A farra aérea do
clã Bolsonaro quando no Poder: teve amigos, pastores e até cachorro
Listas
de passageiros mantidas até agora sob sigilo e um conjunto de mensagens
internas obtidas com exclusividade pelo Metrópoles mostram
que, durante o governo Bolsonaro, a então família presidencial usou aviões da
Força Aérea Brasileira (FAB) para participar de eventos privados, como cultos
religiosos, e para transportar amigos, parentes, pastores e até um cachorro de
estimação.
Voando
em uma zona cinzenta das regras que regulam os voos oficiais, as frequentes
demandas do clã por jatinhos chegaram a preocupar os próprios militares
envolvidos nas missões.
Com
base em dados oficiais do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da
Presidência da República relativos aos quatro anos em que Jair Bolsonaro esteve
no Palácio do Planalto, a reportagem mapeou mais de 70 viagens da família —
todas feitas sem que o próprio Bolsonaro estivesse a bordo.
Foram
54 voos da então primeira-dama Michelle Bolsonaro, 10 do vereador Carlos
Bolsonaro, o filho 02 do agora ex-presidente, e 7 de Jair Renan Bolsonaro, o
04.
Para
além de informações sobre essas viagens, como detalhes dos deslocamentos e as
listas detalhadas dos passageiros convidados, mensagens de um grupo de WhatsApp
usado como canal oficial de comunicação pelos funcionários do GSI encarregados
de providenciar os jatinhos revelam que os pedidos eram tratados como
verdadeiras ordens — tudo sob a coordenação de altos oficiais das Forças
Armadas que chefiavam o setor.
·
Michelle
vai à igreja
Um
exemplo que desafia os limites da legislação — e da falta de zelo com o
dinheiro público — está nas viagens feitas por Michelle Bolsonaro para
participar de cultos religiosos.
No
material, há registro de pelo menos três viagens com esse propósito, sem que
houvesse nenhum outro evento oficial com divulgação pública que justificasse o
deslocamento da primeira-dama.
Michelle
pedia jatinhos da FAB para voar de Brasília para o Rio de Janeiro, onde gostava
de frequentar os cultos de uma igreja evangélica na Barra da Tijuca, zona oeste
da cidade. E ela não ia sozinha. Normalmente, os aviões oficiais levavam,
ainda, vários convidados da primeira-dama.
É
o caso de uma demanda de junho de 2019. A ordem para a missão dizia que
Michelle participaria, “como voluntária”, de um evento chamado “Vida Vitoriosa”
na Igreja Batista Atitude, frequentada por ela desde os tempos em que morava no
Rio. A primeira-dama voaria acompanhada de “mais dez pessoas” na ida e de oito
na volta.
·
O
“pastor capeta” e a “amiga do cartão” a bordo
Missão
dada, missão cumprida. No dia 28 de junho, um avião da FAB decolou da Base
Aérea de Brasília com destino ao Aeroporto do Galeão, no Rio. Ao lado de
Michelle, estava o pastor Francisco de Assis Lima Castelo Branco, um antigo
amigo da família.
O
jato usado na viagem foi um Embraer 135, com capacidade para 14 passageiros e
cuja hora de voo costuma custar mais de US$ 3,5 mil, ou R$ 17 mil.
Alçado
à condição de passageiro vip, Francisco, que chegou a organizar um “jejum” em
nome do clã, viria a ganhar cargos no governo Bolsonaro. Ele é casado com uma
amiga de Michelle que também foi nomeada na Presidência da República e
costumava viajar, com frequência, na companhia da então primeira-dama. Um filho
do casal também aparece nas listas de passageiros, assim como outras crianças,
levadas pelos demais convidados.
À
época da viagem para o compromisso voluntário de Michelle, o pastor não ocupava
nenhum cargo no governo — ele só foi nomeado no ano seguinte.
Em reportagem
publicada pelo Metrópoles no
início deste ano,
Francisco aparecia como uma espécie de capataz da primeira-dama no dia a dia do
Palácio da Alvorada, do qual passou a ser administrador. Apelidado de “pastor
capeta”, ele era alvo frequente de queixas de funcionários, que chegaram a
relatar episódios nos quais se sentiram assediados moralmente.
No
voo estava, ainda, a funcionária do Senado Rosimary Cardoso Cordeiro, amiga
pessoal de longa data do casal Bolsonaro que, conforme revelou a mesma
reportagem,
emprestava a Michelle um cartão emitido em seu nome cujas faturas eram pagas em
dinheiro vivo pela equipe do tenente-coronel do Exército Mauro Cid, ajudante de
ordens do então presidente.
·
O
esquadrão especial
Para
deslocamentos como esse costumavam ser usadas aeronaves da frota do GTE, o
Grupo de Transporte Especial da FAB, que serve a ministros do governo e outras
autoridades.
As
viagens solicitadas pela família eram “encaixadas” no quase sempre tumultuado
roteiro organizado pelo setor, que atende ainda a cúpula do Supremo Tribunal
Federal e do Congresso Nacional.
As
outras viagens de Michelle Bolsonaro para participar de eventos evangélicos no
Rio ocorreram nos dias 22 de fevereiro e 10 de maio de 2019.
Em
agosto do ano passado, Michelle usou um avião da FAB para participar, em Belo
Horizonte, de uma celebração em homenagem ao pastor Márcio Roberto Vieira
Valadão, pai do também pastor André Valadão, que nos últimos dias ganhou as
manchetes por incitar fiéis
a matarem pessoas LGBTQIA+. O próprio Bolsonaro participou do evento, mas viajou
à capital mineira em outra aeronave.
Nessas
viagens, a então primeira-dama não estava acompanhada do presidente. Foram voos
exclusivos para compromissos dela.
Dos
54 voos de Michelle que constam do levantamento, 33 apresentam uma finalidade
vaga, sem indicação dos eventos dos quais ela supostamente iria participar.
Nesses casos, os documentos apenas listam que as aeronaves decolariam “em
apoio” a Michelle ou estariam “à disposição” do presidente em missões
envolvendo a primeira-dama.
Em
dois trechos, uma viagem de ida e volta a São Paulo em 21 de setembro de 2019,
o GSI declarou como motivo uma visita a uma entidade e uma “agenda privada”,
sem mais detalhes.
A
planilha registra, ainda, viagens para cidades como Cuiabá, Manaus, João
Pessoa, Belo Horizonte, Roma e Londres.
·
A
preocupação de quem recebia as ordens
Nas
conversas de WhatsApp entre os próprios militares que serviam à Presidência,
eram comuns intervenções que denotavam preocupação com a rotina de voos
solicitados pelo clã Bolsonaro para atividades privadas e com amigos a bordo.
No
começo de julho de 2019, por exemplo, um oficial postou uma reportagem
publicada dez anos antes que deu o que falar. Era sobre um voo da FAB que levou
de São Paulo a Brasília um grupo de amigos de um dos filhos do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva.
Na
mensagem, o militar observa, com alguma dose de crítica: “As mesmas coisas
feitas por outras pessoas”. “Temos que prevenir o PR (Presidente da República)
e a FAB da história se repetir”, prossegue. Por fim, o oficial escreve: “Filho
de presidente não pega carona”. O alerta parece não ter funcionado.
·
A
cachorra voadora
A
mensagem foi escrita no grupo de WhatsApp do GSI em um período no qual estavam
sendo organizadas várias viagens de Jair Renan Bolsonaro.
A
certa altura, até um dos cachorros da família foi transportado em um dos jatos:
Beretta, a cadela vira-latas de Eduardo Bolsonaro cujo nome homenageia a famosa
fabricante italiana de armas.
O
grupo fazia as vezes de um canal oficial de comunicação por meio do qual eram
compartilhadas as ordens de serviço. Entre os participantes estavam os chefes
do setor à época, como o coronel da FAB Eduardo Alexandre Bacelar, então
coordenador-geral de Transporte Aéreo, e o general Luiz Fernando Estorilho
Baganha, então secretário de Segurança e Coordenação Presidencial do GSI, ambos
do GSI.
Após
o fim de semana no qual participou do culto no Rio, com direito a diversas
fotos em redes sociais, Michelle Bolsonaro precisava voltar para casa e um
avião saiu de Brasília para ir buscá-la. Era 1º de julho de 2019, uma
segunda-feira.
Ao
mesmo tempo, Jair Renan queria voar até o Rio para visitar a mãe em Resende,
cidade do sudoeste fluminense. Na faixa, o 04 pegou carona no voo que foi
buscar Michelle.
É
aí que Beretta, a cadela de Eduardo, entra de última hora na, digamos, lista de
passageiros. Coube ao agora notório Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro,
hoje enrolado em várias frentes de investigação, expedir a ordem. Os militares
que receberam a missão registraram no grupo do GSI que era preciso incluir “a
fera Bereta” — é assim que eles se referem à cadela — no trajeto do Rio até
Brasília.
Fica
evidente, nas mensagens, que não aquela não seria a primeira viagem levando a
bordo animais da família. O tenente-coronel que avisou da necessidade de levar
a cadela lembrou que a missão recebida de Cid não seria trivial e já havia causado
problemas. “No último embarque a casinha de transporte não passava na porta,
gerando transtornos”, escreveu o oficial.
Jair
Renan, passageiro prioritário
Em
10 de julho de 2019, no grupo de WhatsApp no qual os militares encarregados de
administrar as viagens presidenciais chegou um lembrete importante: “Não se
esqueçam do Renan”.
Na
sequência vieram os detalhes do novo serviço a ser prestado a familiares do
então presidente: “Serve qualquer voo do Rio para Brasília entre 13 e 15 de
julho”.
A
resposta imediata não era animadora para quem tinha recebido a missão de
atender, a qualquer custo, o pedido: não havia voos previstos para ocorrerem
naquelas datas que pudessem servir ao 04.
Isso
não significava, porém, que Jair Renan teria que embarcar, como um brasileiro
qualquer, em um avião comercial. Primeiro, um dos militares cogita uma solução
alternativa.
“Ele
tem que entrar na sorte de uma contramão”, diz, referindo-se à chance de surgir
alguma demanda saindo de Brasília para buscar outras autoridades no Rio
naqueles dias. Nesse meio tempo, ele até brinca diante do que era, até então,
uma dificuldade: “Filho do PR hehehe. Não tá fácil para ninguém”.
Vinte
minutos depois, no entanto, um superior avisa, com a autoridade de quem sabe
que os subordinados são obrigados a obedecer: “Se até dia 12 não aparecer nada,
vou ligar para a GC-2 acionar treinamento”.
GC-2
é o setor da FAB que gerencia o fluxo de voo dos jatos oficiais. “Acionar
treinamento”, por sua vez, significa agendar um voo com a justicativa de
treinar a tripulação — ou seja, se não aparecesse outro voo, o staff a serviço
do gabinete presidencial iria recorrer ao velho “jeitinho” para atender o filho
de Bolsonaro.
A
troca de mensagens mostra que nem sempre, como costumam alegar as autoridades,
a família presidencial só era “encaixada” em voos já existentes, sem custos
adicionais para os cofres públicos. Fica claro que as demandas do clã
funcionavam como uma ordem. Era preciso atender e pronto.
·
O
maquiador e o golpista
Também
embarcaram nos aviões da FAB outras personalidades do mundo bolsonarista –
alguns com propósito duvidoso e nenhuma relação com o governo.
O
maquiador Pablo Agustin, por exemplo, acompanhou a primeira-dama em uma visita
ao Hospital de Amor de Barretos, especializado no tratamento de pacientes com
câncer, em 25 de outubro de 2019.
Como
acompanhante de Carlos Bolsonaro, aparece um assessor dele na Câmara Municipal
do Rio. Rogério Cupti, que nunca ocupou cargo no governo federal, era um dos
encarregados da criação de um canal de TV na internet para propagar as ideias
do então presidente.
As
duas viagens que ele fez com Carlos nas asas da FAB ocorrem no período
eleitoral de 2022. Ambas começaram em Brasília e terminaram no Rio — a segunda,
por sinal, foi às vésperas do segundo turno.
O
sargento Murilo José Geromini, cujo nome aparece nas investigações sobre os
pagamentos de despesas da ex-primeira-dama, também já viajou na companhia de
Carlos Bolsonaro. Nesse caso, saiu de Brasília para acompanhar uma motociata de
Bolsonaro no Rio, em maio de 2021.
Outro
militar do Exército, o capitão Andriely Cirino acompanhou três vezes o filho 02
do então-presidente. O nome do oficial, que foi lotado no gabinete
presidencial, já apareceu relacionado às tramas golpistas do bolsonarismo. A
última viagem com Carlos foi ano passado, também em plena campanha, para
participar de um evento simbólico: o desfile cívico militar de 7 de setembro,
na orla de Copacabana.
·
Viagens
de campanha
Entre
os voos feitos pelos parentes do presidente há alguns que aparecem descritos
como viagens de cunho eleitoral — isso está, inclusive, apontado na própria
finalidade declarada. Às vésperas do debate promovido pela TV Globo em 29 de
setembro de 2022, por exemplo, Carlos Bolsonaro deixou Brasília e seguiu para o
Rio a bordo de um dos aviões da FAB. Com ele havia uma comitiva composta por
militares, assessores e seguranças. O objetivo da viagem foi assim definido na
planilha: “atividade eleitoral no Rio de Janeiro em 29/09/2022”.
A
legislação autoriza presidentes no exercício no cargo que sejam candidatos a
usar aviões da FAB em viagens para cumprir compromissos de campanha. Os custos
desses deslocamentos, porém, precisam ser ressarcidos aos cofres públicos — no
caso em questão, o PL, partido de Bolsonaro, deveria reembolsar a FAB.
Os
pagamentos de despesas com voos oficiais feitos pelo partido ainda estão sob
análise, mas é certo que esse voo que levou Carlos e outros integrantes do
entourage de Bolsonaro, especificamente, não aparecem no rol dos que foram
ressarcidos pelo PL. A lista inclui apenas o voo que levou o próprio Bolsonaro,
no dia do debate. O Metrópoles perguntou
à FAB, ao GSI e à Presidência por que esse voo não aparece entre os passíveis
de reembolso, mas não houve resposta até o momento.
·
Vazio
legal
As
normas que regem o uso de aviões oficiais por autoridades são omissas quanto
aos limites dos serviços prestados a parentes do presidente da República. Há
menções genéricas ao atendimento de “familiares”, mas os textos passam ao largo
de definir limites ou, menos, estabelecer claramente em quais situações os
jatos podem ser utilizados.
Normalmente,
os voos são justificados pela necessidade de garantir a segurança da família
presidencial, que teoricamente estaria com sua integridade exposta se tivesse
que embarcar em aviões comerciais, como cidadãos comuns.
Como
o GSI tem por atribuição assegurar a proteção do presidente e de seus
familiares, basta um simples arranjo de raciocínio com base na lei — e no vazio
das normas sobre os voos — para explicar facilmente por que a FAB teve de
decolar um avião para transportar a primeira-dama ou um filho do presidente.
“Se não está proibido, está permitido”, diz uma fonte, resumindo a lógica
reinante há anos.
Além
disso, não há qualquer transparência em relação às viagens feitas sob demanda de
parentes de quem ocupa o principal gabinete do Palácio do Planalto. Esses voos
ficam registrados em uma caixa-preta mantida longe do escrutínio público.
Já
há algum tempo, a FAB publica na internet, ainda que parcialmente, informações
sobre os voos feitos por solicitação de ministros do governo e de outras
autoridades dos poderes Judiciário e Legislativo. Os deslocamentos a serviço da
Presidência ficam de fora, assim como as informações sobre os custos das
viagens para o bolso do contribuinte. Para um país que precisa economizar e
ajustar suas contas, talvez esta seja uma boa oportunidade de colocar ordem na
farra.
Fonte:
Metrópoles
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