quinta-feira, 1 de junho de 2023

Marco temporal consagra violência contra indígenas

A Câmara dos Deputados aprovou nesta segunda-feira (30) o texto do marco temporal que pretende limitar a demarcação de terras e, como consequência, fragilizará direitos da população indígena. Para a comentarista Míriam Leitão, o projeto – que agora irá para análise no Senado – representa um enorme risco caso seja implementado.

“É um enorme risco. O Brasil é o país que tem a maior quantidade de povos isolados. Você imagina o povo isolado, e você falar: ‘Prove que você estava aqui no dia 5 de outubro de 1988’. Ele não usa esse calendário. Não faz sentido isso”, explica a jornalista.

Míriam explicou a noção difundida por quem pretende alterar a demarcação de terras de forma desfavorável aos povos que já vivem nelas. A colunista explicou que é falso o argumento de que a demarcação de terras indígenas deixa as terras inutilizadas.

“Você pode pensar: ‘Aquela parte da terra brasileira vai ficar lá, sem aproveitamento?’ Não, os povos isolados fazem parte de um grande projeto nacional de proteger a Amazônia, lutar contra as mudanças climáticas, manter a biodiversidade. Mesmo sem saber, eles estão participando desse grande projeto nacional. Porque quando você olha uma imagem de satélite por cima da Amazônia, por exemplo, as partes mais preservadas são as dos povos indígenas”, argumenta.

 

Ø  Aval para garimpo em terra indígena e contato com povos isolados: os impactos do projeto do marco temporal

 

A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (30) uma proposta que altera a demarcação de terras indígenas e flexibiliza direitos indígenas estabelecidos pela Constituição.

Um dos principais pontos do projeto é a instituição do chamado “marco temporal”, que estabelece que territórios só podem ser demarcados caso seja comprovado que já eram ocupados por indígenas na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.

Essa não é, no entanto, a única alteração prevista no texto, que tramita há 16 anos no Congresso Nacional e já teve mais de 10 outras propostas anexadas ao projeto de lei original.

<<< Entre outras mudanças estão:

  • a autorização para garimpos e plantação de transgênicos dentro de terras indígenas;
  • a flexibilização da política de não-contato de povos em isolamento voluntário;
  • e a possibilidade de realização de empreendimentos econômicos sem que os povos afetados sejam consultados.

“Sempre que se fala desse projeto, se coloca só a questão do marco temporal, mas esse PL [Projeto de Lei] é muito nocivo aos povos indígenas. São uma série de direitos que seriam vilipendiados”, afirmou ao g1 Mauricio Terena, advogado e coordenador jurídico da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, principal referência no movimento indígena).

Na semana passada, os deputados aprovaram o regime de urgência para a tramitação da proposta, possibilitando que ela fosse direto à votação em Plenário, sem passar pelas comissões temáticas da casa. Aprovado pela maioria dos deputados, o projeto agora segue para análise do Senado.

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Todas as principais associações do movimento indígena se colocam frontalmente contra a proposta, considerada uma das principais ameaças aos direitos indígenas.

Já a Frente Parlamentar da Agropecuária, que representa a bancada ruralista, apoia amplamente o texto. O presidente da Câmara, Arthur Lira, defendeu nesta terça o projeto, se valendo de dados imprecisos:

"Estamos falando de 0,2% da população brasileira em cima de 14% da área do país já. Só temos 20% da área agricultável para agricultura e pecuária, e 66% de floresta nativa. Precisamos tratar desse assunto com coragem em algum momento", afirmou.

Em 2010, no último censo do IBGE, quase 900 mil pessoas se autodeclararam indígenas -- praticamente 0,5% da população.

Levantamento do MapBiomas divulgado no ano passado mostrou que entre 1985 e 2021, a área ocupada pela agropecuária cresceu de 21% para 31% do território nacional. Além disso, apesar de restar 66% da vegetação nativa no país, boa parte dela já foi degradada ou está em regeneração -- pelo menos 8,2% é de vegetação secundária (ou seja, áreas que já foram desmatadas pelo menos uma vez desde 1985).

O aumento do reconhecimento de terras indígenas também não prejudicou a atividade agrícola brasileira. Segundo o Instituto Socioambiental, entre 2000 e 2014, quando 137 terras indígenas foram completamente demarcadas e outras 141 estavam em processo de demarcação, a produtividade agrícola aumentou 41%.

De fato, as terras indígenas equivalem a quase 14% do território nacional e são os territórios em que a natureza permanece mais protegida.

De acordo com o MapBiomas, as áreas privadas responderam por 68% de toda a perda de vegetação nativa no Brasil nos últimos 30 anos -- já as terras indígenas respondem por menos de 2% dessa perda.

Segundo a ONU, os territórios indígenas na América Latina, incluindo no Brasil, armazenam mais carbono -- principal gás do efeito estufa, que vem levando ao aquecimento acelerado do Planeta -- do que todas as florestas da Indonésia e do Congo (os dois países com mais florestas tropicais depois do Brasil).

“Falar sobre as terras indígenas, o marco temporal e esse projeto de lei é falar sobre política climática. As terras indígenas são um importante aditivo no combate às mudanças climáticas”, diz Mauricio Terena.

Entenda nesta reportagem o potencial de impacto do marco temporal e quais são as outras alterações previstas na proposta. 

<<< Confira:

  1. Quais as consequências do marco temporal
  2. Como a proposta autoriza o garimpo e outras atividades econômicas em terras indígenas, entre elas a plantação de transgênicos
  3. O que muda em relação ao direito de consulta
  4. Como fica a política de não-contato com povos isolados
  5. Quais são as outras mudanças no processo de demarcação de terras indígenas

·         1. Quais as consequências do marco temporal

A Constituição Federal determina que cabe à União demarcar as terras “tradicionalmente ocupadas” pelos indígenas. Essas terras são definidas como aquelas que:

  • são habitadas por indígenas em caráter permanente;
  • são utilizadas para suas atividades produtivas;
  • são imprescindíveis à “preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”;

A Constituição não determina uma data-limite para definir o que é um território tradicionalmente ocupado.

O projeto aprovado pela Câmara pretende fazer justamente isso, ao definir que “a ausência da comunidade indígena na área pretendida em 5 de outubro de 1988 descaracteriza o enquadramento” como “terra tradicionalmente ocupada”. A exceção seriam casos de comprovado conflito pelo território até a data da promulgação da Constituição.

Na prática, caso o marco temporal seja aprovado, indígenas que não conseguirem comprovar que estavam em determinada área antes de 1988 não conseguirão a demarcação, ignorando que muitos povos foram expulsos ou forçados a saírem de seus locais de origem --inclusive por determinação estatal durante a ditadura militar.

Além disso, processos de demarcação ainda não finalizados e que se arrastam há anos poderão ser suspensos.

A maioria das terras que ainda não tiveram o processo de demarcação finalizado está fora da Amazônia Legal. Segundo o Instituto Socioambiental, são pelo menos 145 terras que ainda não tiveram o processo de reconhecimento concluído --elas equivalem a apenas 1,6% da área total de Terras Indígenas (TI) no país e abrigam 45% da população indígena em TIs.

A bancada ruralista argumenta que o marco temporal trará segurança jurídica e "paz no campo". Segundo o Instituto Socioambiental, no entanto, na Bahia, Paraná e Rio Grande do Sul -- estados com mais pendências em relação às demarcações -- as terras indígenas já homologadas ou em processo de demarcação correspondem a menos de 1% da área total ocupada por imóveis rurais.

De acordo com o instituto, a proposta é inconstitucional, por tentar alterar texto expresso da Constituição por meio de lei ordinária federal.

·         2. Como a proposta autoriza o garimpo e outras atividades econômicas em terras indígenas, entre elas a plantação de transgênicos

O texto aprovado afirma que o direito dos indígenas sobre seus territórios demarcados não inclui “a garimpagem nem a faiscação, devendo, se for o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira”.

Na prática, esse trecho autoriza o garimpo em terras indígenas, onde atualmente a atividade predatória é ilegal. A Constituição determina que os indígenas têm direito ao “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos”.

Segundo o Mapbiomas, entre 2010 e 2021, as áreas de garimpo em terras indígenas cresceram 632%, ocupando quase 20 mil hectares em 2021.

Na Terra Indígena Yanomami, a maior do país, o aumento do garimpo nos últimos anos levou à uma grave crise humanitária, com a explosão de casos de malária e o crescimento da fome e da desnutrição infantil. As máquinas do garimpo reviram o leito dos rios, inviabilizando a pesca, e afastam a caça; doentes, os indígenas também não conseguem abrir suas roças.

Ao usar mercúrio para separar o ouro, o garimpo também vem causando a contaminação de pessoas e animais. Um estudo inédito recém publicado identificou que peixes consumidos pela população em seis estados da Amazônia brasileira têm concentração do metal 21,3% acima do permitido.

Além do garimpo, o projeto de lei permite que indígenas e não-indígenas façam contratos de cooperação para a realização de atividades econômicas, inclusive agrossivilpastoris, desde que a comunidade aprove a cooperação e que os frutos da atividade beneficiem toda a comunidade.

O texto também passa a permitir o cultivo de “organismos geneticamente modificados” em terras indígenas. Atualmente uma lei de 2007 proíbe a plantação de transgênicos em Terras Indígenas e Unidades de Conservação.

A proposta afirma, ainda, que o Poder Público poderá instalar redes de comunicação e estradas em terras indígenas.

·         3. O que muda em relação ao direito de consulta

O Brasil assinou uma série de tratados internacionais que estabelecem que os povos indígenas tem o direito de serem consultados previamente e de forma livre e informada sobre eventuais medidas administrativas ou legislativas que possam vir a afetá-los diretamente.

No ano passado, por exemplo, a Justiça Federal decidiu que os responsáveis pela construção da ferrovia Ferrogrão, que pretende ligar Sinop (MT) ao Porto de Miritituba (PA), devem fazer consultas aos povos indígenas impactados seguindo os protocolos editados pelas comunidades.

A proposta em discussão dispensa a consulta para várias atividades:

  • instalação de bases, unidades e postos militares
  • expansão estratégica da malha viária
  • exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico
  • resguardo das riquezas de cunho estratégico

Segundo o texto, todos esses empreendimentos passariam a ser ser implementados “independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente”.

·         4. Como fica a política de não-contato com povos isolados

Segundo a Apib, há 115 registros de presença de indígenas isolados no país --dos quais 86 ainda não foram confirmados. São grupos que, mesmo sabendo da existência da sociedade não-indígena e até de outras comunidades indígenas, escolheram não se aproximar.

Desde a promulgação da Constituição, a política do estado brasileiro em relação a esses povos tem sido a do chamado “não-contato”. Ou seja, quando uma possível presença de povos ainda não contatados é verificada, as forças do estado não forçam uma aproximação, respeitando a organização social e a escolha desses grupos de permanecerem reclusos.

“Existem várias normativas internas da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] que preceituam que a política de proteção desses povos vai ser o não-contato e a proteção do entorno do território indígena. O que esse PL faz é acabar com essa proteção”, afirma Mauricio Terena, da Apib.

Isso porque o projeto de lei afirma que cabe ao Estado evitar ao máximo o contato com isolados “salvo para intermediar ação estatal de utilidade pública”.

“O contato forçado para intermediar ação estatal de utilidade pública” é hipótese inédita na legislação brasileira e demasiadamente ampla, porquanto sequer é esmiuçada na proposta”, afirma nota técnica do Instituto Socioambiental.

“Os isolados são, no geral, epidemiologicamente mais vulneráveis que o restante da população e qualquer contato pode ocasionar a morte de um grupo todo em poucas horas”, afirma a advogada do instituto, Juliana Batista, que relembra a existência de registros históricos sobre a morte de grupos inteiros em menos de 24 horas após a realização de contatos.

·         5. Quais são as outras mudanças no processo de demarcação de terras indígenas

Além de estabelecer o marco temporal, a proposta proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas.

Também passa a permitir que a União retome uma área já reservada caso haja “alteração dos traços culturais da comunidade”.

“Uma comunidade usa celular ou toma refrigerante e o estado pode considerar que ela perdeu seus traços culturais e pegar a terra de volta. Essa comunidade vai para onde?”, diz Batista, do Instituto Socioambiental. Segundo a advogada, o projeto poderá levar a remoção forçada de comunidades indígenas.

 

Fonte: g1

 

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