terça-feira, 29 de agosto de 2023

Fiori: Novo BRICS sacode a geopolítica global

Mudança não será brusca: virá em ondas sucessivas e crescentes. Expansão selada em Joanesburgo consolida desafio político, econômico e simbólico à ordem eurocêntrica. E, ao contrário do que quis a velha mídia, Brasil teve vitória diplomática

LEIA A ENTREVISTA:

·         Qual a importância história dsa ampliação dos BRICS, com a entrada da Arábia Saudita, do Irã, da Argentina, do Egito, dos Emirados Árabes e da Etiópia?

De forma muito curta e direta: a incorporação dos seis novos membros do BRICS significa uma verdadeira “explosão sistêmica” da ordem internacional construída e controlada pelos europeus e seus descendentes diretos há pelos menos três séculos. Mas seus efeitos e consequências mais importantes não serão imediatos, e irão se manifestando na forma de ondas sucessivas, e cada vez mais fortes.

Exatamente porque o BRICS não é uma organização militar do tipo OTAN, nem é uma organização econômica do tipo União Europeia. Nasceu como um de ponto de encontro – quase informal – e um espaço de convergência geopolítica e econômica, entre países situados fora do núcleo central das grandes potencias tradicionais, concentradas sobre o eixo do Atlântico Norte. Países que não são atrasados, nem, subdesenvolvidos, nem dependentes e que já são, ou se propõem a ser grandes potências econômicas e políticas dentro de seus respectivos tabuleiros regionais. Na verdade, o próprio grupo original do BRICS já inclui três das cinco economias mais ricas do mundo, tomando em conta o seu “poder de paridade de compras”.

Chamá-los de “sul global’ me parece ser uma forma anódina e geográfica apenas, de renomear os antigos países do “terceiro mundo”, na sua maioria ex-colônias europeias. Os números estão sendo amplamente divulgados e todos já sabem que depois da incorporação dos seis novos sócios o grupo do BRICS terá mais de 40% da população mundial e cerca de 40% do PIB mundial, o que por si só já fala da importância deste grupo e de sua ampliação decidida na reunião de Joanesburgo.

Agora bem ,apesar de que o BRICS tenha tido até hoje uma postura muito mais propositiva do que contestaria, não há dúvida que nos anos recentes, devido a belicosidade crescente entre os Estados Unidos e a China, e devido sobretudo à guerra no território da Ucrânia entre os países da OTAN e a Rússia, o BRICS acabou sofrendo uma mudança de natureza, tornando-se uma organização de resistência, sobretudo, com relação às estruturas e instituições econômicas e financeiras utilizadas pelos EUA e seus aliados europeus e asiáticos, que operam como verdadeiras armas de guerra nos momentos de intensificação da competição e de acirramento dos conflitos entre esses países reunidos no G7 e os demais países que eles agora chamam de “sul global”, apesar da incorreção geográfica da expressão uma vez que seu principal inimigo neste momento, a Rússia, encontra-se ao norte de quase todos os países do G7.

Seja como for uma coisa é certa, depois de Joanesburgo, o BRICS já é um ponto de referência incontornável dentro do sistema internacional, e dependendo da reação dos Estados Unidos e dos europeus, poderá se transformar nos próximo anos, num grupo de poder com capacidade de estreitar cada vez mais o horizonte da dominação euroamericana do mundo.

·         Estão presentes nesse bloco grandes países produtores de petróleo e alimentos, com populações enormes. O que isso significa para a disputa global pela energia e pelas commodities alimentíceas? É possível pensar em uma organização comercial entre esses atores, a exemplo do que ocorreu, nos anos 1960, com a OPEP?

Não há dúvida que a partir de 2024 o BRICS+ estará reunindo alguns dos países detentores das maiores reservas de petróleo e gás do mundo, além de incluir alguns dos seus maiores produtores de grãos e alimentos. Para não falar dos recursos minerais estratégicos que se concentram nesses mesmos países, associados às velhas tecnologias nucleares e às novas tecnologia associadas à computação quântica, à inteligência artificial e a robótica. Mas não creio na possibilidade de que nasça daí nenhuma nova organização comercial, até porque seria rebarbativo com relação à OPEP, no caso do petróleo e do gás.

Não creio que seja este o objetivo do grupo, nem creio que seja necessário para que possam exercer de outras maneiras o seu poder de influenciar os mercados globais destes produtos. Mas sim creio que o maior poder e o maio golpe econômico desferido contra os interesses americanos e do G7 virá por outro lado, e atingirá em cheio o poder monetário e financeiro do dólar e dos Estados Unidos.

De fato, a reunião de Joanesburgo não criou uma nova moeda nem discutiu abertamente a criação dessa moeda. Mas de forma discreta antecipou a substituição do dólar nas transações energéticas entre os países-membros do grupo e desses países com todas as suas “zonas de influência”. E este talvez seja o maior golpe desferido até hoje contra a hegemonia do dólar, desde os Acordos de Bretton Woods, em 1944, e desde o grande acordo firmado entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita, logo depois da Segunda Guerra Mundial, quando ficou estabelecida e garantida a intermediação do dólar, em todas as grandes operações do mercado mundial do petróleo.

·         Os BRICS, agora em ampliação (com a possível adesão futura da Indonésia), serão capazes de fazer um contraponto ao poder dos EUA e da Europa no mundo? Poderão atuar conjuntamente também no terreno militar?

Acho que o Brics nunca se tornará uma organização militar, nem jamais foi ou será este seu objetivo. Do ponto de vista militar, a aliança estratégica da Rússia com a China, que se consolidou nos dois últimos anos, já é por si mesma um contraponto ao poder miliar dos EUA e da Europa. E não creio que China ou Rússia queiram ter qualquer tipo de compromisso com seus novos parceiros, do ponto de vista de sua defesa mútua, como a Rússia tem, por exemplo, com a Bielorrusia.

·         É possível dizer que essa articulação é uma derrota importante para os Estados Unidos como potência hegemônica?

Sem dúvida nenhuma. Por isto mesmo tem aumentado a cada dia que passa as pressões e promessas do Departamento de Estado, exatamente em cima do Brasil, da Índia, e da África do Sul, três membros fundadores do BRICS. Aliás, deste ponto e vista, tem sido patética a peregrinação recorrente dos senhores Anthony Blinken e John Sullivan, e da onipresente senhora Victoria Nuland, tentando convencer – sem muito sucesso – os governos africanos, latino-americanos, ou mesmo asiáticos a apoiarem as sanções econômicas aplicadas pelos Estados Unidos contra a Rússia, por conta da guerra na Ucrânia.

Um sinal inequívoco de perda de liderança que se repetiu agora mesmo no caso do golpe militar do Niger, ocasião em que nem os Estados Unidos nem os europeus conseguiram, até agora pelo menos, convencer algumas de sus ex-colônias africanas a invadirem o Niger, ou seja convencê-los a fazer a mesma coisa que atribuem e criticam na Rússia, com relação à Ucrânia.

·         Jornais brasileiros, provavelmente ecoando a visão estadunidense, disseram que Lula perdeu com essa ampliação. E que o presidente brasileiro ainda se submeteu aos interesses chineses. O sr. concorda com essa análise?

Não há nada que sugira que Lula e o Brasil tenham perdido poder ou influência com a ampliação do BRICS, nem tampouco que Lula tenha feito algo com que estivesse em desacordo submetendo-se à China ou a quem quer que seja. Pelo contrário, minha impressão é que ele conseguiu recuperar pelo menos em parte o que o Brasil perdeu e se submeteu durante os governos de Temer e Bolsonaro.

Uma coisa completamente diferente é compreender que o Lula sozinho não tem como transformar o Brasil do dia para a noite numa potência equivalente à China, ou mesmo à Índia, do ponto de via econômico e tecnológico, ou mesmo à Rússia, do ponto de vista militar. Estes países lutaram muitos anos para chegarem a ser potências com capacidade de projeção de sua influência a escala global. O que esta reunião deixou claro é que o Brasil precisará ainda de tempo para chegar onde eles chegaram.

Os demais dão sinais inequívocos de que respeitam o presidente brasileiro e sua liderança ética e carismática mundial, mas isto não muda do dia para a noite a visão que o mundo construiu do Brasil ao ver sua elite política e econômica entregar o seu país e o Estado brasileiro (como está se vendo agora) nas mãos de uma quadrilha de pequenos escroques e ladrões de carteira. E ainda mais, ao saber agora da participação que tiveram membros destacados das FFAA brasileiras em toda a corrupção e em todas as tratativas golpistas de um presidente que veio das suas próprias fileiras.

O que essa imprensa não consegue entender é que o Brasil saiu da reunião de Joanesburgo do tamanho que tem hoje no mundo, o tamanho com que ficou depois de seis anos de destruição do seu Estado e de sua política externa, corrigido até onde foi possível, e até agora, pelo trabalho incessante da política externa brasileira e pela liderança mundial conquistada pelo presidente Lula.

·         Outra crítica frequente é a de que os novos integrantes do bloco são “ditaduras”. Qual sua visão sobre esse ponto?

Esta separação e polarização entre países democráticos e autoritários foi uma ideia da política externa do governo Biden que não teve maior repercussão internacional. Basta olhar para as duas reuniões que Joe Biden organizou com o objetivo de mobilizar a opinião pública mundial e que foram um absoluto fracasso. Mas o mais importante aqui não é isto, é apenas que o BRICS nunca se propôs a ser um grupo de países democráticos, nem muito menos um grupo missionário pregador da fé na democracia. Trata-se de um grupo pragmático e que tem por princípio a ideia chinesa do respeito absoluto pela autonomia política e cultural de cada um de seus membros e dos seus povos.

·         Há algum paralelo entre os Brics e o Movimento dos Não Alinhados?

Acho que não. São propostas e organizações que nasceram em momentos geopolíticos muito diferentes. O Movimento dos Não Alinhados nasceu à sombra da Guerra Fria e da polarização mundial entre o mundo socialista e os países capitalistas ocidentais. Foi um enfrentamento e uma bipolarização com forte conotação ideológica e dimensão global. Já o BRICS nasceu em um mundo que se fragmenta cada vez mais e que é cada vez mais intolerante com relação a todo e qualquer tipo de polarização do sistema mundial.

E agora está se expandindo no espaço aberto justamente pela perda de liderança de liderança dos europeus e dos norte-americanos, sobretudo depois do fracasso de sua tentativa de universalizar suas sanções econômicas contra a Rússia. Afinal, alinharam-se com os Estados Unidos e a Otan um grupo de apenas 30 ou 40 países, uma minoria dentro do sistema das Nações Unidas. O objetivo das sanções era isolar e enfraquecer economicamente a Rússia, mas acabou isolando o G7 e enfraquecendo a\ economia europeia, que já foi ultrapassada em poder de compra pela própria Rússia, apesar de que este país esteja sob o mais intenso ataque econômico jamais desfechado contra qualquer outro país do mundo, em qualquer tempo da história.

·         Esse movimento dos Brics tem impacto sobre a guerra na Ucrânia?

Eu acho que a ordem dos fatores é inversa. A simples invasão e resistência russa dentro do território da Ucrânia, frente à mobilização e intervenção direta dos Estados Unidos e de todos os países sócios da OTAN, já rompeu com a “ordem mundial” estabelecida pelos Estados Unidos e seus aliados depois do fim da Guerra Fria.

Além disso, a guerra na Ucrânia acelerou a formação de uma aliança estratégica entre a Rússia e a China, que deu alguns passos diplomáticos gigantescos à sombra da própria guerra, na direção do estreitamento de suas relações econômicas e estratégicas e do alargamento de sua influência sobre o Oriente Médio e a África. Incluindo esta expansão recente e bem-sucedida do Brics.

As próprias sociedades europeias estão começando a se dar conta e reagir frente ao fato de que os Estados Unidos estão se comportando cada vez mais na defensiva, e atuando de forma completamente reativa, frente à inciativa militar russa, e frente à iniciativa econômica chinesa. Neste sentido, já se pode mesmo dizer que a guerra na Ucrânia apressou o declínio da hegemonia cultural dos valores europeus, e vem encolhendo significativamente o poder do império militar global dos Estados Unidos.

·         E sobre a entrada da Argentina no Brics. Quais as consequências e quais seus prognósticos?

Considero a entrada da Argentina no Brics uma vitória diplomática do Brasil, e um passo extremamente importante na construção de uma “zona de coprosperidade” na Bacia do Prata. Uma decisão e um passo cujos efeitos, entretanto, deverão se dar ao longo do tempo, não de forma imediata. Mas não há como enganar-se: este estreitamento da aliança entre o Brasil e a Argentina, como prognosticou o geopolítico americano Nicholas Spykmen, já em1944, será visto hoje como já foi no passado como uma “linha vermelha” para os interesses dos EUA e de sua rede de apoios dentro do continente.

E muito mais ainda, neste caso, em que este estreitamente ocorre dentro de uma organização liderada economicamente pela China, e que conta ainda com a participação do grande “demônio do ocidente” neste momento, que é a Rússia. Desse ponto de vista, é necessário olhar com cuidado para o futuro imediato, porque se as próximas eleições presidenciais argentinas não forem vencidas pelas forças de extrema-direita contrárias à participação da Argentina no Brics, não é impossível que a Argentina entre na linha tiro das chamadas “guerras híbridas” que vão mudando governos e regimes ao redor do mundo que são considerados inimigos ou obstáculo para o projeto de poder global euroamericano.

·         Essa expansão do Brics assinala um passo importante na conquista chinesa de uma liderança global?

Tudo indica que a China não se propõe a substituir os Estados Unidos e seus aliados europeus como centro hegemônico do sistema mundial, pelo menos na primeira metade do século XXI. Nem tampouco a Rússia tem possibilidade de alcançar este objetivo. Mesmo assim, a aliança entre a força militar russa e o extraordinário sucesso tecnológico e econômico da China deve ter um impacto “exemplar” sobre o resto do mundo. Muito mais agora em que a China assumiu de forma explicita e declara a liderança de um projeto “desenvolvimentista global” (ocupada pelos EUA depois da II GM), propondo a construção de um “mundo inclusivo” e de soma positiva entre todos os povos do universo, sem exclusão do Atlântico Norte.

Como se pode observar na própria estratégia de expansão do Brics, já agora trazendo para dentro da organização representantes de todas as grandes civilizações que dominaram o mundo até o século XVII, e que depois disto foram deslocadas, derrotadas ou submetidas pela expansão vitoriosa do colonialismo europeu, que na segunda metade do século XX foi substituído pelo império militar e financeiro global dos Estados Unidos. Como já dissemos, esse império está se enfrentando com seus limites, esses limites estão aumentando, mas isto não significa automaticamente que a China vá substituir de imediato esta posição de liderança global.

 

Ø  Brics expandido, e agora? Novos desafios para a política externa brasileira. Por Ana Garcia e Pablo Ibañez

 

A primeira cúpula presencial de chefes de Estado dos Brics após a pandemia teve lugar na capital sul-africana neste agosto de 2023, com a marcante ausência de Vladmir Putin, indiciado pelo Tribunal Penal Internacional. Este fato reforça a dimensão geopolítica do agrupamento Brics, que ficou ainda mais evidente depois da eclosão da Guerra da Ucrânia. A agenda prioritária comum já não é mais apenas a de reforma das instituições financeiras multilaterais, mas sim a de construir novas alianças e criar novas instituições que possam resultar em um mundo “multipolar”, conforme os discursos recorrentes de seus líderes.  

A discussão sobre a diminuição da dependência do dólar, a criação de mecanismos de comércio e crédito em moedas locais e mesmo a proposta de uma possível moeda comum foram outro ponto alto nessa discussão, porém sem avanços concretos. A declaração final se limitou a encorajar transações financeiras e comerciais e reforçar redes bancárias para descontar em moedas locais. Os bancos centrais e ministérios das finanças ficam encarregados de considerar emissões e plataformas de pagamento desdolarizadas e reportar de volta aos governos. Diante dos enfáticos discursos de líderes que precederam a cúpula, os resultados imediatos ainda são tímidos. Essa é uma questão técnica e política complexa que levará tempo e esforço para avançar. Será necessário monitorar como se posicionam não apenas governos, mas bancos privados, empresas multinacionais e demais fundos financeiros dos Brics, que operam e se beneficiam das transações em dólar.  

declaração final da cúpula terminou com o convite à entrada de seis novos membros: Argentina, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. Foram incluídos, de um lado, um aliado histórico dos EUA no Oriente Médico – a Arábia Saudita – e de outro, o Irã, que sofre sanções dos americanos. Recentemente, sob mediação da China, ambos retomaram relações diplomáticas. A declaração final afirmou, ainda, que a efetivação desses países como membros plenos deverá se realizar a partir de 1 de janeiro de 2024, dando, portanto, seis meses para que o processo se complete. A expansão é, e sempre foi, uma agenda chinesa: o país asiático promoveu a entrada da África do Sul em 2011, sem restrições, naquele momento, dos outros membros. Em 2023, a agenda foi bem-sucedida, afinal, atendia em grande medida também os interesses da Rússia. A entrada de dois países africanos foi bem acolhida, sendo o Egito já membro do Novo Banco de Desenvolvimento, e a Etiópia o país sede da União Africana, que, em 2021, constituiu uma Área Continental de Livre Comércio (AfCFTA).

Índia e Brasil foram resistentes, até então, ao processo de expansão, e buscavam ganhar tempo ao discutir critérios e velocidade de escolha dos novos membros. Ambos claramente sucumbiram ao aumento da proeminência chinesa e, em menor grau, russa no grupo. A posição da Índia foi fortemente pressionada pela Arábia Saudita. É relevante ressaltar que o país está envolvido em um jogo geopolítico complexo, uma vez que é parte do Quadilateral Dialoge (QUAD), grupo que envolve os EUA e que tem como objetivo conter a influência chinesa no Indo-Pacífico. A Índia é parceira comercial relevante da Rússia, maior compradora de armas do país.  

No caso do Brasil, podemos observar clara diferença nas posições: de um lado, os operadores da política externa – no Itamaraty e outras agências federais – apontavam para dificuldades de chegar a consensos diante de países tão díspares; de outro lado, as visões do embaixador Celso Amorim, hoje secretário especial para assuntos internacionais, e do próprio presidente Lula, indicavam vantagens para o Brasil, no longo prazo, em ter um BRICS forte e expandido. Nessa negociação, o trade off seria a posição mais assertiva da China e da Rússia para uma reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Os EUA já haviam sinalizado positivamente para um diálogo nesse sentido e, com uma possível aderência dos dois parceiros Brics, a busca do Brasil por um assento no Conselho poderia ganhar mais força. Vale notar que as discussões sobre a reforma do Conselho acontecem na Assembleia Geral da ONU, que já está em andamento e poderá também beneficiar o pleito da Índia e do Japão por um assento, o que não é de interesse da China. A declaração final da Cúpula avançou no sentido desejado pela diplomacia brasileira: afirmou o apoio à reforma abrangente das Nações Unidas para incluir representantes dos países em desenvolvimento no Conselho de Segurança – Brasil, Índia e África do Sul.  

Por sua vez, a entrada da Argentina, apoiada pelo Brasil, fortalece a América do Sul nos Brics. Vivendo uma crise econômica que se arrasta por décadas, o país enfrenta um contexto eleitoral muito adverso. Na contramão à adesão aos Brics, o candidato de extrema direta Javier Milei ameaça afastar a Argentina da China, além de dolarizar por completo sua economia, precisamente no momento em que os Brics discutem formas de desdolarização. A sinalização positiva para o país sul-americano aparece como uma tentativa indireta de influenciar o cenário eleitoral e oferecer alternativas à Argentina, que hoje tem fechado seu acesso aos mercados de crédito internacional e voltou-se à China e, em menor grau, ao Brasil para ajudar a alavancar sua economia. O Brasil ofereceu, ainda, um mecanismo de financiamento do comércio com a Argentina por meio da moeda chinesa yuan, através do apoio à exportação do Banco do Brasil, que usaria sua subsidiária na praça financeira de Londres para compensar yuan por reais e realizar a operação.  

Podemos afirmar que, ao mesmo tempo em que os Brics dão um importante passo geopolítico, buscando maior balanceamento de poder internacional frente às potências tradicionais, aumentam também as contradições sociais e ambientais dentro do bloco e, consequentemente, os desafios para a política externa brasileira.  No que tange aos esforços para acelerar a transição energética no mundo, agora o bloco se torna um “Brics fóssil”. Afinal, seus membros estão entre os maiores produtores de fontes fósseis de energia, e parece pouco plausível que projetos e ações nessa linha tenham centralidade nas propostas do bloco.  

Já os temas relacionados a direitos trabalhistas, melhoria no tratamento das questões de gênero e lutas sociais devem ficar enfraquecidos com a entrada de membros mais conservadores. São países que ainda guardam grandes desigualdades sociais e de gênero, com elites políticas e econômicas claramente contrárias a avanços nessa área. Vale lembrar que foi durante a gestão Bolsonaro que o Brasil votou, nas Nações Unidas, junto com países mulçumanos conservadores contra direitos humanos e de gênero. Para o novo governo Lula, que busca avançar uma agenda social e democrática, isso poderá representar um grande desafio. 

Enquanto os chefes de Estado dos Brics se reuniam a portas fechadas em um retiro, com forte esquema de segurança em Joanesburgo, cerca de 150 representantes de movimentos sociais de base, organizações não governamentais e de comunidades atingidas se reuniam na Universidade de Joanesburgo, no chamado “Brics from below”. Apesar do caráter evidentemente africano do encontro, quase não havia representantes de organizações sociais de outros países-membros, o centro do debate transcendeu a região, incluindo as lutas por justiça climática e contra os megaprojetos fósseis e extrativos nas áreas de petróleo, mineração e metalurgia, com fortes impactos sociais e ambientais nos territórios onde são implementados. Dois desses projetos tiveram destaque entre os protestos, a Zona Econômica Especial de Musina Makhado, liderada pelos chineses, na província de Limpopo, na África do Sul, que está em vias de implementação e aponta forte impacto socioambiental; e o Oleoduto de petróleo bruto da África Oriental, que atravessa Uganda e outros países africanos, construído pela francesa Total em parceria com a CNOOC e financiamento do Standard Bank. Representantes de comunidades locais atingidas por esses empreendimentos estavam presentes e buscavam visibilidade para suas lutas.  

Sob forte especulação de esvaziamento e perda de força dos Brics, o que ocorreu na África do Sul foi uma demonstração de força e maior protagonismo chinês, além de uma expansão que certamente trará grandes mudanças para o futuro do grupo. Três dos países-membros – Índia, Brasil e África do Sul – sediarão os próximos encontros do G20, as vinte maiores economias do mundo, em 2023, 2024 e 2025, respectivamente. Frente a um Brics expandido, será a vez do Brasil, Índia e África do Sul retomarem o IBAS?  Será necessário o acompanhamento minucioso de seus desdobramentos futuros.

 

Fonte: Tutaméia/Le Monde

 

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