sexta-feira, 28 de julho de 2023

Bahia tem maior população quilombola do país, aponta IBGE

A Bahia é o estado com a maior população quilombola do país, segundo dados do Censo, divulgados pelo IBGE, nesta quinta-feira (27). São 397.059 pessoas, que representavam 3 em cada 10 (29,9%) dos 1.327.802 quilombolas identificados pelo levantamento no Brasil.

Atrás da Bahia está o Maranhão, com 269.074 quilombolas ou 20,3% do total do Brasil e Minas Gerais, com 135.310 ou 20,3% do nacional. Segundo o IBGE, Somando-se os 5 estados com os maiores contingentes de quilombolas, chegava-se a pouco mais de 3/4 de toda a população quilombola brasileira, ou seja, 76,46%.

A Bahia também é o estado com o maior número de domicílios particulares permanentes ocupados em que ao menos uma pessoa era quilombola: 149.287. Eles representam 3 em cada 10 domicílios quilombolas do Brasil.

As pessoas autodeclaradas quilombolas são 2,81% da população baiana. Essa proporção foi bem superior à verificada no Brasil como um todo, onde 0,65% de toda a população é quilombola, e a 2ª mais elevada do país, menor apenas do que a do Maranhão, onde 3,97% da população eram quilombolas.

Dentre todos os domicílios ocupados na Bahia, 2,93% tinham ao menos um/a morador/a quilombola, também uma proporção bem acima da nacional (0,65%) e a segunda maior entre os estados, só abaixo do Maranhão (4,20%).

•        Onde tem mais quilombolas?

Segundo o Censo, foi verificada a presença de quilombolas em 7 de cada 10 municípios baianos: 308 das 417 cidades do estado (73,9% do total). No Brasil como um todo, foi verificada a presença quilombola em 1.696 municípios, 30,4% dos 5.570.

Senhor do Bonfim, com 15.999 quilombolas, lidera o ranking nacional, seguido por Salvador (15.897) e Alcântara/MA (15.616). Campo Formoso (8º lugar, com 12.735 quilombolas), Feira de Santana (9º, com 12.190) e Vitória da Conquista (10º, com 12.057) eram as outras cidades da Bahia presentes no top-10.

Em termos percentuais, porém, só o município baiano de Bonito, com metade de sua população declarada quilombola (50,28% ou 7.967 pessoas) está entre as 10 cidades brasileiras com maior proporção da população quilombola, ocupando o 5º lugar. Nacionalmente, Alcântara/MA (84,57%), Berilo/MG (58,37% ou 5.735 quilombolas) e Cavalcante/GO (57,08% ou 5.473 quilombolas) lideram.

Na Bahia, abaixo de Bonito, os municípios com maiores proporções de quilombolas na população em geral são Mulungu do Morro (38,49% ou 5.062 quilombolas), Filadélfia (35,46% ou 6.346), Antônio Cardoso (33,70% ou 3.756) e América Dourada (31,23% ou 4.727).

•        Territórios delimitados

Apesar de ter o maior número e a 2ª maior proporção de quilombolas do país, a Bahia tinha, em 2022, o 3º menor percentual desses quilombolas vivendo em territórios oficialmente delimitados.

Das 397.059 pessoas que se declararam quilombolas no estado, 20.753 moravam nas 48 áreas em alguma etapa do processo de delimitação formal, o que correspondia a 5,23% do total de quilombolas baianos/as.

No Brasil como um todo, essa proporção chegava a 12,59%, e 167.002 quilombolas (de um total de 1,3 milhão) moravam em territórios delimitados.

Com quase 95,0% das pessoas autodeclaradas quilombolas morando em localidades não reconhecidas oficialmente, a Bahia tinha, em 2022, a maior população quilombola vivendo fora dos territórios delimitados: 376.306 pessoas.

 

       Brasil tem 1,3 milhão de habitantes em áreas remanescentes de quilombos

 

Na beira da estrada que corta a Serra do Araras, a 18 km de Amarante, Centro-Norte do Piauí, um trio de mulheres negras vende hortaliças e chama a atenção com seus turbantes e roupas coloridas. A poucos metros das vendedoras, do outro lado da pista, uma grande placa indica o lugar: a Comunidade Quilombola Mimbó. Três quilômetros pela estreita estrada de pedra e se chega ao Mimbó, com suas casas, quadra de esportes, campo de futebol, uma escola para crianças e um posto de saúde. A comunidade foi fundada há 203 anos por dois casais negros escravizados, que vieram a pé, fugindo de maus-tratos nas fazendas de algodão de Pernambuco. “Chegaram aqui com os dedos dos pés atrofiados, de tanto correr e andar descalços pelas matas e estradas”, conta Idelzuíta Paixão, neta dos fundadores, cujo sobrenome batiza mais de 90% da comunidade. “Eles se esconderam em uma caverna por muitos anos, até pararem de ser perseguidos pelos brancos, montaram suas casinhas e começaram a povoar o lugar.” Reconhecida como a primeira comunidade quilombola do Piauí e registrada pela Fundação Palmares desde 2006, o Mimbó abriga hoje 177 pessoas.

Mas só este ano foi possível saber com exatidão a população do Mimbó e de outras comunidades remanescentes de quilombos: o Censo 2022, o 12º realizado no país, foi o primeiro a identificar e contabilizar moradores dessas áreas. Os números oficiais divulgados pelo IBGE nesta quinta-feira (27) revelam que a população quilombola chega a 1,3 milhão de pessoas no Brasil – 0,65% do total do país. A maior parte da população de quilombolas, 70%, se concentra no Nordeste, e um terço está na Amazônia Legal. Os estados da Bahia e do Maranhão abrigam, juntos, metade da população quilombola. Dos 5.569 municípios brasileiros, 1.696 registraram presença de pessoas autoidentificadas como quilombolas, mas somente 326 cidades têm territórios delimitados.

Recensear os descendentes de quilombos só foi possível graças a um acordo firmado entre o IBGE e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que reúne representantes de mais de 23 estados da Federação, com exceção do Acre. Antes, essas localidades e territórios padeciam num longo apagão demográfico, sem dados exatos sobre população e condições de vida. Uma pergunta específica sobre a identidade quilombola foi incluída no questionário do Censo. Primeiro o entrevistado respondia sobre cor ou raça (branca, preta, parda, amarela e indígena); na sequência, vinha outra questão: “Você se considera quilombola?” Se a pessoa respondia sim, o recenseador indagava a qual comunidade pertencia. Segundo o IBGE, as perguntas não interferem uma na outra, pois, de acordo com o Decreto 4.887, há presunção de ancestralidade negra e não de que existe cor ou raça pré-definida para a população quilombola.

O Censo identificou 494 territórios quilombolas oficialmente delimitados, onde residem 167,2 mil pessoas, cerca de 12,6% da população quilombola. Entre os territórios delimitados, o de maior população é o de Alcântara, no Maranhão, com 9.344 habitantes, seguido por Alto Itacuruçá, Baixo Itacuruçá e Bom Remédio, no Pará, que somam 5.638 pessoas, e Lagoas, no Piauí, com 5.042 habitantes. Dos territórios delimitados, só são oficialmente tituladas 147 comunidades, onde vivem 62.859 pessoas – o que significa que menos de 5% dos quilombolas possuem a documentação de suas terras.

No Mimbó, a paisagem é tomada por gigantescas torres. Por conta delas, há mais de um ano, o lugar se tornou a primeira comunidade quilombola a receber internet banda larga do país. A tecnologia de fibra óptica, instalada pela parceria público-privada Piauí Conectado, garante também outros 66 pontos individuais nas casas onde há estudantes. Antes disso, os moradores recorriam ao instável sinal de telefonia da área. As recargas telefônicas, além de custosas para os orçamentos familiares, não eram velozes o suficiente para garantir navegabilidade para os usuários. “Tinha que ir pra Amarante, de carro ou de ônibus, pra ter um bom sinal de internet”, relembra Idelzuíta.

Na pandemia de Covid, quando as aulas precisaram ser transmitidas online, e ainda não havia internet banda larga na comunidade, uma parcela considerável de estudantes do nível médio e fundamental do Mimbó abandonou a escola. A da comunidade só vai até a quinta série, e quem quiser seguir nos estudos precisa ir para a sede do município. Tudo isso impacta a progressão escolar das crianças da comunidade, que agora tentam recuperar os anos perdidos. Com a chegada da internet, o acesso à educação e cursos de capacitação profissional se ampliou.

A internet mudou, por exemplo, a vida de Teresinha Barreto. Quando o sinal de internet ficou disponível e gratuito na comunidade, ela aprendeu, em videoaulas, a cortar vidro, fazer bordado, crochê, reciclar plástico e artesanato com cordas de sisal – uma fibra vegetal comum na região, bastante usada para amarrar objetos em obras e na agricultura. Depois de produzir, também aprendeu a vender. O WhatsApp e o Instagram se transformaram em uma vitrine virtual para comercializar as peças sem sair de casa. Antes da internet, as poucas artesãs da cidade tinham que ir até Amarante vender as peças na feirinha. E o negócio tem dado certo: a renda gerada com as suas peças tem sido suficiente para pagar as despesas da casa em que mora com o companheiro e as três filhas. “Meu marido tem uma borracharia, mas aqui quase não tem carro e moto, então o serviço é pouco”, explica. “Depois que a internet chegou, a gente conseguiu um jeito de conquistar o pão de cada dia dentro da comunidade”, conta à piauí.

O Mimbó também vive um dilema comum a muitas comunidades quilombolas: o êxodo juvenil. Ao longo dos seus 70 anos, Idelzuíta Paixão viu muitos de seus vizinhos saírem para trabalhar fora. Os rapazes iam para a construção civil, e as moças, para trabalhos domésticos em casa de família nas cidades próximas. Ela se preocupa com o futuro, porque, antes, “a pessoa envelhecia e, sem oportunidade, voltava pro quilombo”. “Os jovens merecem mais oportunidades, mas também não é justo que, depois de duzentos anos de luta, a gente veja no próximo Censo a população diminuindo por falta de oportunidades”, lamenta. O medo do esvaziamento populacional aumenta após o resultado do Censo. No Mimbó, a população oficial ficou bem abaixo das 600 pessoas estimadas pelas lideranças e pelo governo estadual.

Os números do Censo devem nortear União, estados e municípios em ações mais específicas para a população quilombola, ainda que respeitando a realidade cultural de cada comunidade. O líder do território quilombola Lagoas, Cláudio Teófilo, diz que os resultados são ainda mais fundamentais para as comunidades que ainda estão lutando pela regularização e titulação de terras. “Esperamos, no mínimo, algum tipo de visibilidade com esses números”, disse à piauí. “Vivíamos, e ainda vivemos, de forma apagada neste país. Quando chega algo para nós, chega atrasado. Não somos prioridade. O que a gente espera, com a contagem do Censo, é que não haja mais desculpas de que não sabem que existimos e onde existimos.”

A defensora pública Karla Andrade, coordenadora do projeto Vozes do Quilombo, responsável por agilizar processos que envolvem povos quilombolas no Piauí, diz que a falta de assistência às comunidades não ocorre por falta de informação ou de suporte legal. Tanto a Constituição Federal como o Decreto nº 4.887/2003, além de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, garantem o processo de identificação, reconhecimento e demarcação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. O que existe, no entanto, é um vácuo entre o que já está previsto em atos normativos e os direitos realizados. “É preciso que sejamos transparentes para assumir que o abismo de desigualdades que os povos quilombolas sofrem hoje também passa pelo racismo institucional”, destaca a defensora.

Por enquanto, é difícil saber se os dados do Censo irão trazer mudanças concretas para as comunidades quilombolas. Entre a esperança e o temor do êxodo juvenil, o Mimbó tem visto sua primeira geração chegando à universidade e espera algo inédito para 2024: seu primeiro graduado por uma instituição de ensino superior pública. Ramon Paixão, de 29 anos, deve concluir a graduação de educação do campo pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Para terminar os estudos, ele vive em Teresina e volta ao Mimbó nos fins de semana e feriados. “Quando era mais novo, tive que trabalhar na cidade para fazer de tudo: pintura, vendas e entregas. Agora sei que as coisas vão mudar: quero ser cientista e produzir conhecimento. Sei que sou capaz de voltar para minha comunidade e devolver o que eu aprendi.”

 

Fonte: Correio/Revista Piauí

 

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