sexta-feira, 28 de julho de 2023


 Degradação florestal acelera o colapso da Amazônia

A queda no desmate da Amazônia gera certo alívio, mas sua degradação ainda não foi enfrentada como deveria. Isso amplia impactos como a seca e pode colapsar o bioma. Os prejuízos ultrapassam os limites da floresta equatorial, grande fonte de chuvas na América do Sul.

Os alertas para derrubadas na Amazônia caíram 33,6% no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo prazo de 2022. Os números são do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Trata-se de uma calmaria após recordes simultâneos de destruição florestal no governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro. Mas uma ameaça persiste em meio ao freio nas motosserras: a deterioração da Amazônia por fogo, corte seletivo de árvores, garimpo e estradas ilegais.

Esses prejuízos soam menos danosos do que o corte raso, mas seus verdadeiros efeitos colaterais começam a ganhar mais luz. Para cada 100 árvores amazônicas desmatadas, a degradação mata em média outras 22 por falta de água. E isso ocorre mesmo longe da área desmatada.

A preocupante conclusão é de uma análise do Climate Policy Initiative, centro internacional ligado no Brasil à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio). O balanço pesou cenários de maior e menor gravidade nas próximas três décadas para a Amazônia.

“Desmatar uma área reduz a umidade que é lançada pelas árvores e carregada pelos ventos, gerando menos chuvas em outras áreas da floresta”, explica Juliano Assunção, diretor-executivo da CPI/PUC-Rio. “Num efeito dominó, novas áreas começam a degradar”, alerta o cientista.

Vídeo explica a disseminação de impactos a partir da degradação da floresta amazônica. Fonte: CPI/PUC-Rio

Ou seja, derrubar a floresta enfraquece os Rios Voadores, as grandes massas de umidade que nascem na Amazônia e, de carona em ventos que sopram do Atlântico, garantem chuvas no bioma, no Brasil e em países vizinhos. Um fenômeno indispensável para ambientes naturais, pessoas e produção.

“O trabalho conecta desmatamento e degradação da floresta amazônica de maneira não óbvia. Nem sempre a degradação de hoje é o corte raso de amanhã”, destaca Assunção, também um dos coordenadores do projeto Amazônia 2030.

        Sinais do colapso

Diante das estimativas da CPI/PUC-Rio e dos cerca de 20% já desmatados da Amazônia, outros 13% da floresta deverão ser degradados até 2050. Isso acontecerá mesmo com o fim das derrubadas, como pedem pesquisadores, ongs e projetos de lei no Congresso Nacional.

“E se o desmatamento continuar até o limiar de 40% da floresta, haverá mais 20% de degradação da floresta nos próximos 30 anos”, destaca Rafael Araujo, analista sênior do CPI/PUC-Rio, em nota da entidade a ((o))eco. Isso reforça as ameaças da degradação à saúde da floresta e ao clima global.

Sob efeito do desmatamento e da degradação, regiões da Amazônia sul-americana e no Brasil já perderam a capacidade de se recuperar dos impactos e passam a emitir mais do que captar Carbono, um gás que amplia o efeito-estufa e aumenta a temperatura média do planeta.

A CPI/PUC-Rio avaliou que o desmate da Bacia do Rio Xingu, distribuída no Cerrado e Amazônia, pode reduzir de 8% a 15% as chuvas no Mato Grosso. O estado é um polo nacional do agronegócio, tem mais de 3,2 milhões de habitantes e 8 usinas hidrelétricas.

Uma investigação editada na Nature, em julho, revela que árvores no oeste e no sul da Amazônia são menos resistentes a longas secas. Já um estudo publicado em janeiro na Science descreve que 38% da Bacia Amazônica foi degradada e que a seca atinge 41% do restante da floresta. 

Veiculado na Reviews of Geophysics, em outubro de 2021, uma análise de duas dezenas de cientistas pesou 30 anos de monitoramento satelital e concluiu que a crise do clima provocará mais chuvas e inundações no norte amazônico e secas mais severas ao sul da região.

Enquanto isso, balanços científicos indicam que a degradação gerou quase 70% das emissões mundiais de Carbono de florestas tropicais, de 2003 a 2014. O desmate respondeu pelos demais 30%. Mas esse tipo de análise não pesa nos inventários brasileiros de emissões de gases-estufa.

“As emissões nacionais líquidas [perdas menos absorção] por mudanças no uso da terra seriam 21% maiores se os incêndios na Amazônia forem incluídos na conta”, lembra Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).

O índice inclui a eliminação inicial de árvores pelo fogo e as emissões das que morrem depois, feridas pelas chamas ou afetadas pela seca. Uma conta que não consta nem nos balanços do IPCC, órgão das Nações Unidas que avalia cientificamente o avanço global da crise climática.

“Países com florestas adaptadas ao fogo, como Estados Unidos, Canadá e Rússia, pressionaram para que isso não fosse incluído”, conta Ane Alencar. “Mas nas florestas tropicais é diferente. Elas não sofrem incêndios naturalmente”, lembra a cientista.

        Olhar ampliado

O estudo da CPI/PUC-Rio reforça que as derrubadas afetam além de onde foi desmatado, mas as políticas atuais não pesam tal realidade. “É preciso centrar esforços nas áreas mais importantes ao equilíbrio e à resiliência da floresta, evitando seu ponto de não-retorno”, destaca Juliano Assunção.

Essa situação irreversível, conforme pesquisadores, chegará quando a pressão de ações humanas como o desmate e a mudança do clima transformar a Amazônia numa floresta mais seca. Isso trará prejuízos sociais, econômicos e ambientais de magnitude global.

Diretora de Ciência do IPAM, Ane Alencar lembra que, sem combate, a degradação converterá a Amazônia num “tapete verde todo esburacado”,  sem a qualidade ambiental que deve ter. “Florestas degradadas seguem emitindo [gases-estufa] e causando outros impactos”, avisa.

Ela e outros cientistas de instituições brasileiras e internacionais sugeriram em abril ao governo que enfrentar a degradação ganhasse maior espaço no Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm).

O documento listou ações como incluir o tema nos balanços de emissões de poluentes climáticos, elencar municípios com maior degradação florestal, ampliar a vigilância por satélites, melhorar o licenciamento e fiscalização sobre uso do fogo e exploração florestal.

“As recomendações foram agregadas ‘bem de leve’ no Plano, incluindo questões sobre fogo, corte e manejo madeireiros, mas precisamos avançar muito na identificação e no controle da degradação da Amazônia”, resume a pesquisadora.

 

       40% das áreas da Amazônia estão sendo negligenciadas por pesquisas em ecologia

 

Em uma região do tamanho da Amazônia Brasileira, é normal ter áreas de floresta investigadas por muitas pesquisas e outras que quase não são o foco de cientistas. Entretanto, um estudo publicado hoje na Current biology pelo projeto Synergize, do Centro de Síntese em Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos do CNPq, mostrou que essa distribuição é muito desigual. Partindo de informações de 7.694 pontos de coletas ecológicas padronizadas e somando critérios que podem influenciar a escolha do local de coleta, os cientistas criaram um modelo que estimou a probabilidade de pesquisa para todo o território.

Foi identificado que mais da metade das terras firmes e cerca de um quarto dos ambientes aquáticos e um sexto das florestas alagáveis da Amazônia têm uma probabilidade quase nula de ser foco de pesquisas com coletas padronizadas de organismos.

Fatores logísticos, como presença de meios de transporte e distância em relação a grandes cidades e centros de pesquisa, estão entre os principais influenciadores da escolha. De acordo com o modelo, cerca de 15% das áreas com menor probabilidade de pesquisa estão sujeitas a sofrer severas alterações até 2050, por conta das mudanças climáticas ou outras formas de degradação impostas pelas pessoas à natureza.

Além da perda da biodiversidade e dos benefícios propiciados por ela para as pessoas, também estamos perdendo a chance de entender como os organismos destes ecossistemas estão respondendo às mudanças climáticas e à degradação ambiental. “Para entender como a biodiversidade da Amazônia vai responder [às mudanças], precisamos entender como ela está organizada hoje. Assim, no futuro, quando alguma mudança acontecer, vamos ter com o quê comparar”, explica Mario Moura, autor do artigo e especialista em lacunas de conhecimento sobre biodiversidade. “Precisamos falar de um antes e um depois, e nesse momento a gente não sabe nenhum dos dois: o depois já está chegando e o antes ainda não foi construído”, lamenta Moura, que é professor visitante da Unicamp (Universidade de Campinas).

As pesquisas sobre comunidades ecológicas envolvem o estudo de grupos de espécies, por exemplo formigas de uma determinada área. Para estudá-las, é necessário que o pesquisador vá até a região desejada e realize coletas seguindo padrões pré-definidos para poder estimar a diversidade de espécies e fazer comparações, com outras áreas ou ao longo do tempo.

O deslocamento até o local de coleta representa um custo de tempo e dinheiro, que precisa ser incluído no orçamento do projeto. Na Amazônia, essas cifras podem ser tão altas quanto a extensão de seu território. “Eu entendo que o governo federal tem as suas restrições, quando ele  [o Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq] abre um edital, o valor é o mesmo para todos em todos os lugares, mas, por exemplo, 90 mil reais para fazer pesquisa fora dos grandes centros da região norte, não é a mesma coisa que 90 mil reais para fazer pesquisa nessa parte mais conectada”, explica Fabrício Baccaro, professor da Universidade Federal do Amazonas e um dos mais de 600 autores a contribuir com dados para o estudo do projeto Synergize – Síntese das Respostas Ecológicas à Degradação de Ambientes Amazônicos.

A viagem de barco de Manaus até São Gabriel da Cachoeira, por exemplo, localizada no extremo noroeste do Estado do Amazonas, leva sete dias. De avião, além de caro, tem a limitação de peso da bagagem. Do centro de São Gabriel, os pesquisadores ainda precisam pegar barcos menores, que são bem mais caros que os barcos de linha, ou arranjar outra forma de transporte até o local de interesse, como, por exemplo, o Parque Nacional do Pico da Neblina, uma região muito pouco investigada pela ciência.

O estudo também evidenciou a importância do transporte fluvial, visto que as áreas com maior probabilidade de pesquisa ficam, principalmente, nos grandes rios e seu entorno. Dessa forma, a probabilidade de pesquisa na Terra Firme, que são as áreas não alagadas, fica menor quanto maior for a distância a essas vias de acesso. O deslocamento por estradas é bastante limitado, já que há pouquíssimas estradas em boas condições na região. 

Baccaro conhece bem a realidade das estradas amazônicas. Antes de se tornar professor, ele teve uma bolsa do Programa de Pesquisa em Biodiversidade da Amazônia (PPBio), financiado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), e ficou responsável por estabelecer pontos de coleta para serem utilizados de forma permanente por instituições de pesquisa fora do eixo central Manaus-Belém.

O projeto instalou 11 pontos permanentes ao longo da estrada que liga Manaus a Porto Velho (BR-319) – construída durante o governo militar, a estrada ficou abandonada e se encontrava bastante degradada. “Juntamos, eu e mais três mateiros, alugamos uma caminhonete, que veio com um motorista que nunca tinha dirigido em estrada de terra, e a gente se enfiou na BR…” relembra Baccaro. “Hoje, eu olho para trás e penso que a gente foi maluco”, reflete o cientista. A infraestrutura instalada, mais de dez anos depois, ainda é utilizada pelas instituições de pesquisa, assegurando um pouco da preciosa dispersão de dados da região.

Para os autores, a criação de novos centros de pesquisas poderia ser um caminho para garantir a ampliação e a regularidade da pesquisa na Amazônia, mas veem essa alternativa como pouco viável. “Tem um outro trabalho, que o grupo desenvolveu, mostrando como o investimento de pesquisa na Amazônia diminuiu nos últimos anos, por causa do governo e conjunturas mais recentes. Se você não está investindo nem nas instituições de pesquisas que já tem uma estrutura, como criar novas?”, questiona Raquel Carvalho, que liderou a pesquisa junto com a Angelica Resende.

        Terras Indígenas: uma parceria a ser construída

Outra solução sugerida pelo artigo é o desenvolvimento de parcerias científicas com os povos originários. Apesar das Terras Indígenas (TIs) representarem uma importante porção da áreas preservadas do país, elas estão entre as áreas com menor probabilidade de pesquisa, segundo o modelo apresentado. “Nos últimos 30 anos (1991-2021) no Brasil, as TIs perderam apenas 1,2% de sua área de vegetação nativa, enquanto nas áreas privadas foi 19,9%”, afirma o relatório da organização MapBiomas. Entretanto, essas áreas não estão livres de ameaças. A Terra Indígena Kayapó, por exemplo, além de sofrer com a degradação causada pelo garimpo, está em uma área, que segundo o modelo do Synergize, apresenta grande probabilidade de sofrer alterações por conta das mudanças climáticas.  

Além da distância física, a tratativa com os povos originários representa mais uma camada de complexificação da pesquisa, o que pode desestimular os cientistas. “Eu acho que a estamos mostrando uma consequência de um histórico de políticas públicas que não levou em conta a participação de indígenas no processo de desenvolvimento de ciência”, reflete Moura. O pesquisador entende ser necessário encontrar estratégias que facilitem a aproximação entre academia e indígenas. No artigo, os pesquisadores defendem que essas pesquisas se pautem a partir de perspectivas da decolonialidade e coprodução. “É a gente fazer a coprodução do conhecimento junto: dos cientistas com os indígenas e dos indígenas com os cientistas”, explica Carvalho.

Os graus de aproximação dentro da coprodução podem variar, Baccaro, por exemplo, está colaborando com a parte analítica de um projeto que envolve diversos povos indígenas, na região do alto Rio Negro. “Eles estabeleceram um projeto de monitoramento em conjunto com o ISA (Instituto Socioambiental) para responder às questões que eles têm interesse, como entender a relação dos animais com a subida e descida dos rios, com as chuvas…”, explica o professor. “Eles que fazem as coletas e registram as informações dentro de um sistema de anotação deles. Eu trabalho com eles na análise desses dados”, complementa Baccaro.

A coprodução na área ambiental tem sido vista como um caminho na busca por respostas que a ciência não consegue responder sozinha. Mas, assim como a distância física, diferenças culturais, de língua, precisam ser consideradas no planejamento de projetos que buscam a interlocução com outros saberes – sejam saberes de povos e comunidades tradicionais, ou até de gestores públicos. Além disso, os resultados produzidos por esses projetos, podem resultar em produtos que fogem do padrão usual das publicações científicas. Nesse sentido, a abertura de editais de apoio a pesquisa que considerem demandas e produtos diferenciados, pode ser um caminho para novos projetos.    

        Bancos de dados: a tecnologia a favor do compartilhamento de informações

Tendo em conta todos os desafios envolvidos na coleta de organismos e dados de campo, é fundamental que as informações levantadas possam ser compartilhadas para embasar o desenvolvimento de outras pesquisas. Foi com esse objetivo que o Synergize, coordenado por Joice Ferreira e Filipe França, iniciou a construção de base de dados ecológicos padronizados (dados coletados utilizando técnicas estabelecidas para pesquisas de comunidades ecológicas) para a Amazônia, chamada  Taoca. Antes do projeto, apenas as informações sobre plantas da região estavam organizadas em uma base internacional, mas não havia o mesmo para os animais.

A base possibilita que cientistas do mundo todo tomem conhecimento da existência dos dados, mas para utilizá-los, é necessário que o pesquisador interessado contate, via base de dados, o cientista responsável pela coleta e estabeleça uma parceria para a nova pesquisa.

Carvalho, que atualmente é pós-doutoranda na Universidade de São Paulo (USP), foi uma das responsáveis pelo desenvolvimento da Taoca, durante seu estágio de pós-doutorado no Synergize. Para a pesquisa apresentada nesta reportagem, que contou com a orientação de Jos Barlow, da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, os autores utilizaram apenas dados de localização das coletas de nove grupos de organismos. Recentemente o grupo de pesquisadores aprovou um novo projeto (SinBiAm – Sínteses da Biodiversidade Amazônica) para a manutenção e ampliação da base de dados.

 

Fonte: ((o))eco

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