segunda-feira, 26 de junho de 2023

Tragédia (s) no mar

São tantas as tragédias no Mediterrâneo, sepultando no mar azul das conquistas do Império romano milhares de vidas, que a opinião pública corre o risco de se acostumar a elas. O Papa Francisco chama a atenção, dia e noite, para o enorme desafio que representam as migrações de populações inteiras para os países desenvolvidos. Mas os governos destes últimos parecem endurecer ainda mais suas políticas migratórias.

Há poucos dias assistimos tristemente a mais um naufrágio de um barco cheio de migrantes vindo da Líbia em direção à Itália. A tragédia aconteceu na costa sudoeste da Grécia. O risco era conhecido. Mais de 750 pessoas encontravam-se a bordo de uma embarcação inapropriada para tal travessia: um barco pesqueiro, que partiu originalmente do Egito e naufragou no último dia 14 de junho. Foram resgatados até agora 104 passageiros, todos homens. Sabe-se, porém, que havia muitas mulheres e crianças no barco acidentado.

A Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira acusou a Grécia de não ter respondido a uma oferta de envio de avião para monitorar o barco que navegava em águas profundas e revoltas. Além de uma das tragédias mais mortais na história do Mediterrâneo Central, pelo menos nove egípcios, detidos pela Grécia, são acusados de tráfico de pessoas. Todos devem responder pelo crime de homicídio culposo em tribunal grego. O Paquistão deteve um grupo de acusados de envolvimento com o desastre. Grande número de paquistaneses encontrava-se a bordo e muitos estão desaparecidos.

Enquanto ocorriam as buscas e o mar demorava a devolver os mortos, outra tragédia acontecia. Desta vez com contornos bastante diferentes. No último dia 18 de junho, cinco pessoas embarcaram em um submersível de pequenas dimensões para mergulhar quase quatro mil metros de profundidade, a fim de visitar os destroços do Titanic, transatlântico britânico que afundou em 1912 após chocar-se contra um iceberg. Os destroços do Titanic encontram-se no mar, ao sul de Newfoundland, no Canadá.

Para lá se dirigia o submersível Titan, da companhia Ocean Gate, levando a bordo cinco pessoas, entre eles o CEO da empresa e um ex oficial da marinha francesa especializado em realizar expedições ao Titanic. Pouco tempo depois de submergir, o Titan já não era mais visto pelo painel de controle do quebra-gelo de pesquisas da canadense Polar Prince, que fazia o serviço de apoio na superfície.

A mobilização para encontrar a nave foi imensa... e dispendiosa. Milhões de dólares haviam sido pagos pelos que faziam a expedição. Outros tantos milhões foram gastos tentando encontrá-los. No último dia 22 de junho, finalmente foram avistados destroços da nave e reconhecida a implosão que o destruíra. Todos os tripulantes estavam mortos.

Duas tragédias. Em uma, pessoas que enfrentavam a morte para que seus filhos pudessem sobreviver com mais dignidade em outro país. Em outra, pessoas que desafiavam a morte em uma expedição turística arriscada ao fundo do mar para ver os destroços de um navio afundado há muito mais de um século e que ainda hoje fertiliza o imaginário do Ocidente. Sobre o acidente do Titanic foram feitos filmes, escritos livros e canções compostas.

Enquanto recursos tecnológicos e financeiros elevadíssimos eram mobilizados para encontrar as vítimas do Titan, as ofertas de avião para monitorar o barco que carregava mais de 700 seres humanos não eram respondidas. A mídia noticiava incessantemente as buscas do submersível, enquanto o naufrágio do barco pesqueiro que ia em direção à Europa se transformava em estatística: mais um na conta das mortes nas águas do Mediterrâneo.

Lamenta-se, sem dúvida, as vidas perdidas nos dois barcos e nos dois casos. Ambos são tristes. Porém, é flagrante a diferença de configuração e motivação de um, que levava pessoas pobres e amedrontadas, em fuga de um cotidiano assustador, e outro, que transportava pessoas ricas que inventavam mais um lazer excêntrico para suas vidas.

Mais impressionante ainda é o tratamento que se deu a uma e a outra tragédia. A celeridade em atender o Titan e o descaso e lentidão na mobilização para resgatar o barco egípcio nas costas gregas mostram o abismo que corta uma macabra fenda no mundo em que vivemos e na humanidade à qual pertencemos.

Dos dois lados há vítimas. Mas quando se trata de vidas humanas não é a quantidade que importa. Uma só vida merece toda a atenção e cuidado. E certamente, neste caso, a diferença foi claramente maior e mais intensa.

Que Deus console os familiares das duas embarcações que deixaram vítimas no Mare Nostrum. E que desperte nossas consciências adormecidas, para que possamos sair de nossa indiferença enrijecida e procurar ir ao encontro das tragédias em potencial, a fim de que não se tornem tragédias de fato.

 

Ø  O chocante relato de sobrevivente de naufrágio que matou ao menos 78 migrantes na Grécia

 

Muhammad Hamza é calmo e contido. Não há emoção em sua voz. Pode ser o estado de choque, mas provavelmente foi o que ajudou este homem de 30 anos a sobreviver.

Ele tomou uma decisão rápida quando os contrabandistas o escoltaram até a embarcação de pesca atracada na costa da Líbia.

Ele se sentou no convés e manteve a cabeça baixa no fundo, se misturando à paisagem. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que até 750 pessoas foram amontoadas no barco.

"Ninguém prestou atenção em mim", ele me disse em Atenas, capital da Grécia, para onde se mudou após ser libertado do centro de detenção para onde todos os sobreviventes do naufrágio foram inicialmente levados.

Ele é um dos 12 paquistaneses sobreviventes, de um total de 104 pessoas resgatadas com vida. O barco de pesca afundou no Mediterrâneo na madrugada de 14 de junho em circunstâncias controversas.

"Havia egípcios e sírios com família no convés. Eu estava na parte do meio, com vários outros paquistaneses. Também havia paquistaneses no porão", diz Muhammad.

Ele conta que não havia mulheres paquistanesas a bordo, mas viu duas crianças na faixa de 10 ou 11 anos. Havia cerca de 100 paquistaneses no convés, e o restante estava embaixo, ele acrescenta.

Não há consenso, no entanto, sobre o número de paquistaneses no barco. As autoridades paquistanesas afirmam que 300 cidadãos estavam a bordo, mas Muhammad insiste que eram 350.

"Quando saímos do esconderijo anterior (na Líbia), sabíamos quantos paquistaneses estavam entre nós", diz ele.

"Mas não sabíamos quantos sírios e egípcios estavam com a gente. Sabíamos o número exato de paquistaneses que estavam com a gente. Sabíamos até quem eram seus agentes."

'Espancado e forçado a sentar'

Assim como muitos sobreviventes, ele menciona as condições horríveis a bordo e o tratamento desumano recebido durante as seis noites e cinco dias em que esteve no mar.

"Egípcios e líbios nos espancavam e nos obrigavam a sentar", diz ele.

"Não tínhamos permissão para levantar. Não podíamos nem sequer esticar as pernas. Eles também não nos deixavam falar um com o outro."

Eles ficaram sem comida e água — e foram forçados a beber água do mar.

"Não havia banheiro. Tínhamos que urinar no oceano", diz ele.

Nos últimos dois a três dias, ele conta que a embarcação continuou dando voltas no mesmo trecho, de 20 a 25 km, do Mediterrâneo.

Ele afirma que três embarcações se aproximaram do barco de pesca nas 24 horas antes do mesmo afundar. E descreve as duas primeiras como "navios de carga" que forneceram água e comida aos refugiados.

A BBC identificou, por meio de dados de rastreamento marítimo, estas duas embarcações que se aproximaram do barco de pesca no dia 13 de junho.

Os proprietários de cada uma das embarcações disseram que a guarda costeira grega havia solicitado que eles fornecessem suprimentos.

'Gritando por socorro'

Ao descrever o último dia, Muhammad se emociona pela primeira vez.

"As pessoas gritavam por socorro e algumas agitavam as camisetas em desespero", diz ele.

Ele é incapaz de descrever a última embarcação que se aproximou deles.

"Era de noite, então não sei", afirma. "Havia luzes grandes no navio."

"Eu estava sentado na parte de trás, e aquele navio estava na frente. As pessoas lá (na frente) disseram que (o navio) jogou cordas", afirma.

"Eu estava sentado do lado direito do barco, o barco afundou do mesmo lado, e nós pulamos."

As autoridades gregas dizem que mais de duas horas antes do barco virar, a guarda costeira tentou amarrar uma corda ao barco para que pudessem subir a bordo e avaliar a situação.

Eles alegam que as pessoas a bordo tentaram desamarrá-la, dizendo que queriam viajar para a Itália.

A guarda costeira grega negou as acusações de que eles estavam rebocando o barco quando o mesmo afundou ou que eles eram os culpados.

Muhammad também conta que o motor parou de funcionar meia hora antes do barco afundar, e as pessoas no porão foram autorizadas a subir para o convés em pânico.

Ele estava então dentro d'água.

"Cerca de quatro a cinco navios cargueiros estavam na área depois que o nosso barco afundou", diz ele.

"Eles nos cercaram pelos quatro lados, mas estavam a alguma distância e não chegaram perto, mas deixaram uma lancha."

"Eu estava nadando na direção dela quando encontrei uma garrafa vazia de 1,5 litro. Me agarrei a ela enquanto tentava chegar lá."

"Tinha um sírio e um egípcio na minha frente, eles tinham um pequeno tubo. Me juntei a eles e nadamos por cerca de meia hora a 40 minutos. Depois a lancha nos resgatou."

Muhammad estava desempregado no Paquistão e diz que partiu em busca de uma vida melhor.

Ele pagou 2,5 milhões de rúpias paquistanesas (cerca de R$ 41,5 mil) pela travessia, voando de Karachi, no Paquistão, para Dubai, depois para o Egito e finalmente pousando na cidade líbia de Benghazi.

Ele espera agora ganhar a vida aqui na Grécia.

Muhammad conta que conversou com sua família na cidade de Gujranwala, em Punjabi, no Paquistão — e eles estão "aliviados" por ele estar vivo.

 

Ø  Sírio que buscava dinheiro para tratar leucemia do filho morre no Mediterrâneo

 

Esta é uma tragédia dentro de outra tragédia. Mas, também, uma história de amor, de entrega e de esperança. Khaled Al Rahal, de apenas 4 anos, tem leucemia. O sírio Thaer Al Rahal, 38, se despediu do menino com beijos e abraços há cerca de dois meses. Saiu de casa, no campo de refugiados de Zaatari, na Jordânia, carregando apenas uma mochila e a esperança de cura para Khaled. "O garoto estava sendo cuidado em hospitais jordanianos, mas o tratamento estava muito caro", contou ao Correio Mohammed Asakra, um ativista dos direitos humanos natural da cidade de Daraa, na Síria. Thaer viveu na região até 2012.

Para ter condições de pagar o tratamento do filho, Thaer partiu rumo à Líbia e embarcou no Pylos. O barco-pesqueiro, superlotado, carregava cerca de 750 pessoas, incluindo pelo menos 50 crianças. Mais de 50 moradores de Daraa também estavam a bordo. Thaer jamais conseguiu chegar à Europa.

O abraço e o beijo dados em Khaled, registrados em vídeo, foram os últimos. Ele morreu em 14 de junho passado, quando o Pylos naufragou no Mar Jônico, um dos pontos mais profundos do Mar Mediterrâneo, na costa do Peloponeso. "Todos os conhecidos que estavam com Thaer no barco também se afogaram. A família de Thaer não quer falar, pois vive o luto", relatou Asakra.

"Thaer não gostava da ideia de viajar à Europa e sempre sonhava em voltar para sua terra natal. Mas a busca pela cura de seu filho o fez se voltar para o mar traiçoeiro", desabafou Abdul Rahman Al Rahal, em entrevista à TV Al-Jazeera. Apenas 104 das cerca de 750 pessoas a bordo do Pylos foram resgatadas com vida.

 

Fonte: Por Maria Clara Bingemer, no Jornal do Brasil/BBC News Brasil/Correio Braziliense

 

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