domingo, 30 de julho de 2023

Especialistas em educação questionam autonomia dos estados em manter escolas cívico-militares

Em 19 de julho, o Governo Federal publicou o decreto que revoga o Programa das Escolas Cívico-Militares (Pecim), uma das principais bandeiras de Bolsonaro para a educação. A extinção do programa, no entanto, gerou um efeito contrário do esperado por especialistas da educação que defendem a desmilitarização da educação, porque o Governo Federal está deixando a decisão da manutenção das escolas a cargo das/os governadoras/es.

O tema virou uma oportunidade de disputa eleitoral e ideológica, principalmente para governos bolsonaristas. São Paulo, Santa Catarina e Paraná foram os primeiros a afirmarem que darão seguimento ao modelo de ensino. Um levantamento feito pelo Poder 360 indica que ao menos 19 estados pretendem manter ou readequar o modelo das escolas cívico-militares nas suas redes de ensino.

A postura do executivo federal em defender uma autonomia dos estados em relação à educação causa estranhamento quando levamos em conta a competência exclusiva da União, de acordo com a Constituição, de estabelecer diretrizes e bases para a área no país, tema com extensa jurisprudência no Supremo Tribunal Federal (STF).

O doutor em direito e professor de políticas educacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), Salomão Ximenes, reconhece a importância da extinção do Pecim, mas considera e um equívoco essa posição do MEC, que chama de omissão explícita, e foi validada pelo próprio presidente Lula em declarações recentes.

“O MEC atua como um órgão de coordenação da Política Nacional da Educação, que tem o papel legal de, em nome da União, zelar pelo cumprimento da legislação nacional da educação, emanando normativas de regulamentação, através do seu Conselho Nacional de Educação (CNE). O Conselho é um órgão independente, mas vinculado ao MEC”, diz Ximenes.

Além disso, o que dá base legal para a presença de policiais e bombeiros nas instituições de ensino é o decreto 9940/2019, editado por Bolsonaro e baseado em um decreto da ditadura militar. O capítulo 6 da LDB define quem são as/os profissionais da educação e quais formações eles precisam ter para atuarem nas escolas. Todas/os que não estão listados ali, não deveriam fazer parte da comunidade escolar, como é o caso de profissionais da segurança pública.

“O Presidente da República também precisa ser questionado sobre o porquê dele não exercer o seu poder de regulamentação em rever este decreto. Lula poderia revogá-lo. Lamentavelmente há uma opção deliberada pela omissão nesse caso. Não faltariam argumentos do ponto de vista político, técnico ou jurídico. Tampouco falta obrigação do Governo Federal de atuar”, diz Ximenes, que integra a Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação.

Em um áudio do ministro da educação, Camilo Santana, enviado via assessoria de imprensa do MEC para o Catarinas, ele reconhece a inconstitucionalidade do modelo. “O Governo passado tentou criar uma política por lei para transformar as escolas regulares do ensino básico em escolas cívico-militares. Tentaram uma lei no Congresso Nacional, que não passou nem pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação, porque ela é inconstitucional”, diz. No entanto, reafirma as declarações sobre a suposta autonomia dos estados: “O estado que quiser continuar a escola cívico-militar, deve criá-la com base na legislação estadual”.

Perguntamos para o MEC se, como coordenador da Política Nacional da Educação, irá propor normativas para pôr fim à militarização das escolas no país e se há previsão para revogação do decreto 9940/2019, porém não tivemos resposta a essas questões.

Atualmente, 202 escolas integram o Pecim, o que consiste em apenas 0,14% das unidades de ensino. No entanto, a Rede Nacional de Pesquisa Sobre Militarização da Educação estima que há pelo menos 800 escolas militarizadas no país.

“Em 2019, tínhamos cerca de duzentas escolas neste modelo. Hoje, temos cerca de mil. Grande parte com nome de escolas cívico-militares, uma terminologia que não existia. O Pecim fez esse impulsionamento”, explica Catarina de Almeida, professora da Universidade de Brasília (UnB), coordenadora da Rede e integrante da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Para dar fim à militarização, especialistas defendem uma política que faça oposição a este incentivo. Em março, mais de duzentas entidades entregaram a Carta da sociedade civil pela desmilitarização da educação e da vida para o Governo Federal. No texto, foram apresentadas diferentes medidas, que iam além do corte de recursos do Programa, anunciado no começo de junho.

“A extinção do Pecim deveria ser a primeira etapa de um processo de média duração, que envolveria a regulação da militarização, no sentido de restringi-la àquilo que a Constituição autoriza: que são as escolas militares criadas no âmbito das Forças Armadas. Uma regulamentação que explicitasse que a militarização das escolas comuns é incompatível com a legislação educacional, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o Plano Nacional de Educação (PNE) e os princípios básicos da educação nacional”, diz Ximenes.

Somado ao pedido de revogação imediata do Pecim e seu arcabouço legal, as entidades defendem o desenvolvimento de uma agenda que combata a militarização da vida. Entre as propostas está a execução de medidas que ajudem a superar o legado autoritário brasileiro, com responsabilização dos responsáveis civis e militares por violações de direitos humanos e proteção a crianças, adolescentes e jovens e docentes que sofrem com perseguições políticas promovidas por grupos ultraconservadores; além do planejamento e realização de medidas para o desencarceramento e para o combate ao genocídio da juventude negra e periférica.

·         Lógica de repressão: pedagogia de quartel nas escolas

As escolas cívico-militares não foram uma novidade do governo anterior. O processo de militarização começou ainda na década de 1990 em Mato Grosso e Goiás, segundo os estudos da pós-doutora em Educação pela Unicamp, Almeida. Os modelos têm formatos próprios de acordo com o estado e município que o implementam, porém fazem parte de um projeto conservador para a educação, que dialoga com movimentos como o Escola Sem Partido e pelo homeschooling (educação domiciliar).

Almeida defende a ideia de que a educação é o direito dos direitos. Ao atender 47,4 milhões de estudantes, segundo dados do Censo Escolar da Educação Básica de 2022, a rede pública de ensino tem a possibilidade de dar ferramentas para que a sociedade brasileira lute pelos seus direitos.

“É preciso controlá-la. De que forma? Escola sem Partido é controle. Homeschooling é controle. Militarização é controle. Os currículos engessados são formas de controle. Segurança armada é controle. É controle dos corpos, das mentes, do conhecimento. Há um projeto de destruição da escola pública. O ataque é do tamanho do potencial que ela tem”, diz Almeida.

Para a pesquisadora, apesar de terem financiamento público, as escolas cívico-militares deixam de ser públicas a partir do momento que passam a seguir regras de uma corporação, e terem normas diferentes da rede de ensino comum. O Pecim, por exemplo, dividia as gestões em escolar administrativa e de conduta, de responsabilidade de militares e/ou profissionais de segurança, e a gestão pedagógica, sob os cuidados de pedagogos e profissionais da educação. A gestão de conduta, porém, não está prevista na LDB.

O foco das escolas militarizadas é fundamentalmente a disciplina das/os estudantes, que afeta também professores/as. A proibição da juventude em manifestar a sua identidade preocupa Mônica Ribeiro da Silva, integrante do Observatório das escolas cívico-militares do Paraná e professora da Universidade Federal do Paraná.

“Há um regramento estético bastante pesado em relação a cabelo, cor de unha, piercing, tatuagem, no sentido de gerar uma identidade de quartel para os estudantes. Um regramento, uma ética, uma estética, um disciplinamento como se a escola fosse um quartel, o que não corresponde à verdade”, afirma Ribeiro. Ela conta que as escolas possuem um sistema de pontuações e penalidades de comportamentos, obrigam estudantes a usar farda e incentivam a delação entre alunas/os.

Os princípios das áreas de educação e segurança tampouco dialogam. Enquanto o texto constitucional defende que a segurança é exercida para preservar a ordem pública, a educação deve respeitar a liberdade de aprender e ensinar, a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, a gestão democrática da instituição de ensino.

Almeida usa o termo “pedagogia de quartel” para se referir à rigidez das normas nas escolas cívico-militares, que são um ponto em comum entre os diferentes modelos. Ela alerta que a lógica da polícia é repressiva. “O que se espera da polícia? A lógica repressão para a manutenção da ordem. No fundo é um projeto de sociedade em que as pessoas precisam estar adestradas, caladas, organizadas, obedecendo à ordem estabelecida. As consequências disso é você manter a sociedade racista, machista, misógina e capacitista em que vivemos”, critica Almeida.

Não à toa, o resultado deste modelo tem aparecido nas inúmeras denúncias de violações de direitos de crianças, adolescentes e profissionais da educação. Há relatos de constrangimentos, perseguições, casos de racismo e assédio dentro destas escolas. Em outubro de 2022, noticiamos um caso de Santa Catarina. Um monitor e militar do exército que atuava em uma escola de Florianópolis passou a ser investigado por estupro de vulnerável e importunação sexual, após ser denunciado por uma aluna. Relatamos outros casos em reportagem do projeto Gênero na Escola.

Em 2021, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) também demonstrou preocupação com a militarização. “A garantia do direito à educação requer pedagogia que respeite a individualidade, promova a cidadania e a socialização com respeito aos direitos humanos e que requer pessoal especializado. Neste sentido, a Comissão chama a atenção para a distinta natureza das forças armadas em comparação com aquela destinada à dinâmica educacional”, diz trecho do relatório do organismo internacional.

 

Fonte: Por Fernanda Pessoa, no Portal Catarinas

 

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