema porque foi provocado pela ação do PDT. Ou seja, o STF só analisou a questão porque foi chamado a se posicionar, no âmbito de um processo que cumpriu os requisitos para ser deliberado.

Além disso, o PDT havia argumentado que a aplicação da tese era uma afronta à Constituição, que tem a Suprema Corte como guardiã — isto é, cabe ao STF zelar pelo respeito ao texto.

•        O que muda na prática?

Com a decisão, nenhuma autoridade poderá levantar a tese da "legítima defesa da honra" na fase de investigação nem quando o caso vira um processo na Justiça e é julgado pelo júri.

A proibição vale para todos que participam do caso — polícia, juízes, Ministério Público, advogados. Se insistirem no uso do argumento, mesmo que de forma indireta, podem ter suas ações e o próprio julgamento anulados.

Além disso, a defesa não poderá usar o argumento e, depois, pedir a anulação do júri popular. Ou seja, o acusado não pode agir de forma irregular e tentar se beneficiar disso.

Os ministros concluíram ainda que tribunais de segunda instância poderão acolher recursos pela anulação de absolvições, caso estas tenham sido baseadas no argumento.

A Corte entendeu que, se o tribunal determinar novo júri, não vai ferir o princípio da soberania dos vereditos dos jurados.

Isso significa que, se algum caso nestas circunstâncias chegar à segunda instância por recurso, o tribunal vai poder mandar refazer o júri popular.

•        Quais os efeitos da decisão?

O uso do argumento nos julgamentos em feminicídios já estava suspenso desde 2021, por decisão do próprio STF. Agora, com a análise definitiva do caso, a Corte consolidou o entendimento.

A decisão do Supremo tem efeito para todos, não apenas para um processo específico. Além disso, é uma determinação que não pode ser contrariada em instâncias inferiores da Justiça nem por outros atores de processos criminais — como a polícia, advogados e o Ministério Público.

•        É possível recurso?

É possível recorrer com os chamados embargos de declaração, um pedido de esclarecimentos de pontos que não foram suficientemente desenvolvidos na decisão.

O recurso possibilita, por exemplo, a chamada modulação de efeitos — ou seja, para que a Corte estabeleça como será feita a aplicação da decisão nos casos que já tramitavam na Justiça antes.

 

       'Não é Não': Câmara aprova protocolo para coibir violência contra mulheres em bares, boates e shows com bebidas alcoólicas

 

A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (1º) o projeto que cria um protocolo de combate e prevenção à violência contra mulher. A aplicação das regras ocorrerá em casas noturnas, boates, espetáculos musicais em locais fechados, shows com venda de bebida alcoólica e competições esportivas.

O projeto estabelece especificamente que locais de eventos religiosos não serão atingidos pelas regras.

O protocolo é conhecido como "Não é Não", em referência ao movimento "Me Too". O texto agora segue para análise do Senado.

A proposta prevê o combate a dois tipos de agressões a mulheres:

•        constrangimento: caracterizado pela insistência – física ou verbal – sofrida pela mulher depois de manifestar discordância com a interação

•        violência: uso da força que resulte em lesão, morte, danos e outras previstas em lei

O protocolo determina que, em primeiro lugar, os estabelecimentos deverão:

•        assegurar que, no mínimo, uma pessoa da equipe esteja preparada para executar o protocolo (veja mais abaixo no que consiste)

•        afixar, em locais visíveis, informações sobre como acionar o protocolo e telefones de contato da Polícia Militar e da Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180)

Caberá aos estabelecimentos comerciais monitorar possíveis situações de constrangimento e indícios de violência.

Nos casos em que for identificado possível constrangimento, funcionários devem se certificar de que a vítima saiba que tem direito à assistência. Por iniciativa própria, o local poderá adotar ainda medidas para dar fim à agressão.

Nas hipóteses em que houver indícios de violência, o protocolo estabelece que o estabelecimento deve:

•        proteger a mulher

•        adotar as medidas de apoio previstas

•        afastar a vítima do agressor, inclusive do seu alcance visual

•        garantir à mulher a escolha de seu acompanhante

•        colaborar para a identificação das possíveis testemunhas

•        solicitar o comparecimento da Polícia Militar ou do agente público competente

•        isolar o local específico onde existam vestígios da violência, até a chegada da Polícia Militar ou do agente público competente

•        garantir o acesso às imagens à Polícia Civil, à perícia oficial e aos diretamente envolvidos

•        preservar por, no mínimo, 30 dias, as imagens

•        e garantir os direitos da denunciante

A lei possibilita que cada local crie um protocolo interno de alerta para eventuais violências. Para barrar constrangimentos e violências, os estabelecimentos poderão adotar:

•        ações que julgarem cabíveis para preservar a dignidade e a integridade física e psicológica da denunciante e para subsidiar a atuação dos órgãos de saúde e de segurança pública eventualmente acionados

•        retirar o ofensor do estabelecimento e impedir o seu reingresso até o término das atividades, nos casos de constrangimento

•        e criar um código próprio, divulgado nos sanitários femininos, para que as mulheres possam alertar os funcionários sobre a necessidade de ajuda

>>> Inspiração da proposta

Aprovada nesta terça, a proposta foi apresentada pela deputada Maria do Rosário (PT-RS), em fevereiro.

Segundo ela, o protocolo é inspirado em um procedimento criado em Barcelona, na Espanha, para proteger mulheres de agressões em estabelecimentos de entretenimento. Por lá, a iniciativa é batizada de “No Callem” – não nos calaremos, em tradução livre.

Foi por meio dos procedimentos previstos na norma catalã que uma mulher foi acolhida e levada a atendimento após uma suposta agressão sexual cometida pelo jogador Daniel Alves, preso pelo caso em janeiro.

Nos últimos meses, municípios e estados pelo Brasil implementaram protocolos semelhantes. Em São Paulo, a lei estadual foi sancionada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).

Porto Alegre (RS) e Florianópolis (SC) também adotaram.

A relatora do texto, Renata Abreu (Podemos-SP), afirmou que o texto foi construído com participação da Associação Brasileira dos Promotores de Eventos (Abrape).

“As normas contidas no protocolo são baseadas em legislações existentes em outros países e buscam garantir a segurança e acolhimento das mulheres, com a imposição de regras adequadas à realidade dos estabelecimentos do setor”, disse.

Se aprovada pelo Senado, a proposta entrará em vigor 180 dias após a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

•        Campanhas educativas

O texto de Renata Abreu estabelece que o Poder Público deverá promover campanhas educativas sobre o protocolo.

Também deverá criar ações de “formação periódica para conscientização e implementação” do protocolo, voltadas aos empreendedores e trabalhadores dos estabelecimentos previstos na lei.

O projeto ainda cria um selo, batizado de “Não é Não – Mulheres Seguras”, que poderá ser concedido pelo poder público a qualquer estabelecimento comercial que adotar o protocolo. Os estabelecimentos que ganharem o selo deverão ser divulgados em uma lista pública.

•        Punições

O protocolo determina que o descumprimento – total ou parcial – das normas poderá gerar punições:

•        aos estabelecimentos previstos na lei: advertência e outras penalidades previstas em lei

•        aos estabelecimentos que receberam o selo: advertência, revogação do selo, exclusão do estabelecimento da lista e outras penalidades previstas em lei

Casas noturnas, boates, espetáculos musicais em locais fechados e shows não poderão ser penalizados por agressões ocorridas nos locais.

Autora original do projeto, Maria do Rosário classificou a aprovação da proposta como uma melhoria do "legado" do Parlamento ao Brasil.

"Esse é o sentido do Parlamento. Apresentarmos as ideias, debatermos com a sociedade, trazermos aqui para dentro os sentimentos que essa sociedade tem e reconhecermos tanto os direitos coletivos quanto, neste caso, direitos e garantias individuais. Neste momento, para todas as mulheres e meninas brasileiras, deixamos um pouco melhor o legado do Brasil. Oferecemos a elas, a todas nós, por todas nós, estamos votando esta matéria. Acreditamos que ambientes seguros são uma responsabilidade de todos e todas", afirmou.

 

Fonte:Conjur/g1

 

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