Memórias ajudam o cérebro a reconhecer novos acontecimentos que merecem
ser lembrados
As memórias são sombras do passado e também
lanternas para o futuro. Nossas lembranças nos guiam pelo mundo, sintonizam
nossa atenção e moldam o que aprendemos mais tarde na vida. Estudos em humanos
e animais mostraram que as memórias podem alterar nossas percepções de
acontecimentos futuros e a atenção que damos a eles. "Sabemos que as
experiências passadas mudam as coisas", disse Loren Frank, neurocientista
da Universidade da Califórnia, em São Francisco. "Nem sempre fica claro
como isso acontece exatamente".
Um novo estudo publicado na revista Science
Advances agora oferece parte da resposta. Trabalhando com caramujos,
pesquisadores examinaram como as memórias deixavam os animais mais propensos a
formar novas memórias de longo prazo sobre acontecimentos futuros que, de outra
forma, poderiam passar despercebidos. O mecanismo simples que eles descobriram
altera a percepção do caramujo sobre esses eventos.
Os pesquisadores levaram o fenômeno de como o
aprendizado passado influencia o aprendizado futuro "para uma única
célula", disse David Glanzman, biólogo celular da Universidade da
Califórnia, em Los Angeles, que não participou do estudo. Ele caracterizou a
pesquisa como um exemplo interessante "do uso de um organismo simples para
tentar entender fenômenos comportamentais bastante complexos".
Embora os caramujos sejam criaturas bastante
simples, a nova visão aproxima os cientistas da compreensão da base neural da
memória de longo prazo em animais de ordem superior, como os humanos.
Ainda que muitas vezes não estejamos cientes do
desafio, a formação da memória de longo prazo é "um processo incrivelmente
energético", disse Michael Crossley, pesquisador sênior da Universidade de
Sussex e principal autor do novo estudo. Essas memórias dependem de forjarmos
conexões sinápticas mais duráveis entre os neurônios, e as células cerebrais
precisam recrutar muitas moléculas para fazer isso. Portanto, para conservar
recursos, o cérebro deve ser capaz de distinguir quando vale a pena o custo de
formar uma memória e quando não vale. Isso se aplica ao cérebro humano e também
ao cérebro de um "pequeno caramujo com um orçamento energético
apertado", disse ele.
Em uma videochamada recente, Crossley mostrou um
desses caramujos, um molusco Lymnaea do tamanho de um polegar com um cérebro
que ele chamou de "lindo". Enquanto o cérebro humano tem 86 bilhões
de neurônios, o do caramujo tem apenas 20 mil - mas cada um de seus neurônios é
10 vezes maior que o nosso e muito mais acessível para estudo. Esses neurônios
gigantes e seus circuitos cerebrais bem mapeados fizeram dos caramujos os
queridinhos das pesquisas em neurobiologia.
Esses minúsculos forrageadores também são
"aprendizes notáveis" que podem se lembrar de algo após uma única
exposição, disse Crossley. No novo estudo, os pesquisadores examinaram
profundamente os cérebros dos caramujos para descobrir o que acontecia no nível
neurológico quando eles adquiriam memórias.
• Influenciando
memórias
Nos experimentos, os pesquisadores deram aos caramujos
duas formas de treinamento: forte e fraco. Durante o treinamento forte, eles
primeiro pulverizavam os caramujos com água com sabor de banana, que os
caramujos tratavam como algo neutro para seu gosto: eles engoliam um pouco, mas
depois cuspiam uma parte. Em seguida, a equipe dava açúcar, e os caramujos
devoraram avidamente.
Quando os cientistas fizeram testes um dia depois,
os caramujos mostraram que tinham aprendido a associar o sabor da banana ao
açúcar por causa daquela única experiência. Os caramujos pareciam sentir o
sabor como algo mais desejável e ficaram muito mais dispostos a engolir a água.
Por outro lado, os caramujos não aprenderam essa
associação positiva com uma sessão de treinamento fraca, na qual um banho
aromatizado com coco era seguido por uma guloseima de açúcar muito mais
diluída. Os caramujos continuaram engolindo e depois cuspindo a água.
Até esse ponto, o experimento era essencialmente
uma versão dos famosos estudos de condicionamento de Pavlov, nos quais os cães
aprendiam a babar quando ouviam o som de um sino. Mas então os cientistas
analisaram o que acontecia quando davam aos caramujos um treinamento forte com
sabor de banana, seguido horas depois por um treinamento fraco com sabor de
coco. De repente, os caramujos também passaram a aprender com o treinamento
fraco.
Quando os pesquisadores mudaram a ordem e fizeram o
treinamento fraco primeiro, não houve formação de memória. Os caramujos ainda
guardavam lembrança do treinamento forte, mas isso não tinha um efeito de
fortalecimento retroativo na experiência anterior. Trocar os sabores usados nos
treinos forte e fraco também não surtiu efeito.
Os cientistas concluíram que o treinamento forte
empurrava os caramujos para um período "rico em aprendizado", no qual
o limiar para a formação da memória era menor, permitindo que eles aprendessem
coisas que de outra forma não aprenderiam (como a associação de treinamento
fraco entre um sabor e açúcar diluído). Tal mecanismo parecia ajudar o cérebro
a direcionar recursos para o aprendizado em momentos oportunos. A comida talvez
deixasse os caramujos mais alertas para potenciais fontes de alimento nas
proximidades.
No entanto, o efeito sobre os caramujos era
passageiro. O período rico em aprendizado persistia por algo entre 30 minutos e
4 horas após o treinamento forte. Depois disso, os caramujos paravam de formar
memórias de longo prazo durante a sessão de treinamento fraco - e não porque
eles haviam esquecido o treinamento forte: a memória desse evento persistiu por
meses.
Ter uma janela crucial para aprendizado aprimorado
faz sentido porque, se o processo não fosse desativado, "poderia ser
prejudicial para o animal", disse Crossley. O animal poderia não apenas
investir recursos demais no aprendizado, mas também aprender associações prejudiciais
à sua sobrevivência.
• Percepções
alteradas
Ao fazer sondagens com eletrodos, os pesquisadores
descobriram o que acontece dentro do cérebro do caramujo quando ele forma
memórias de longo prazo a partir dos treinamentos. Ocorrem dois ajustes
paralelos na atividade cerebral. O primeiro codifica a memória em si. O segundo
está "puramente envolvido na alteração da percepção do animal sobre outros
eventos", disse Crossley. "Muda a maneira como ele vê o mundo com
base em suas experiências passadas".
Os cientistas também descobriram que poderiam
induzir a mesma mudança na percepção dos caramujos bloqueando os efeitos da
dopamina, a substância química produzida pelo neurônio que ativava o
comportamento de cuspir. Isso desligou o neurônio de cuspir e deixou o neurônio
de engolir constantemente ligado. A experiência apresentou o mesmo efeito que o
treinamento forte teve nos experimentos anteriores: horas depois, os caramujos
formaram uma memória de longo prazo do treinamento fraco.
Os pesquisadores mapearam minuciosa e elegantemente
o processo, desde "o comportamento até os fundamentos eletrofisiológicos
dessa interação entre memórias novas e antigas", disse Pedro Jacob,
pós-doutorando da Universidade de Oxford, que não participou do estudo.
"Ter o conhecimento de como isso acontece mecanicamente é interessante
porque o processo provavelmente se repete em outras espécies".
Mas Frank não está totalmente convencido de que o
fato de os caramujos não ingerirem água com sabor após o treinamento fraco
significa que eles não guardaram nenhuma memória do evento. Você pode ter uma
memória, mas não tomar uma atitude a respeito, disse ele, então fazer essa
distinção vai exigir novos experimentos.
Os mecanismos por trás do aprendizado e da memória
são surpreendentemente semelhantes em moluscos e mamíferos como os humanos,
disse Glanzman. Até onde os autores sabem, esse mesmo mecanismo ainda não foi
demonstrado em humanos, disse Crossley. "Pode ser uma característica
semelhante e, portanto, merece mais atenção", disse ele.
Seria interessante estudar se uma mudança na
percepção poderia se tornar mais permanente, disse Glanzman. Ele suspeita que
isso seja possível se os caramujos receberem um estímulo aversivo, algo que os
deixe enojados em vez de sedentos.
Por enquanto, Crossley e sua equipe estão curiosos
sobre o que acontece no cérebro desses caramujos quando eles adotam outros
comportamentos, não apenas abrindo ou fechando a boca. "São criaturas
muito fascinantes", disse Crossley. "Você não imagina que sejam
capazes de realizar processos complexos como estes".
Nota do editor: Loren Frank é pesquisador da
Iniciativa de Pesquisa sobre Autismo da Simons Foundation (SFARI, na sigla em
inglês). A Simons Foundation também financia a Quanta como uma revista de linha
editorial independente. As decisões de financiamento não têm influência em
nossa cobertura.
Fonte: Quanta Magazine/Agencia Estado
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