segunda-feira, 26 de junho de 2023

O singular paradoxo do renascimento chinês

Nos últimos anos, como não poderia ser diferente, os meios de comunicação e a classe empresarial e política dos Estados Unidos inventaram seu novo inimigo. Dessa vez, sem os disfarces raciais, religiosos e ideológicos do passado. Agora, o grande inimigo, a China, é mau só porque é concorrente, e a mentalidade dos grandes negócios busca desesperadamente eliminar a concorrência, se é possível, em nome da livre concorrência.

A paranoia anglo-saxônica nunca aceitou que o mundo pudesse ser compartilhado por outras potências ou por outras formas de ser, fazer e pensar. Nunca deixou de planejar a supressão da concorrência usando os velhos métodos da Guerra Fria. Algo que, como analisamos antes, foi revelado recentemente com (1) a saída apressada do Afeganistão, (2) a doação de milhões de dólares em equipamentos militares aos pseudoinimigos, os talibãs, (3) como força de reserva contra o Irã; (4) com o deslocamento de recursos para uma “Guerra de hegemonias”, na Ucrânia, que foi prevista e acelerada com a estratégia de culpar o inimigo; e (5) com a reativação da velha reivindicação da China sobre Taiwan, retomada por Washington antes do que por Pequim. Tem um detalhe: essa guerra só acelerou o tão temido recâmbio. Outro fiasco histórico de Inteligência.

A velha obsessão segue todos os padrões do imperialismo anglo-saxão: não aceitamos concorrentes; não aceitamos que não nos obedeçam; cresceremos com base em submissões midiáticas, militares, políticas e econômicas. Nada de diálogos e negociações. O mundo é um negócio privado e o mais forte se reserva o direito de se impor. Só nós podemos vencer, mesmo que para isso tenhamos que descarregar mil toneladas de bombas sobre algum povoado ou sobre um país inteiro. Só existe um modelo de sucesso. O mundo é uma propriedade privada e se não fosse nosso, poderia ser de outro etc.

Desde o extermínio indígena, todos esses interesses centrais foram justificados pelo “direito de nos defender” contra nossos invadidos; pela “luta em prol da liberdade” que nossos escravos e colônias não entendiam; e pela democracia e os direitos humanos que “o sacrificado homem branco” (Rudyard Kipling) precisou levar para o resto do mundo.

No entanto, a história dos últimos séculos mostra que quase todos os impérios brutais que deixaram centenas de milhões de mortos foram orgulhosas democracias que, como se não bastasse, dedicaram-se a implantar ditaduras satélites, quando não promoveram ditaduras resistentes e anticolonialistas.

Durante a última investida do neoliberalismo, o assédio dos bancos internacionais sob a égide de Washington, como o FMI e o Banco Mundial, impuseram planos agressivos de privatização aos países devedores sem capacidade de pressão para expandir a pilhagem das corporações às ex-colônias do Sul global. Todas essas experiências fracassaram dolorosamente, não para as corporações, os bancos e os Estados Unidos, mas para as ex-colônias, da privatização da água, na Bolívia, até o México, África e qualquer outro exemplo que se considere.

Mesmo nos Estados Unidos, os custos dos serviços básicos como saúde e educação dispararam até se tornarem impagáveis para a classe trabalhadora, devido à ganância natural das grandes empresas privadas que fizeram, fazem e continuarão a fazer tudo o que for possível para maximizar seus objetivos centrais: os lucros, não os serviços. A imposição, não democracia.

Quando a ditadura chinesa investiu seu superávit na África e na América Latina, foi acusada de imperialismo. Não obstante, seus investimentos não produziram uma carestia dos serviços para a população, muito pelo contrário. Os antecedentes históricos da China também não são tão ruins. No momento de seu auge econômico, ainda que tenha sido a maior superpotência do mundo antes de sua destruição pelo Império Britânico, por séculos, as invasões na Ásia foram muito menores em comparação com as provocadas pelo Ocidente. De fato, as duas mais importantes, de um país a outro, em um período de três séculos pré-ocidentais, foram por causa da intervenção do Japão.

O Ocidente agiu de modo contrário. Desde antes do nascimento do capitalismo, sua maior energia se concentrou no fanatismo religioso, das Cruzadas à Inquisição. Então, o capitalismo anglo-saxão surgiu no século XVII por força de deslocamentos internos forçados (enclosure) e continuou com imposições, pilhagens, matanças e guerras sobre o Sul global.

Essa obsessão de dominar o outro, de crescer e prevalecer pela força do canhão e da religião, foi continuada pelos Estados Unidos que, desde o primeiro momento de sua criação, fundou-se na escravidão e no roubo permanente e violento de terras de seus vizinhos, sejam nações indígenas, mexicanas ou colônias tropicais, para, então, seguir com uma irrefreável loucura por invadir, impor governos fantoches pela força de capitais, complôs secretos, bombardeios e pregações midiáticas.

O Renascimento chinês foi consequência de dois grandes fatores. Em primeiro lugar, o fator geoeconômico. A lógica de expansão do capitalismo anglo-saxão quando, a partir dos anos 1990, precisou explorar uma incomensurável mão de obra barata nos países pobres para aumentar a margem de lucro das corporações ocidentais e pressionar ainda mais contra os direitos trabalhistas e redistributivos de sua própria população.

Isso funcionou por um tempo, mas acabou explodindo na cara da paranoia mercantilista anglo-saxônica e da própria necessidade de controle das elites capitalistas que entenderam que eram bem-vindas na China, mas não podiam ditar sobre o governo comunista, como sempre fizeram com os governos ocidentais.

A fácil manipulação das colônias fragmentadas, dos países pobres produtores de matérias-primas, como na África, aos microestados enriquecidos, mas dependentes do império financeiro, como Singapura e Hong Kong, encontrou uma notável exceção na China. Por sua escala demográfica, seu centralismo político, seu poder de independência e, por conseguinte, de desenvolvimento, desligou-se da lógica imperial ocidental dos últimos séculos.

Em segundo lugar, podemos observar um poderoso fator geopolítico. O vertiginoso ressurgimento da China, nos últimos quarenta anos, não se baseou em invasões, conquistas, imposições, mudanças de regimes em outros países, mas em dois elementos fundamentais: (1) créditos e compra estratégica de ágio sobre outros países e (2) capitalização da quase universal resistência à história imperialista do Ocidente, em particular a última, a dos Estados Unidos.

Claro, se alguém observa esses pecados capitais das seitas financeiras que sempre manipularam a opinião pública ocidental, resulta que se trata de algum herege buscando destruir seu próprio país e não, ao contrário, fazendo um favor aos seres humanos reais que vivem nele. Chega a esse ponto o fanatismo que conseguiu se impor como razoável, sensato, necessário, belo e divino.

 

Ø  China: “No limiar de uma nova ordem global”

 

"No atual clima global de divisão e conflito, é essencial desenvolver linhas de comunicação que incentivem o intercâmbio entre a China, o Ocidente e o mundo em desenvolvimento", escreve Vijay Prashad, diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e editor chefe da LeftWord Books.

Eis o artigo.

Está cada vez mais difícil ter discussões razoáveis sobre a situação do mundo em meio às crescentes tensões internacionais. O atual cenário de conflito e instabilidade global emergiu ao longo dos últimos quinze anos, impulsionado, por um lado, pela crescente debilidade dos principais Estados do Atlântico Norte, liderados pelos Estados Unidos – aos quais chamamos de Ocidente – e, por outro, pela assertividade cada vez maior dos grandes países em desenvolvimento, exemplificada pelos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Este grupo de Estados, junto com vários outros, construíram as condições materiais para suas próprias agendas de desenvolvimento, incluindo a próxima geração de tecnologia, setor previamente monopolizado pelas empresas e Estados ocidentais por meio do regime de propriedade intelectual da Organização Mundial do Comércio. Ao lado dos BRICS, o surgimento de uma nova ordem econômica internacional é anunciada pela construção de projetos regionais de comércio e desenvolvimento na África, Ásia e América Latina que estão fora do controle ocidental, como são a Organização de Cooperação de Xangai (2001), a Iniciativa Cinturão e Rota (2013), a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (2011) e a Parceria Econômica Abrangente Regional (2022).

Desde a crise financeira internacional de 2007-2008, os Estados Unidos e seus aliados do Atlântico Norte se tornaram plenamente conscientes da deterioração de seu status hegemônico no mundo. Esse declínio se deu porque tais países passaram dos limites de três formas decisivas: a primeira, militar, por meio das enormes despesas com as forças armadas e com guerras; a segunda, financeira, provocada pelo galopante desperdício de riqueza social no setor financeiro improdutivo, a imposição generalizada de sanções, a hegemonia do dólar e o controle de mecanismos financeiros internacionais (como o SWIFT); e a terceira, econômica, devido à greve fiscal e de investimento de uma parcela minúscula da população mundial, a quem só interessa encher ainda mais os seus imensos cofres privados. Essa extrapolação levou à debilidade dos Estados ocidentais, que perderam capacidade de exercer sua autoridade mundo afora. Como reação a seu próprio enfraquecimento e aos novos desdobramentos no Sul Global, os Estados Unidos conduziram seus aliados a iniciar uma campanha abrangente de pressão contra quem consideram ser seus “rivais mais próximos”, a saber, China e Rússia. Essa política externa hostil, que inclui guerra comercial, sanções unilaterais, diplomacia agressiva e operações militares, é comumente conhecida como Nova Guerra Fria.

A guerra informacional se soma a essas medidas tangíveis como um elemento chave na Nova Guerra Fria. Atualmente, nas sociedades ocidentais, qualquer esforço para promover um diálogo equilibrado e razoável sobre China e Rússia, ou mesmo sobre os países protagonistas no mundo em desenvolvimento, é duramente atacado por Estados, corporações e instituições midiáticas como desinformação, propaganda ou ingerência externa. Fatos estabelecidos e, sobretudo, perspectivas alternativas, viram tema de disputa. Como consequência, tornou-se virtualmente impossível se envolver em discussões construtivas sobre a ordem mundial em transformação sem ser alvo de cancelamento, seja nas discussões sobre os novos regimes de comércio e desenvolvimento, ou sobre as questões urgentes que requerem cooperação internacional, como mudança climática, pobreza e desigualdade. Nesse contexto, o diálogo entre intelectuais em países como a China e seus pares no Ocidente se rompeu. De forma semelhante, o diálogo entre intelectuais em países do Sul Global com a China também foi dificultado pela Nova Guerra Fria, que tem prejudicado os já frágeis canais de comunicação do mundo em desenvolvimento. Como resultado, o panorama conceitual, os paradigmas e os debates centrais que acontecem na China são quase inteiramente desconhecidos fora do país, o que dificulta muito a realização de discussões ponderadas entre os países.

A Nova Guerra Fria levou a um pico de sinofobia e racismo anti-asiático nos Estados ocidentais, frequentemente incentivado por líderes políticos. O racismo ascendente nos Estados ocidentais aprofundou a ausência de engajamento genuíno de intelectuais ocidentais com as perspectivas, debates e discussões contemporâneas na China. E, devido ao imenso poder dos fluxos ocidentais de informação pelo mundo, tais posturas depreciativas também cresceram em muitos países em desenvolvimento. Embora haja um número crescente de estudantes estrangeiros na China, estes tendem a estudar disciplinas técnicas e, em geral, não se dedicam ou participam nas discussões políticas mais amplas na e sobre a China.

No atual clima global de divisão e conflito, é essencial desenvolver linhas de comunicação que incentivem o intercâmbio entre a China, o Ocidente e o mundo em desenvolvimento. O espectro de narrativas e de pensamento político dentro da China é imenso, e se estende de uma variedade de abordagens marxistas à defesa fervorosa do neoliberalismo, de profundas análises históricas da civilização chinesa às profundezas do pensamento patriótico que cresceram no período recente. Longe de serem estáticas, essas tendências intelectuais evoluíram no tempo e interagiram umas com as outras. Uma rica variedade de pensamento marxista emergiu na China, e abrange do maoísmo ao marxismo criativo. Embora todas essas vertentes se concentrem em experiências, história e teorias socialistas, cada uma desenvolveu uma escola de pensamento singular com seu próprio discurso interno, assim como debates com outras tradições. Já o panorama de pensamento patriótico é muito mais eclético, com algumas tendências se sobrepondo às vertentes marxistas, o que é compreensível, dadas as conexões entre marxismo e libertação nacional, ao passo que outras estão mais próximas às explicações culturais para os avanços do desenvolvimento da China. Essa diversidade de pensamento não se reflete em representações e na compreensão dos estrangeiros sobre a China – nem mesmo na literatura acadêmica – que, ao contrário, reproduz em demasia as posturas da Nova Guerra Fria.

Para contribuir com o desenvolvimento de uma melhor compreensão e engajamento com o pensamento e as discussões que acontecem atualmente na China, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e o Coletivo Dongsheng fizeram uma parceria com Wenhua Zongheng (文化纵横), um prestigiado periódico de pensamento cultural e político chinês contemporâneo. Criada em 2008, a Revista é uma referência importante sobre o desenvolvimento intelectual e os debates que acontecem atualmente na China, e publica edições bimestrais com artigos de intelectuais de um amplo leque de profissões em todo o país. Nessa parceria, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e o Coletivo Dongsheng irão publicar uma edição internacional da Wenhua Zongheng, lançando quatro edições por ano em inglês, português e espanhol, com curadoria realizada por nossa equipe editorial conjunta. A edição internacional irá incluir traduções de uma seleção de artigos das edições originais chinesas de particular importância para o Sul Global. Além disso, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social irá publicar uma coluna na edição chinesa de Wenhua Zongheng, colocando vozes da África, Ásia e América Latina em diálogo com a China (algumas das quais também serão publicadas na edição internacional). Ao contrário da divisão global perseguida pela Nova Guerra Fria, nossa missão é aprender uns com os outros rumo a um mundo de colaboração, e não de confrontação.

 

Fonte: Página/12//Wenhua Zongheng e reproduzido por Outras Palavras

 

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