Tragédia (s) no mar
São
tantas as tragédias no Mediterrâneo, sepultando no mar azul das conquistas do
Império romano milhares de vidas, que a opinião pública corre o risco de se
acostumar a elas. O Papa Francisco chama a atenção, dia e noite, para o enorme
desafio que representam as migrações de populações inteiras para os países
desenvolvidos. Mas os governos destes últimos parecem endurecer ainda mais suas
políticas migratórias.
Há
poucos dias assistimos tristemente a mais um naufrágio de um barco cheio de
migrantes vindo da Líbia em direção à Itália. A tragédia aconteceu na costa
sudoeste da Grécia. O risco era conhecido. Mais de 750 pessoas encontravam-se a
bordo de uma embarcação inapropriada para tal travessia: um barco pesqueiro,
que partiu originalmente do Egito e naufragou no último dia 14 de junho. Foram
resgatados até agora 104 passageiros, todos homens. Sabe-se, porém, que havia
muitas mulheres e crianças no barco acidentado.
A
Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira acusou a Grécia de não ter
respondido a uma oferta de envio de avião para monitorar o barco que navegava
em águas profundas e revoltas. Além de uma das tragédias mais mortais na
história do Mediterrâneo Central, pelo menos nove egípcios, detidos pela
Grécia, são acusados de tráfico de pessoas. Todos devem responder pelo crime de
homicídio culposo em tribunal grego. O Paquistão deteve um grupo de acusados de
envolvimento com o desastre. Grande número de paquistaneses encontrava-se a
bordo e muitos estão desaparecidos.
Enquanto
ocorriam as buscas e o mar demorava a devolver os mortos, outra tragédia
acontecia. Desta vez com contornos bastante diferentes. No último dia 18 de
junho, cinco pessoas embarcaram em um submersível de pequenas dimensões para
mergulhar quase quatro mil metros de profundidade, a fim de visitar os
destroços do Titanic, transatlântico britânico que afundou em 1912 após
chocar-se contra um iceberg. Os destroços do Titanic encontram-se no mar, ao
sul de Newfoundland, no Canadá.
Para
lá se dirigia o submersível Titan, da companhia Ocean Gate, levando a bordo
cinco pessoas, entre eles o CEO da empresa e um ex oficial da marinha francesa
especializado em realizar expedições ao Titanic. Pouco tempo depois de
submergir, o Titan já não era mais visto pelo painel de controle do quebra-gelo
de pesquisas da canadense Polar Prince, que fazia o serviço de apoio na
superfície.
A
mobilização para encontrar a nave foi imensa... e dispendiosa. Milhões de
dólares haviam sido pagos pelos que faziam a expedição. Outros tantos milhões
foram gastos tentando encontrá-los. No último dia 22 de junho, finalmente foram
avistados destroços da nave e reconhecida a implosão que o destruíra. Todos os
tripulantes estavam mortos.
Duas
tragédias. Em uma, pessoas que enfrentavam a morte para que seus filhos
pudessem sobreviver com mais dignidade em outro país. Em outra, pessoas que
desafiavam a morte em uma expedição turística arriscada ao fundo do mar para
ver os destroços de um navio afundado há muito mais de um século e que ainda
hoje fertiliza o imaginário do Ocidente. Sobre o acidente do Titanic foram feitos
filmes, escritos livros e canções compostas.
Enquanto
recursos tecnológicos e financeiros elevadíssimos eram mobilizados para
encontrar as vítimas do Titan, as ofertas de avião para monitorar o barco que
carregava mais de 700 seres humanos não eram respondidas. A mídia noticiava
incessantemente as buscas do submersível, enquanto o naufrágio do barco
pesqueiro que ia em direção à Europa se transformava em estatística: mais um na
conta das mortes nas águas do Mediterrâneo.
Lamenta-se,
sem dúvida, as vidas perdidas nos dois barcos e nos dois casos. Ambos são
tristes. Porém, é flagrante a diferença de configuração e motivação de um, que
levava pessoas pobres e amedrontadas, em fuga de um cotidiano assustador, e
outro, que transportava pessoas ricas que inventavam mais um lazer excêntrico
para suas vidas.
Mais
impressionante ainda é o tratamento que se deu a uma e a outra tragédia. A
celeridade em atender o Titan e o descaso e lentidão na mobilização para
resgatar o barco egípcio nas costas gregas mostram o abismo que corta uma
macabra fenda no mundo em que vivemos e na humanidade à qual pertencemos.
Dos
dois lados há vítimas. Mas quando se trata de vidas humanas não é a quantidade
que importa. Uma só vida merece toda a atenção e cuidado. E certamente, neste
caso, a diferença foi claramente maior e mais intensa.
Que
Deus console os familiares das duas embarcações que deixaram vítimas no Mare
Nostrum. E que desperte nossas consciências adormecidas, para que possamos sair
de nossa indiferença enrijecida e procurar ir ao encontro das tragédias em
potencial, a fim de que não se tornem tragédias de fato.
Ø
O
chocante relato de sobrevivente de naufrágio que matou ao menos 78 migrantes na
Grécia
Muhammad
Hamza é calmo e contido. Não há emoção em sua voz. Pode ser o estado de choque,
mas provavelmente foi o que ajudou este homem de 30 anos a sobreviver.
Ele
tomou uma decisão rápida quando os contrabandistas o escoltaram até a
embarcação de pesca atracada na costa da Líbia.
Ele
se sentou no convés e manteve a cabeça baixa no fundo, se misturando à
paisagem. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que até 750 pessoas
foram amontoadas no barco.
"Ninguém
prestou atenção em mim", ele me disse em Atenas, capital da Grécia, para
onde se mudou após ser libertado do centro de detenção para onde todos os
sobreviventes do naufrágio foram inicialmente levados.
Ele
é um dos 12 paquistaneses sobreviventes, de um total de 104 pessoas resgatadas
com vida. O barco de pesca afundou no Mediterrâneo na madrugada de 14 de junho
em circunstâncias controversas.
"Havia
egípcios e sírios com família no convés. Eu estava na parte do meio, com vários
outros paquistaneses. Também havia paquistaneses no porão", diz Muhammad.
Ele
conta que não havia mulheres paquistanesas a bordo, mas viu duas crianças na
faixa de 10 ou 11 anos. Havia cerca de 100 paquistaneses no convés, e o
restante estava embaixo, ele acrescenta.
Não
há consenso, no entanto, sobre o número de paquistaneses no barco. As
autoridades paquistanesas afirmam que 300 cidadãos estavam a bordo, mas
Muhammad insiste que eram 350.
"Quando
saímos do esconderijo anterior (na Líbia), sabíamos quantos paquistaneses
estavam entre nós", diz ele.
"Mas
não sabíamos quantos sírios e egípcios estavam com a gente. Sabíamos o número
exato de paquistaneses que estavam com a gente. Sabíamos até quem eram seus
agentes."
'Espancado
e forçado a sentar'
Assim
como muitos sobreviventes, ele menciona as condições horríveis a bordo e o
tratamento desumano recebido durante as seis noites e cinco dias em que esteve
no mar.
"Egípcios
e líbios nos espancavam e nos obrigavam a sentar", diz ele.
"Não
tínhamos permissão para levantar. Não podíamos nem sequer esticar as pernas.
Eles também não nos deixavam falar um com o outro."
Eles
ficaram sem comida e água — e foram forçados a beber água do mar.
"Não
havia banheiro. Tínhamos que urinar no oceano", diz ele.
Nos
últimos dois a três dias, ele conta que a embarcação continuou dando voltas no
mesmo trecho, de 20 a 25 km, do Mediterrâneo.
Ele
afirma que três embarcações se aproximaram do barco de pesca nas 24 horas antes
do mesmo afundar. E descreve as duas primeiras como "navios de carga"
que forneceram água e comida aos refugiados.
A
BBC identificou, por meio de dados de rastreamento marítimo, estas duas
embarcações que se aproximaram do barco de pesca no dia 13 de junho.
Os
proprietários de cada uma das embarcações disseram que a guarda costeira grega
havia solicitado que eles fornecessem suprimentos.
'Gritando
por socorro'
Ao
descrever o último dia, Muhammad se emociona pela primeira vez.
"As
pessoas gritavam por socorro e algumas agitavam as camisetas em
desespero", diz ele.
Ele
é incapaz de descrever a última embarcação que se aproximou deles.
"Era
de noite, então não sei", afirma. "Havia luzes grandes no
navio."
"Eu
estava sentado na parte de trás, e aquele navio estava na frente. As pessoas lá
(na frente) disseram que (o navio) jogou cordas", afirma.
"Eu
estava sentado do lado direito do barco, o barco afundou do mesmo lado, e nós
pulamos."
As
autoridades gregas dizem que mais de duas horas antes do barco virar, a guarda
costeira tentou amarrar uma corda ao barco para que pudessem subir a bordo e
avaliar a situação.
Eles
alegam que as pessoas a bordo tentaram desamarrá-la, dizendo que queriam viajar
para a Itália.
A
guarda costeira grega negou as acusações de que eles estavam rebocando o barco
quando o mesmo afundou ou que eles eram os culpados.
Muhammad
também conta que o motor parou de funcionar meia hora antes do barco afundar, e
as pessoas no porão foram autorizadas a subir para o convés em pânico.
Ele
estava então dentro d'água.
"Cerca
de quatro a cinco navios cargueiros estavam na área depois que o nosso barco
afundou", diz ele.
"Eles
nos cercaram pelos quatro lados, mas estavam a alguma distância e não chegaram
perto, mas deixaram uma lancha."
"Eu
estava nadando na direção dela quando encontrei uma garrafa vazia de 1,5 litro.
Me agarrei a ela enquanto tentava chegar lá."
"Tinha
um sírio e um egípcio na minha frente, eles tinham um pequeno tubo. Me juntei a
eles e nadamos por cerca de meia hora a 40 minutos. Depois a lancha nos
resgatou."
Muhammad
estava desempregado no Paquistão e diz que partiu em busca de uma vida melhor.
Ele
pagou 2,5 milhões de rúpias paquistanesas (cerca de R$ 41,5 mil) pela
travessia, voando de Karachi, no Paquistão, para Dubai, depois para o Egito e
finalmente pousando na cidade líbia de Benghazi.
Ele
espera agora ganhar a vida aqui na Grécia.
Muhammad
conta que conversou com sua família na cidade de Gujranwala, em Punjabi, no
Paquistão — e eles estão "aliviados" por ele estar vivo.
Ø
Sírio
que buscava dinheiro para tratar leucemia do filho morre no Mediterrâneo
Esta
é uma tragédia dentro de outra tragédia. Mas, também, uma história de amor, de
entrega e de esperança. Khaled Al Rahal, de apenas 4 anos, tem leucemia. O
sírio Thaer Al Rahal, 38, se despediu do menino com beijos e abraços há cerca
de dois meses. Saiu de casa, no campo de refugiados de Zaatari, na Jordânia,
carregando apenas uma mochila e a esperança de cura para Khaled. "O garoto
estava sendo cuidado em hospitais jordanianos, mas o tratamento estava muito
caro", contou ao Correio Mohammed
Asakra, um ativista dos direitos humanos natural da cidade de Daraa, na Síria.
Thaer viveu na região até 2012.
Para
ter condições de pagar o tratamento do filho, Thaer partiu rumo à Líbia e
embarcou no Pylos. O barco-pesqueiro, superlotado, carregava cerca de 750
pessoas, incluindo pelo menos 50 crianças. Mais de 50 moradores de Daraa também
estavam a bordo. Thaer jamais conseguiu chegar à Europa.
O
abraço e o beijo dados em Khaled, registrados em vídeo, foram os últimos. Ele
morreu em 14 de junho passado, quando o Pylos naufragou no Mar Jônico, um dos
pontos mais profundos do Mar Mediterrâneo, na costa do Peloponeso. "Todos
os conhecidos que estavam com Thaer no barco também se afogaram. A família de
Thaer não quer falar, pois vive o luto", relatou Asakra.
"Thaer
não gostava da ideia de viajar à Europa e sempre sonhava em voltar para sua
terra natal. Mas a busca pela cura de seu filho o fez se voltar para o mar
traiçoeiro", desabafou Abdul Rahman Al Rahal, em entrevista à TV
Al-Jazeera. Apenas 104 das cerca de 750 pessoas a bordo do Pylos foram
resgatadas com vida.
Fonte:
Por Maria Clara Bingemer, no Jornal do Brasil/BBC News Brasil/Correio
Braziliense
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