domingo, 30 de julho de 2023

A razão geopolítica contra os povos

A cada dia, aparecem com mais transparência os horrores da guerra na Ucrânia, as terríveis consequências das armas sobre os corpos e seu entorno de vida. É notável, no entanto, que os meios de comunicação mencionem, sobretudo, a destruição material de edifícios históricos e emblemáticos, de pontes e outras infraestruturas e de material de guerra, que sempre está nas primeiras páginas e manchetes.

Os seres humanos mal ocupam espaços marginais, porque cada vez mais são considerados como “danos colaterais”, pois o que realmente importa é o valor das coisas. Uma atitude típica do capital que está sendo assumida cada vez mais pelas esquerdas do sistema. Algo semelhante acontece com a geopolítica.

É notícia, por exemplo, quando uma renomada jornalista da televisão ucraniana, Yanina Sokolova, compartilha a dor dos soldados em suas redes sociais, o corpo amputado de um ferido de guerra, cheio de traumas físicos e lesões. “Sente-se mal 24 horas por dia”, escreve (La Stampa, 21/07/23). Para aliviar as dores e os danos em seu corpo, precisa tomar opioides, que também trazem consequências negativas.

Dias atrás, o Parlamento votou, com urgência, a legalização da maconha para fins medicinais, algo a que havia se negado antes, para aliviar o terrível sofrimento de soldados e civis devastados pelo conflito, destaca o texto do La Stampa.

Acrescenta que um dos efeitos da guerra está sendo o crescimento exponencial da demanda por cannabis e substâncias psicoativas na Ucrânia e na Rússia, usadas como tranquilizantes, anestesia contra dores e alucinações, e ainda como estimulante em casos de depressões profundas.

Pelo que parece, a relação entre guerra e drogas é muito forte. Depois da guerra do Vietnã, constatou-se um colossal uso de heroína entre ex-soldados estadunidenses, a tal ponto que os sucessivos governos tiveram que financiar programas para enfrentar as dependências.

Os relatos atuais sobre a guerra buscam ocultar os seres humanos. Abundam dados gerais (ofensivas militares, tipo de armas utilizadas, fotos e vídeos sobre a destruição, número de mortos e feridos), mas raramente aparecem os corpos mutilados e destroçados que são o pão de cada dia nas regiões de combate. A guerra é, como tem sido dito nesses dias, um “moedor de carne”. Os especialistas afirmam que a expectativa de vida de um soldado no front é de apenas quatro horas.

A geopolítica também oculta as pessoas. Ensina quais nações podem se beneficiar da guerra e quais podem perder. Empenha-se em analisar os resultados estratégicos no equilíbrio global de poder. Na esquerda latino-americana, não poucos celebram uma possível derrota do campo ocidental e, em particular, dos Estados Unidos. Acreditam que uma vitória da Rússia e da China trará benefícios para as classes trabalhadoras. Ignoram os sofrimentos das mulheres, dos jovens e dos povos desses países e se fixam apenas na escala macro das relações internacionais.

A geopolítica está em desacordo com a ética, assim como a guerra. E isso também acontece com as esquerdas, que nasceram para colocar o ser humano em primeiro lugar, ao passo que as direitas se ocupavam dos lucros materiais e do poder. Como sabemos, as diferenças entre esquerda e direita desapareceram, sendo a maior derrota cultural e política imaginável.

Com isso, não pretendo dizer que os dados e as análises que provêm da geopolítica não tenham importância para os povos. Contudo, uma coisa é levá-los em conta e outra muito diferente é se submeter à sua lógica, sempre estatal e imperialista. Algo semelhante acontece com a economia: é necessário atender às suas contribuições, mas a deriva economicista entre os de baixo supõe uma rendição às tecnocracias que a administram.

Essa deriva implica colocar no centro do pensamento e a ação as supostas implacáveis leis econômicas, que levariam os povos à sua libertação, em vez de considerar o conflito social como o coração da emancipação.

Agora que a geopolítica goza de tantos adeptos, parece importante destacar suas limitações, mais sociais do que intelectuais. Vou dar um exemplo: acredito que a queda do regime de Daniel Ortega, na Nicarágua, beneficiaria os Estados Unidos, razão pela qual a China e a Rússia o apoiam. Ninguém pensa na população nicaraguense, aquela que sofre todos os dias com um regime intolerante e repressor.

Nesse ponto, não há como errar: pensa-se a partir e com os povos oprimidos ou se abraça a lógica do poder e da maldita “correlação de forças”. Algo tremendo está acontecendo diante de nós: abordam-se todas as facetas da vida como se tratasse de uma partida de futebol. Dói em nós que gostamos desse esporte. Mas, dói muito mais em nós que ainda acreditamos que vale a pena atuar pelos seres humanos deste mundo, independentemente do lugar onde vivam

 

Ø  Não nos deixemos esmagar pela geopolítica

 

geopolítica aborda pensamentos e formas de ver o mundo imperiais, a serviço dos estados mais poderosos. Surgiu desse modo e permanece assim, embora alguns intelectuais se empenhem em uma espécie de geopolítica de esquerda, ou até revolucionária.

A geopolítica surge em inícios do século XX entre geógrafos e estrategistas militares do norte, que vinculam as realidades geográficas com as relações internacionais. O termo surgiu pela primeira vez em um livro do geógrafo sueco Rudolf Kjellén, intitulado O Estado como forma de vida. O almirante estadunidense Alfred Mahan desenvolveu a estratégia do domínio naval, ao passo que Nicholas Spykman definiu as regiões da América Latina onde os Estados Unidos devem manter o controle absoluto para garantir seu domínio global.

 A geopolítica teve um grande desenvolvimento na Alemanha de inícios do século XX, alcançando grande difusão durante o nazismo. Na América Latina, os militares da ditadura brasileira (1964-85), como Golbery do Couto e Silva, basearam-se na geopolítica para defender a expansão do Brasil, para concluir a ocupação da Amazônia e se tornar o hegemon regional.

Não estou interessado em aprofundar essa disciplina, mas em suas consequências sobre os povos. Se a geopolítica trata das relações entre estados, e em especial sobre o papel dos que buscam dominar o mundo, o grande ausente nesse pensamento são os povos, as multidões oprimidas que nem sequer são mencionadas em suas análises.

Boa parte daqueles que justificam a invasão russa da Ucrânia enchem páginas denunciando as atrocidades dos Estados Unidos. Alguém nos lembra: “Os Estados Unidos realizaram 48 intervenções militares nos anos 1990 e se envolveram em várias guerras sem fim durante as duas primeiras décadas do século XXI”.

Acrescenta que, nesse período, os estadunidenses “realizaram 24 intervenções militares ao redor do mundo e 100.000 bombardeios aéreos, e só em 2016, durante o governo de Barack Obama, lançaram 16.171 bombas sobre sete países”.

A lógica de tais análises diz algo assim: o império A é terrivelmente cruel e criminoso, mas o império B é muito menos prejudicial porque, evidentemente, seus crimes são muito menores. Como os Estados Unidos são uma máquina imperial que assassina centenas ou dezenas de milhares todos os anos, por que levantar a voz contra quem mata apenas alguns milhares, como a Rússia?

Essa é a forma rasteira e calculista de fazer política que não leva em conta a dor humana, que considera que os povos são apenas números nas estatísticas da morte, ou que os considera apenas carne de canhão, como números em uma balança que só mede lucros empresariais e estatais.

Ao contrário, nós, de baixo, colocamos em primeiro lugar os povos, as classes, cores de pele e sexualidades oprimidas. Nosso ponto de partida não são os estados, nem as forças armadas, nem o capital. Não ignoramos que existe um cenário global, nações expansionistas e imperialistas. Mas analisamos esse cenário para decidir como atuar como movimentos e organizações de baixo.

Em Imperialismo, estágio superior do capitalismo, escrito em 1916, durante a Primeira Guerra Mundial, Lenin analisou o capitalismo monopolista como causa da guerra. Mas não tomou partido por nenhum bando e se esforçou para transformar a carnificina em revolução.

Immanuel Wallerstein trabalhou desse modo. Sua teoria sobre o sistema-mundo pretende compreender e explicar como funcionam as relações políticas e econômicas em um planeta globalizado, com o objetivo de impulsionar a transformação social.

São ferramentas úteis para os povos em movimento. Compreender como o sistema funciona, longe de nos levar a justificar qualquer uma das potências em batalha, favorece prever as consequências que terá sobre os de baixo.

O zapatismo chama o caos sistêmico que estamos vivendo de “tormenta” e também considera que é necessário compreender as mudanças no funcionamento do capitalismo. Quanto ao primeiro, a conclusão é que devemos nos preparar para enfrentar situações extremas, que nunca vivemos. Pensamos que poderão utilizar armas atômicas nos próximos anos?

Em relação ao segundo, embora os zapatistas não o mencionem de forma explícita, pelo que me lembro, é evidente que o 1% mais rico sequestrou os estados-nação, que não existem meios de comunicação, mas de intoxicação e que as democracias eleitorais são contos de fadas, quando não desculpas para perpetrar genocídios. Em consequência, não se deixam enredar na lógica estatal.

Estamos diante de momentos dramáticos para a sobrevivência da humanidade. Devemos erguer os olhos e não nos deixar arrastar no lodaçal geopolítico. Se a névoa é tão espessa que nos impede de distinguir a luz da sombra, confiemos nos princípios éticos para seguir em frente.

 

Fonte: Por Raúl Zibechi, em IHU OnLine

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário