quinta-feira, 29 de junho de 2023


 2013, segundo Safatle

Talvez fosse o caso de começar afirmando que 2013 foi o último ano da história da esquerda brasileira e de suas estruturas hegemônicas. Essa revolta popular ressoa ainda como uma espécie de acontecimento não-integrado, com uma rede de potencialidades que continua a nos assombrar de forma espectral. O que ocorreu depois de 2013 foi uma lenta e contínua degradação marcada pela atrofia da capacidade de ação e da imaginação política da esquerda brasileira em seus múltiplos partidos, em seus sindicatos e movimento sociais.

Depois de 2013, a esquerda brasileira tornou-se basicamente uma força reativa que responde desesperadamente à capacidade de constituir agenda política e pautar mobilização popular da extrema direita. Que ela encabece frente eleitorais amplíssimas, como ocorreu na eleição de 2022, não significa que ela encontrou novamente protagonismo. Isso apenas significa que ela se tornou gestora do pânico social, pânico do retorno de uma extrema direita robusta.

Nosso afeto central é o medo. Nesse contexto, no máximo ela se torna gestora de conquistas simbólicas que, como tudo de natureza simbólica, tem sua importância e força, mas importância e forças limitadas pois são destinadas a nos fazer “ganhar tempo” diante da evidente ausência de uma força ofensiva contra o capital. De fato, após 2013 a extrema direita brasileira foi capaz de se colocar como a única força política insurrecional entre nós. Por isso, ela continua consolidada e forte.

Mas seria o caso de inicialmente explorar a natureza de 2013 como acontecimento, já que a esquerda se divide de forma bastante clara a esse respeito. 2013 é um divisor de águas do que restou da esquerda brasileira. Há quem enxergue nessa sequência de manifestações populares apenas um setor avançado da dita “guerra híbrida”. Não seria por outra razão que, a partir de 2013, veríamos a consolidação fulminante da extrema direita como força política principal do país. Nesse sentido, 2013 não estaria distante de eventos com o Maidan, ocorrido na Ucrânia mais ou menos no mesmo período. A ideia de base nessa narrativa é que se tratava de desestabilizar um governo de esquerda popular e, para tanto, emergiram “movimentos de massa” marcados por pautas anti-partidos, luta contra a corrupção, nacionalismo paranoico e luta contra o “comunismo”. Todas bandeiras que irão pavimentar a ascensão da extrema direita brasileira.

Contra esses, seria o caso de insistir que 2013 como acontecimento porta uma questão que toda teoria da ação revolucionária deveria ser capaz de pensar, a saber, como uma revolta popular se degrada em um movimento de restauração conservadora? Como forças transformadoras são transmutadas em processos de regressão social? A questão, e esta é sua ironia, sequer é nova. Ela está no fundamento da teoria revolucionária marxista, haja vista o sentido de um texto como o 18 de Brumário, todo ele construído a partir de uma questão: o que aconteceu para que uma verdadeira revolução social proletária em solo europeu terminasse em restauração do Império e em governo cínico-autoritário.

Toda teoria da ação revolucionária é, ao mesmo tempo, uma teoria das contradições imanentes da vida social, de seu potencialmente de transformação revolucionária, e uma teoria dos processos de reação e das inversões entre revolução e reação, uma teoria das contrarrevoluções. Deveríamos ter isso em mente ao analisarmos 2013.

·         Um século de insurreições populares

Bem, antes de começar a discussão direta sobre 2013, gostaria de apresentar uma hipótese de natureza estrutural a respeito de um largo movimento histórico que começa com a Primavera árabe e do qual, a meu ver, 2013 participa. Insistir nesse ponto é uma forma de colocar em relevo a centralidade da noção de “insurreição” como operador de acontecimentos políticos, em especial em países que outrora foram chamados de “Terceiro Mundo”. Conhecemos analistas que, depois do colapso da organização da classe operária através de partidos de massa de aspiração revolucionária, afirmarão o inelutável “fim da política”.

No entanto, tal colapso, por mais que coloque questões reais de organização e força de mudança, não representou o fim de processos insurrecionais. Na verdade, poderíamos mesmo arriscar uma proposição de filosofia da história e afirmar que o século XXI nasce a partir de uma sequência insurrecional mundial que articula Sul e Norte em uma ressonância de descontentamentos sociais ligadas ao impacto do aumento da pauperização e das dinâmicas de concentração provocadas pelo neoliberalismo. Essa sequência, embrião possível de novas formas sociais, precisa ser nomeada enquanto tal para que tenhamos uma intelecção mais precisa a respeito de nosso momento histórico e de suas potencialidades reais.

Ou seja, é possível defender a tese da característica política mais relevante do século XXI ser uma impressionante sequência de insurreições populares de luta contra o capital e de recuperação paulatina da soberania das massas espoliadas. Esse processo traz em seu bojo uma articulação entre reconfiguração micropolítica e des-identificação com macro-estruturas. Fala-se aqui de “des-identificação” para salientar a maneira com que populações se voltam contra instituições e estruturas estatais, compreendidas como esvaziadas de sua capacidade real de representação política.

Tais populações não se manifestam apenas como portadores de demandas a serem realizadas por instâncias reconhecidas de poder, mas como força destituinte. Isso explica porque muitas dessas insurreições começam com demandas pontuais ligadas a custo de vida, a preços de combustíveis, a aumento nos custos de transporte, para posteriormente passarem a expressões gerais de des-identificação social.

No entanto, é importante para os que procuram preservar o sistema de paralisia próprio à nossa situação atual que essa dinâmica mundial não seja identificada, que as insurreições apareçam como revoltas esparsas e sem continuidade, que a recusa a representação política que elas muitas vezes veiculam sejam compreendidas como regressões anti-políticas cujo horizonte natural de incorporação seria os “populismos”: termo cuja vagueza analítica esconde sua real estratégia política. Estratégia essa que consiste em nos fazer crer que toda e qualquer vontade de sair dos limites da democracia liberal só pode ser expressão de regressões políticas potencialmente autoritárias e afetivamente irracionais.

Esse apagamento da sequência insurrecional do século XXI é parte de uma estratégia mais ampla de limitação da imaginação política das massas. Seu primeiro passo foi a desqualificação generalizada da noção de revolução, processo que ganhou força como consequência do fim das sociedades burocráticas do Leste Europeu. O esforço monumental, feito nos últimos trinta anos, de apagar o conceito de “revolução” do centro da reflexão política expressava a crença de que as democracias liberais teriam condições de gerenciar os conflitos sociais que aparecessem em seu interior. A escolha das palavras não está aqui por acaso. Tratava-se efetivamente de “gerenciamento” e de compreender as lutas de classe como meros “conflitos sociais”.

Nesse contexto, “gerenciamento” significa impedir que o descontentamento social se incarne em desejo por transformações estruturais. Como um “gerente”, trata-se de encontrar a alocação correta de recursos para a otimização dos engajamentos. Mas como o horizonte de ajustes graduais prometidos pelo Estado de bem-estar social não mais se encontra em operação, como os últimos vinte anos foram marcados por crises de decomposição dos sistemas de direitos trabalhistas e de aumento exponencial dos processos de concentração, como as macro-estruturas de proteção social foram decompostas sem que mesmo as consequências catastróficas de uma pandemia mundial tenha tido a capacidade de recompô-las, trata-se então de gerenciar o descontentamento através da generalização das situações de guerra, com a elevação do medo à condição de afeto político central.

A guerra, como forma primeira da acumulação capitalista e sistema de mobilização de afetos, torna-se assim o horizonte principal de organização social e de funcionamento gerencial de nossa estrutura normativa. Ela vira a única forma de garantir alguma coesão social em um mundo que expulsou de seu horizonte de reprodução material toda forma de coesão real. Assim, é singular que a tópica da revolução desapareça do debate e da ação política no exato momento em que as democracias liberais aumentem o uso do aparato policial contra populações, brutalizem refugiados, reorganizem os direitos civis e fortaleçam dispositivos de controle e disciplina a partir da generalização das situações de guerra.

Isso quando essas mesmas democracias liberais não são assombradas por outra revolução, no caso, uma revolução conservadora capitaneada pela força de mobilização da extrema direita. Forças essas que se servem naturalmente da tópica da guerra permanente (contra imigrantes, contra “comunistas”, contra os que ameaçam a família etc.) como fator de mobilização e governo.

No entanto, a análise de processos políticos concretos nos últimos dez anos mostra que o eixo político central do século XXI não pode ser compreendido apenas a partir da mobilização do medo e de sua dinâmica de guerra, generalizada principalmente a partir de 11 de setembro de 2001, com o atentado contra o World Trade Center. É certo que, a partir de então, o século parecia se inscrever sob o signo da “ameaça terrorista” que nunca passa, que se torna uma forma normal de governo. Essa era a forma de colocar nosso século sob o signo paranoico da fronteira ameaçada, da identidade invadida, do corpo a ser imunizado, do choque civilizacional. Como se nossa demanda política fundamental fosse, em uma retração de horizontes, segurança e proteção policial.

No entanto, há de se perceber a emergência de outro eixo de acontecimentos e ações. Para tanto, há de se insistir que o século XXI começou em uma pequena cidade da Tunísia chamada Sidi Bouzid, no dia 17 de dezembro de 2010. Ou seja, começou longe dos holofotes, longe dos centros do capitalismo global. Ele começou na periferia. Nesse dia, um vendedor ambulante, Mohamed Bouazizi decidiu reclamar com o governador regional e exigir a devolução de seu carrinho de venda de frutas, que fora confiscado pela polícia. Vítima constante de extorsões policial, Bouazizi foi a sede do governo com uma cópia da lei em punho. No que ele foi recebido por uma policial que rasgou a cópia na sua frente e lhe deu um tapa na cara. Bouazizi então tacou fogo em seu próprio corpo.

Depois disso, a Tunísia entrou em convulsão, o governo de Ben Ali caiu, levando insurreições em quase todos os países árabes. Começava assim o século XXI: com um corpo imolado por não aceitar submeter-se ao poder. Começava assim a primavera árabe, com um ato que dizia: melhor a morte que a sujeição, com uma conjunção toda particular entre uma “ação restrita” (reclamar por ter seu carrinho de venda de frutas apreendido) e uma “reação agonística” (imolar-se) que reverbera por todos os poros do tecido social.

Desde então o mundo verá uma sequência de insurreições durante dez anos. Occupy, Plaza del Sol, Istambul, Brasil, França (Gillets Jaunes), Tel-Aviv, Santiago: esses são apenas alguns lugares por onde esse processo passou. E na Tunísia já se via o que o mundo conheceria nos próximos dez anos: sublevações múltiplas, que ocorrem ao mesmo tempo, que recusam centralismo e que articulavam, na mesma série, revoltas micropolíticas e des-identificação macro-política, reconfiguração das potencialidades dos corpos e recusa da representação política.

A maioria dessas insurreições irá se debater com as dificuldades de movimentos que levantam contra si as reações mais brutais, que se deparam com a organização dos setores mais arcaicos da sociedade na tentativa de preservar o poder tal como sempre foi. Principalmente, durante uma década a des-identificação macro-estrutural não foi capaz de se encarnar em um processo de conquista dos espaços macro-políticos. Isso fez com que muitos vissem nelas dinâmicas destinadas à dispersão e ao fracasso.

Por outro lado, vimos a proliferação de discursos que acreditaram que a transformação das estruturas do desejo e da sexualidade, que as novas circulações micro-políticas dos corpos seriam suficientes para transformações de estrutura. Daí o abandono teórico de uma dimensão da ação política marcada pela conquista do estado e pela procura em modificar estruturalmente as formas de produção de valor e em decompor a sociedade do trabalho. Creio que esse é o contexto correto de avaliação de 2013, de seus desdobramentos e legados.

·         Sobre a interpretação de 2013

Primeiro, há de se lembrar que a tese, da esquerda oficial, de 2013 como ação de consolidação da extrema direita nacional só pode se sustentar ignorando uma série de fatos concretos significativos. Primeiro, depois de um número baixo de greves no período 2003-2008, um processo crescente se inicia entre 2010 (445 greves no ano) e 2012 (877 no ano). Ele explode em 2013, que conhecerá o maior número de greves desde o fim da ditadura (quando se inicia a série histórica), ou seja, 2050 greves, sendo 1106 apenas no setor privado. Tais greves começam já no início do ano, com movimentos de grevistas autônomos em relação a seus sindicatos e centrais, como ocorreu nas greves de garis e bombeiros dos primeiros meses de 2013.

Tal fenômeno era sintomático: trabalhadores que não reconheciam mais suas “representações” e que procuravam deixar claro sua insatisfação e precariedade. Isto demonstra como as narrativas que procuram vincular 2013 a uma sedição das classes médias não se sustenta. Classe média não faz nem lidera greve. Essas foram greves de setores espoliados e que entenderam que o projeto de ascensão social do lulismo havia se esgotado.

E nesse contexto que vieram as manifestações de maio de 2013, iniciando-se em Porto Alegre, coordenadas por movimentos autonomistas contrários ao aumento nas tarifas de transporte público. Manifestações contra as condições abusivas dos transportes públicos são uma constante na história brasileira, assim como é constante a reação violenta do braço armado do poder. No entanto, naquele momento estava em marcha um descolamento da enunciação do descontentamento em relação a seus representantes tradicionais, todos eles comprometidos com o consórcio governista e com a gestão de sua paralisia.

Daí o movimento de greves espontâneas e a vocalização, feita por setores autonomistas, da permanência da pauperização da classe trabalhadora brasileira. A remuneração de 93% dos novos empregos criados nos entre 2003 e 2013 chegava apenas a até um e meio salário mínimo. Em 2014, 97,5% dos empregos criados estava nesta faixa. Ou seja, o horizonte social estava marcado pela consciência da preservação daquilo que um dia Marx chamou de “pobreza relativa”. Isso quer dizer, sair da pobreza absoluta, da miséria não implica em eliminação do sofrimento social se estamos em um país em franco processo de crescimento. Pois esse processo de crescimento produz novos sistemas de necessidades e de desejos, fazendo com que sujeitos se sintam cada vez mais distantes do padrão social de realização material.

Notemos ainda que a partir de junho, o país será atravessado por uma sequência inédita de manifestações ininterruptas com pautas múltiplas (de junho a novembro não houve um dia sequer que alguma manifestação não tenha ocorrido no país). Foram manifestações por mais serviços públicos, pelo fim da violência policial, pela gratuidade do transporte público, pela recusa da representação, contra a PEC 37 e as políticas discriminatórias, contra o uso de animais em pesquisas e cosméticos, contra o péssimo atendimento hospitalar. Nunca o Brasil vira de forma tão forte e retomada da enunciação de seus problemas pela população auto-organizada.

Há de se lembrar que o governo chegou a esboçar uma reação ao anunciar, em cadeia nacional, um projeto de revisão constitucional. Tal projeto foi desmentido pela sua própria enunciadora, a então presidenta Dilma Rousseff em menos de 24 horas. Sua reunião presidencial com representantes dos movimentos autonomistas foi uma das mais espetaculares ações inócuas que se tem notícia. Tudo isso mostrava claramente a inoperância, a incapacidade da esquerda governista em responder à dinâmica de politização insurrecional da sociedade. Na verdade, sequer outros setores da esquerda brasileira se mostraram capazes de produzir tal resposta. Eles desvelaram, na verdade, uma tendência gravitacional irresistível a paulatinamente retornarem ao horizonte de atuação e às limitações funcionais dos modelos de coalização próprios ao exercício do poder pelo Partido dos Trabalhadores.

Mas é fato que a ampliação das manifestações, a partir de 17 de junho, demonstrou a existência de grupos ligados a discursos nacionalistas e a uma pauta anti-corrupção focada, basicamente, no consórcio governista. Começam lutas internas e brigas nas próprias manifestações entre grupos de esquerda e direita. Era o início de um processo de embate político nas ruas que posteriormente exporá as clivagens ideológicas do país. Como disse àquela ocasião, essas clivagens nunca mais se apagariam. Antes, elas se aprofundariam em um processo sem retorno. Seria necessário estar preparado para ela. Isso significa claramente entender que a política mundial foi para os extremos e só mesmo uma postura suicida procura, no momento em que a direta se desloca com força para um extremo, continuar com uma política de “conquista do centro”. Só um deslocamento real da esquerda ao extremo pode fazê-la retomar protagonismo, seja no Brasil, seja no mundo.

Àqueles que se perguntam como a extrema direita conseguiu ser setor fortalecido de 2013, seria o caso de lembrar de ao menos dois fatores. Primeiro, lembremos de um fato histórico negligenciado por nossa formação intelectual. Nos anos 1930, o Brasil foi o país com o maior partido fascista fora da Europa. Há de se lembrar que a Aliança Integralista Nacional tinha, à época, ao em torno de 1,2 milhões de aderentes. Mesmo depois do suicídio de Vargas e do fim da Segunda Guerra, seu candidato à presidência, Plínio Salgado, terá 8,28% dos votos válidos para a eleição presidencial de 1955.

A participação do integralismo na ditadura cívico-militar será orgânica. Mesmo assim, a Nova República criou a ilusão de que seu sistema de pactos e conciliações seria suficientemente forte para eliminar por completo as dinâmicas do fascismo nacional: termo esse que durante muito tempo fora visto muito mais como palavra de ordem de mobilização de centro acadêmico do que como conceito com força analítica vinculada à história nacional concreta. Mas a verdade é que o fim da Nova República recolocaria no horizonte as forças de ruptura de uma revolução conservadora sempre presente no horizonte nacional.

O basteamento conservador de processos de revoltas populares já havia ocorrido anos antes na Primavera Árabe. Foi o caso da Tunísia, com o Emnahda, e do Egito, com a Irmandade muçulmana: grupos islâmicos com forte penetração popular devido à prática de políticas de assistência. Nestes casos, houve um basteamento conservador do movimento que levaram tais grupos ao poder por um tempo.

Ou seja, a estrutura dos movimentos religiosos se beneficiou do fato destes serem um dos poucos grupos efetivamente organizados a fornecer amparo e assistência a populações pauperizadas. Longe de ser alguma expressão de “obscurantismo”, “superstição”, “ignorância”, tratava-se de uma ação completamente racional. Em um contexto de transformação social estrutural, populações tendem a levar em conta a posição daqueles grupos e instituições que estiveram a seu lado antes. Isso deveria ser levado em conta no momento de entendermos a fulgurante ascensão das igrejas evangélicas como fator de consolidação da extrema direita nacional.

·         O colapso da esquerda nacional

Já o segundo fator capaz de explicar a ascensão da extrema direita encontra-se na própria esquerda. Um elemento decisivo para esse basteamento conservador de 2013 foi o colapso da esquerda nacional. Era difícil à esquerda no poder entender como o povo poderia estar naquele momento nas ruas contra o governo do próprio povo. A única resposta possível era: não se tratava do povo real. Contrariamente a outros processos de insurreição popular que ocorreram posteriormente, como o Estallido chileno de 2019, os movimentos populares na Colômbia em 2021, os gillets jaunes franceses, a primeira reação de setores majoritários da esquerda em relação a esses movimentos foi a desqualificação ou o espanto (“não estamos entendendo nada e será necessário muito tempo para compreender”).

Isso mostra, primeiro, um imenso desejo de dirigismo da esquerda brasileira, sua incapacidade de tentar criar hegemonia dentro de processos populares na rua, de ultrapassar o momento e impor uma pauta ainda mais avançada e ousada de questões. Criação de hegemonia, em situações insurrecionais é indissociável de um processo de “protagonizar a aceleração”. Essa é uma lição clássica dos processos insurrecionais. A base da estratégia de hegemonia consiste em ser o protagonista da aceleração, da radicalização das demandas.

No entanto, como dizia Carlos Marighella desde nos anos sessenta, a esquerda brasileira tem uma tendência orgânica a se colocar em posição perpétua de “reboquismo”. Sua aliança com setores “esclarecidos” da burguesia nacional, seu desejo de encontrar algo como “setores democráticos da direita” com quem seria possível governar apenas lhe faz completamente inapta a intervir em processos populares em curso, a lutar por hegemonia em movimento, a usar a imaginação política como força ofensiva em momentos nos quais ela é decisiva. Ou seja, a esquerda brasileira simplesmente não tem, em seu horizonte de ação, a atuação no interior de processos insurrecionais. Ela não foi formada para isso. Sua formação histórica lhe fez, ao contrário, agente de processos de negociação institucional.

·         Uma contrarrevolução permanente

O que acontecerá depois é muito significativo. 2013 mostrou como o Brasil é de fato, nos dizeres proféticos de Florestan Fernandes, o país da contrarrevolução permanente. A extrema direita brasileira entrou em fase insurrecional. Nesse contexto, “fase insurrecional” significa que a extrema direita mundial tenderá, cada vez mais, a operar como força ofensiva anti-institucional de longa duração. Força essa que pode se expressar em grandes mobilizações populares, em ações diretas, em formas de recusa explícita das autoridades constituídas. Ou seja, toda uma gramática de luta que até pouco atrás caracterizava a esquerda revolucionária agora está migrando para a extrema-direita, como se estivéssemos em um mundo invertido.

No entanto, de certa forma, a contrarrevolução é também um serviço conjunto oferecido pela esquerda nacional. Ela o faz a partir do momento em que não pauta suas ações por uma imaginação política em movimento. Ao contrário, ela conseguiu impor a si mesmo algo pior do que a restrição de horizontes de expectativas. Ela impôs a si uma brutal restrição do horizonte de enunciação. Mesmo a possibilidade de ser uma força de vocalização de demandas de transformação estrutural sai de cena.

Por exemplo, quantas vezes ouvimos nesses últimos anos palavras como “auto-gestão da classe trabalhadora”, “ocupação de fábricas”, “nenhum emprego precarizado”, “liberar os sujeitos da cadeia do trabalho”, entre tantos outros? Pois 2013 colocou para a esquerda brasileira o verdadeiro desafio: não é possível mudar o país sendo o fiador de coalizações impossíveis que paralisam nossa capacidade de transformação e que, ao final, explodem sempre em nosso colo.

Não ter correlação de forças suficiente é um argumento clássico para justificar tal restrição do horizonte de enunciação. No entanto, isso é apenas uma falácia que se faz passar por cálculo racional. Correlações de força mudam inclusive através de derrotas. A política não desconhece a derrota como força prévia de mobilização, como estratégia de consolidação de lutas. As feministas argentinas sabiam que seriam derrotadas quando apresentaram no Parlamento a lei pelo aborto. Mas mesmo assim o fizeram. Por que? Por inépcia ou por astúcia? E seria o caso de lembrar que, apresentada a lei, a sociedade foi obrigada a discuti-la, a ouvir todos os setores. Derrotada uma primeira vez, elas puderam identificar os pontos de maior resistência, mudar certos dispositivos e reapresenta-la anos depois. Bem, anos depois, elas venceram. O que aconteceu com a famosa correlação de forças? Digo isso, porque esse tipo de raciocínio inexiste no Brasil.

Mas para compensar a paralisia social, fez-se necessário criar movimentos localizados. Nesse sentido, não é estranjo perceber que, depois de 2013, as pautas de esquerda com maiores mobilizações de seus setores foram, no fundo, “pautas de integração”. Como se fosse o caso de aceitar que rupturas na ordem capitalista estão fora de discussão, que a luta pela realização concreta de macro-estruturas de proteção não será mais nosso horizonte e que agora a luta é por criar um capitalismo mais humano, mais diverso, com representantes de setores vulneráveis em comitês de diversidade de grandes empresas e em capas da revista Forbes.

Não, isso não é uma vitória. É apenas uma das figuras de uma restrição brutal do nosso horizonte de enunciação. Todo processo revolucionário é, ao mesmo tempo, uma revolução molecular, ou seja, uma transformação estrutural nos campos do desejo, da linguagem, das afetividades. Mas esse processo molecular pode também correr no vazio quando uma revolução nas estruturas de reprodução material da vida, no fundo, não está na ordem do dia.

Nesse sentido, o discurso contra “pautas identitárias”, que se consolidou em 2013, é apenas uma maneira de não entender o verdadeiro problema. Ele não está lá onde alguns acreditam que estejam. Essas pautas sequer são “identitárias”. Elas são as verdadeiras pautas “universalistas”, pois nos lembram que a naturalização de marcadores de violência contra raça, gênero, religião, orientação sexual, colonialidade impedem qualquer advento de um universalismo real. Mas a própria esquerda aprendeu nesses últimos tempos a usar tais pautas para esconder de si mesma que não tem mais nada a oferecer de transformação efetiva.

Ela empurra assim tais pautas para serem veículos de dinâmicas de integração a uma sociedade completamente desintegrada, de reconhecimento em uma sociedade que não é capaz de assegurar nada mais que o aprofundamento de dinâmicas de espoliação e sofrimento social. A tendência dos movimentos sociais que sustentam tais pautas é, em larga medida, serem sócios do poder de estado, fiadores de um governo para o qual elas não podem oferecer um sistema necessário de pressões externas.

Hoje, dez anos depois de 2013, este é o lugar da esquerda nacional. Por isso, é possível dizer que 2013 foi um acontecimento em suspenso, uma oportunidade perdida. Que esse seja um momento de reflexão antes de uma nova ascensão da extrema direita entre nós e da perda de mais uma oportunidade.

 

Fonte: Por Vladmir Safatle, em A Terra é Redonda

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