A descoberta do túmulo de Dragão do Mar, jangadeiro cearense que ajudou
a derrubar a escravidão no Brasil
Durante parte do ano de 2020, o historiador Licínio
Nunes de Miranda percorreu diariamente os corredores com 15 mil túmulos no
cemitério São João Batista, no centro de Fortaleza. Buscava um jazigo
específico: o de Francisco José do Nascimento, um abolicionista conhecido como
Dragão do Mar, herói da derrubada da escravidão no Ceará, em 1884, quatro anos
antes da Lei Áurea.
No dia 21 de julho, finalmente Licínio encontrou
uma pequena construção já deteriorada pelo tempo, onde se lê "Descanso
eterno do major Francisco José do Nascimento".
"Para mim foi uma surpresa maravilhosa",
conta Licínio. "Eu estava de frente com um herói nacional que estava
esquecido, um símbolo da luta contra a escravidão."
A busca pelo túmulo do Dragão do Mar, cujo
paradeiro era desconhecido há muitos anos, faz parte do doutorado do
historiador na Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. O nome, a data da
morte e uma referência à esposa do jangadeiro — informações inscritas em uma
placa —, apontam que o jazigo de fato pertence ao abolicionista.
A descoberta foi noticiada por jornais de Fortaleza
no final do ano passado, mas ganhou relevância internacional há duas semanas,
quando a história foi publicada no site da universidade americana.
Nos últimos dias, o historiador deu entrevistas à
rádio NPR, emissora pública dos Estados Unidos, e para TVs e revistas
especializadas em História.
Licínio pesquisa a trajetória do abolicionismo no
Ceará, a primeira província do Brasil a abolir a escravidão.
Dragão do Mar, um jangadeiro que trabalhava no
porto de Fortaleza, foi uma figura importantíssima nessa luta precursora.
Ele liderou a última de quatro greves que os
trabalhadores do porto realizaram em 1881. O movimento se recusava a
transportar negros escravizados que seriam levados para outras províncias.
"Os trabalhadores, muitos deles
recém-libertos, já estavam cansados de ver o sofrimento dos escravizados e
decidiram agir em favor deles, cruzando os braços e parando o porto",
explica Licínio.
As três primeiras paralisações foram lideradas por
José Luís Napoleão, um escravo liberto que comprara a própria liberdade — e a
de quatro irmãs — com suas economias. Um ano depois, Napoleão fundou o
"Clube dos Libertos", organização fundamental para a luta
abolicionista da época.
O mentor intelectual das greves foi o abolicionista
Pedro Artur de Vasconcelos (1851-1914), homem branco e funcionário do porto.
Napoleão logo aderiu ao plano de Vasconcelos, conseguindo convencer os milhares
de trabalhadores e jangadeiros a aderirem à greve.
Já a última paralisação, no dia 30 de agosto de
1881, foi assumida por Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar, depois
que Napoleão recusou a liderança do movimento por se achar "velho
demais" para a empreitada.
Já tinham se passado 30 anos desde que o tráfico
transatlântico havia sido proibido e uma década da Lei do Ventre Livre, que
considerava livres todos os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir
de sua promulgação.
A escravidão no Brasil, no entanto, continuava —
ainda que sob uma oposição crescente da opinião pública, em parte influenciada
pelo abolicionismo nos Estados Unidos e em diversos outros países, e diante da
resistência dos escravizados contra a exploração de seu trabalho e a violência.
O simbolismo da insurreição dos jangadeiros
cearenses correu o Império, e influenciou a população de outras províncias a
lutar contra a escravidão.
Em 1883, os "catraieiros" do Amazonas,
que desempenhavam a mesma função dos jangadeiros cearenses — ligavam o cais do
porto aos navios com suas pequenas embarcações —, também entraram em greve e se
negaram a transportar os negros escravizados que seriam enviados do Norte a
outras regiões.
Para Licínio, o movimento amazonense também foi
composto por trabalhadores do Ceará que migraram em massa para o Norte do país
na época conhecida como "ciclo da borracha", quando a região assumiu
o protagonismo mundial na produção e comercialização da matéria-prima.
Em 1884, o Ceará aboliu a escravidão em seu
território (o Amazonas fez o mesmo um ano depois), antes portanto da assinatura
da Lei Áurea em 13 de maio de 1888 pela Princesa Isabel.
• Luta
abolicionista
O pioneirismo cearense foi resultado de uma
conjunção de fatores, que vão desde o ativismo dos abolicionistas ao papel
secundário dos escravizados na economia local.
Dragão do Mar — cujo curioso apelido foi dado pelo
famoso abolicionista fluminense José do Patrocínio — era um homem mestiço,
filho de pescadores do município de Aracati. Ele tinha por volta de 40 anos
quando liderou a greve no porto de Fortaleza.
Mas a luta abolicionista cearense não se resumiu às
paralisações. "Nos anos seguintes, Dragão do Mar e Napoleão atuaram
fortemente contra a escravidão. Ajudaram na fuga de escravizados, juntaram
dinheiro para comprar a liberdade de muitos, esconderam pessoas dentro de casa,
além de outras manifestações", explica Licínio.
O movimento resultou na extinção gradual da
escravidão em todos os municípios cearenses, até que foi declarada a
inexistência de escravos em seu território, em 25 de março de 1884.
Por causa de seu ativismo, Dragão do Mar ficou
conhecido como líder e herói do movimento. Chegou a viajar ao Rio de Janeiro,
onde conheceu outros abolicionistas de renome, como Joaquim Nabuco, José do
Patrocínio e André Rebouças.
Para Licínio, a influência do movimento cearense
foi enorme. "Muitos escravizados fugiram para o Ceará ao saberem que lá
poderiam ser livres. Além do abolicionismo, já um movimento de massa que
agregava diversos setores da sociedade, a abolição no Ceará criou um efeito
cascata no restante do Brasil, até culminar na Lei Áurea", diz o
historiador.
Em dezembro de 2018, Dragão do Mar foi incluído no
livro Heróis e Heroínas da Pátria, que homenageia pessoas consideradas
fundamentais para a construção da história do Brasil, como Machado de Assis,
Euclides da Cunha, Luiz Gama, entre outros.
Dragão do Mar morreu em 1914, aos 75 anos. Mais de
um século depois, o local onde Francisco José do Nascimento foi enterrado era
um completo mistério.
"Eu imaginava que ele estivesse no cemitério
São João Batista, mas não tinha certeza, e o local é gigantesco. Nem a
administração do cemitério sabia que estava lá, tampouco o governo ou ativistas",
diz o historiador Licínio Nunes de Miranda.
Apesar de sua importância e seu simbolismo para o
movimento negro cearense, a figura do Dragão do Mar muitas vezes é esquecida na
historiografia do abolicionismo brasileiro, segundo Licínio.
"No Ceará ele é nome de rua, de escola e de
centro cultural, mas muitas vezes não se dá a importância que ele tem. A
história dele mostra que o abolicionismo não era formado apenas por
intelectuais, advogados, jornalistas... Mas também por pessoas comuns, como
trabalhadores do porto", diz.
"Espero que a descoberta do jazigo traga essa
história novamente, para que possamos reconhecê-lo como um grande herói
brasileiro", afirma o pesquisador.
Fonte: BBC News Brasil
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