"O
Brasil precisa vestir a carapuça do racismo", diz ex-subsecretário-geral
da ONU
O Brasil reagiu aos insultos raciais sofridos pelo
jogador de futebol Vini Jr. na Espanha, mas também precisa vestir a carapuça, avalia o diplomata Rubens
Ricupero. "O Brasil não é um país isento de responsabilidade nessa
área", diz ele em entrevista à DW.
Ex-subsecretário-geral da ONU e ex-ministro do Meio
Ambiente e da Fazenda, Ricupero aponta que o jogador brasileiro emerge como
símbolo mundial da luta antirracista, com a atitude que decidiu adotar. E
avalia que "a consciência moral da humanidade hoje em dia considera intolerável
esse comportamento" de discriminação.
"O fenômeno é mais ou menos generalizado,
embora a incidência
na Espanha chame a atenção, pela frequência e pela
intensidade", afirma o diplomata. Ele aborda ainda temas como
a sociedade espanhola e as desigualdades no mundo. "A questão da
desigualdade é o grande tema do debate político deste começo do século 21. Essa
luta está longe de se se esgotar, eu diria até que ela é a grande luta do mundo
contemporâneo", diz.
·
Qual é a sua visão sobre a reação do governo
brasileiro no caso Vini Jr.?
Rubens
Ricupero: Não é a primeira vez, nem na Espanha e nem no
próprio Brasil. Já houve episódios absolutamente parecidos, usando inclusive o
mesmo tipo de ofensa em outros países. O episódio deu a Lula uma possibilidade
de fazer uma intervenção, condenando o racismo e, como ele disse, até o
fascismo, não era bem o caso, enfim.
Agora, não há dúvida que o Brasil mesmo não é um
país isento de responsabilidade nessa área. Aqui, como você sabe, não só no
futebol e fora dele, os casos parecidos são inúmeros. Talvez se possa dizer que
aqui houve uma reação mais rigorosa das autoridades e sobretudo das
organizações esportivas. Intervenções mais vigorosas do que lá.
O fenômeno é mais ou menos generalizado, embora a
incidência na Espanha chama a atenção, pela frequência e pela intensidade, mais
que outros países.
·
Como vê a sociedade espanhola?
A sociedade espanhola é profundamente dividida. O
setor conservador é muito forte. Tanto assim, tudo indica que eles vão ganhar a
próxima eleição, o PP (Partido Popular). E isso se expressa em muitas coisas.
Por exemplo, a Espanha nunca fez um trabalho de memória sobre a guerra civil.
Nesse ponto é parecido com o Brasil. Eles tiveram o Pacto del Olvido, o pacto
do esquecimento, passaram uma esponja nisso.
Mesmo agora, que já se passaram tantos anos do fim
da guerra civil e do regime franquista em 1975, eles avançaram muito pouco
nessa área. Ainda existem milhares e milhares de fossas de sepultamento que não
se conseguiu na Justiça que fossem reabertas. O problema da guerra civil
continua, porque uma parte substancial da opinião pública é extremamente
conservadora. A própria reação do primeiro-ministro [da Espanha], que é
socialista, é cautelosa, não é uma reação parecida com a do Lula. Acho que ele
sabe que lá ele pisa num terreno meio reslvaladiço.
·
Ainda sobre as reações iniciais, como foram, em sua
visão?
Não há dúvida nenhuma que nesse assunto houve uma
reação muito pouco convincente da liga espanhola [Liga de Fútbol Professional],
que no primeiro momento até tomou partido, aparentemente, da torcida. Houve o
episódio do juiz. Houve uma série de indícios que mostram que o ambiente lá é
bastante inóspito em relação a esta questão.
·
Como viu a dimensão que o caso tomou durante a semana?
Foi o caso mais grave do que em outros lugares.
Agora, não é um caso único. Talvez nesse caso em particular ele tenha se
tornado exacerbado porque o jogador Vini Jr. resolveu
revidar. Ele tem um temperamento lutador, e os espanhóis
são belicosos.
A personalidade do Vini Jr. é muito interessante. As
postagens que ele faz são muito boas, tanto no fundo como na forma. Ele virou
uma espécie de símbolo mundial da luta antirracista, com a atitude de luta que
ele decidiu adotar. Outros jogadores do passado foram vítimas de situações
semelhantes. Mas nenhum deles levou isso a peito como o Vini Jr. está
levando.
Ele está virando um símbolo mundial dessa luta
contra o racismo, com incidência até no Brasil. Acho que o Brasil tem que
enfiar a carapuça. Ele também não é, assim, um país tão maravilhoso nessa
matéria. Ao contrário. Aqui tem muitos incidentes desse tipo. E nós também
temos muito o que aprender.
·
De que forma poderia ser a reação internacional contra
a discriminação?
Tem que ser uma combinação de várias abordagens. De
um lado, sem dúvida nenhuma, a ação mais vigorosa das autoridades esportivas.
As autoridades começarem a punir como diz a Fifa, suspender a partida e dar
vitória à equipe visitante. Ou punir a torcida, como se fez na Inglaterra, no
caso dos hoolingans.
Tem de haver uma escalada de punições, que chegue ao
ponto de obrigar os clubes a tomarem uma atitude. Por outro lado, um trabalho
como está havendo agora, graças ao Vini Jr., um trabalho da imprensa junto à
opinião pública e até diria, de educação. Em estádio de futebol tem-se um pouco
a ideia de que tudo é permitido. Existe aquela frase que diz que no Maracanã se
vaia até minuto de silêncio. Nada é sagrado. Para fazer mudar isso é preciso um
esforço muito grande e muita punição.
Agora, como eu disse, o caso de Vini Jr. é um caso
notável. Não conheço nenhum outro brasileiro vítima de discriminação que tenha
reagido de uma maneira tão contínua e tão vigorosa como ele. Acho que ele é até
um exemplo para o Brasil. Ele tem assumido isso com muita coragem. E ele paga
um preço. Um preço emocional. Ele se expõe e as pessoas redobram a fúria contra
ele.
·
Em que ponto estamos na evolução do racismo estrutural
e das desigualdades no mundo?
Estamos em um momento histórico, tanto em relação ao
racismo estrutural como em outros grandes temas de desigualdades sociais e econômicas.
As pessoas começaram a reagir. As pessoas pararam de receber golpes
passivamente. É um momento de reação. Problemas que sempre estiveram presentes,
só que agora encontram respostas.
O momento da reação começou em todos os setores. A
consciência moral da humanidade hoje em dia considera intolerável esse
comportamento. Isso se aplica às torcidas. A torcida até agora tinha uma
espécie de imunidade. Agora não têm mais. Não se admite mais.
·
Desde que o senhor deu o alerta sobre riscos à
globalização, ainda na Unctad/ONU (1997), como evoluiu a questão da
desigualdade?
De um lado, tem havido uma elevação da consciência
mundial desse problema. Em todos os planos, desde o plano até intelectual, com
o trabalho do [economista francês Thomas], um trabalho que teve um
efeito pioneiro, muito importante. Isso ocorre em todos os países e tem estado
no centro das atenções.
No plano das ações ainda falta muito a fazer, ainda
estamos praticamente no início desse processo e ainda procurando fórmulas. O
fundo do problema está na própria estrutura dos impostos, tributária. Isso é
difícil. Os americanos não conseguem mudar a estrutura tributária. Aqui também
a estrutura favorece muito quem tem renda alta, quem tem muito recurso. Então
essa luta está longe de se se esgotar. Eu diria até que ela é a grande luta do
mundo contemporâneo. E, no fundo, de uma maneira ou de outra, ela está presente
nos grandes embates políticos.
·
Em que exemplos?
Por exemplo, no caso do Trump, ele utilizou bem essa
massa de manobra, que são os desempregados, daquelas áreas que se
desindustrializaram. Ele não fez nada em favor deles. Mas ele ainda hoje
consegue ter os votos deles. Os democratas perderam em grande parte o apoio que
tinham da classe operária americana. Então um demagogo esperto soube, de certa
forma, canalizar essa insatisfação. Como outros populistas fizeram. Então eu
acho que esse problema está no centro.
É no fundo a questão básica da política no Brasil,
nos Estados Unidos, na Europa, em qualquer lugar. A questão da desigualdade é o
grande tema do debate político deste começo de século 21. Como nunca antes, se
tornou um tema central, com um grande número de implicações.
Ø A luta antirracista três anos após a morte de George Floyd
Nove minutos e 29 segundos chocaram o mundo exatos
três anos atrás. Um vídeo feito com celular por um transeunte em
Minneapolis, nos Estados Unidos, se tornou um documento do horror. Ele mostrava
o policial branco Derek Chauvin pressionando o joelho contra o pescoço de
George Floyd, que, por sua vez, implorava
para que pudesse respirar e pedia ajuda à mãe.
Enquanto isso, os colegas de Chauvin – Alexander Kueng, Tou Thao e Thomas Lane
– observavam inertes. Em decorrência disso, segundo a conclusão
da autópsia, Floyd ficou inconsciente e morreu.
O crime desencadeou protestos contra o racismo e a
violência policial que acabaram ultrapassando
as fronteiras dos EUA. Em muitas cidades americanas, o estado de
emergência decorrente daquele 25 de maio de 2020 durou dias ou semanas. A raiva
acumulada ao longo de décadas de assédio cometido por policiais brancos e a
frustração com o racismo estrutural incansavelmente denunciado irromperam em
revoltas violentas, barricadas em chamas e cidades do interior devastadas.
·
Chauvin e colegas condenados
Joe Biden, que menos de um ano depois do crime sucedeu o então presidente Donald
Trump na Casa Branca, prometeu justiça, reformas estruturais na polícia e até o
fim do racismo se fosse eleito.
Outros dois anos se passaram, e muito aconteceu. Em
dois julgamentos diferentes, Chauvin foi condenado por assassinato e violação
dos direitos constitucionais de Floyd, com penas que somam mais de 40 anos de
prisão. Ele já está cumprindo a sentença, assim como seus colegas, que também
foram condenados por violar direitos civis constitucionais. Outros processos
ainda estão pendentes.
É pelo menos um vislumbre de justiça. Muitos
especialistas concordam que o veredito provavelmente não teria sido tão claro
se não houvesse um vídeo como prova. Até hoje, policiais brancos costumam
se livrar de seus atos desumanos porque muitos acreditam neles, e não nas
vítimas negras ou seus familiares.
·
Lutas de poder burocráticas
Há alguns dias, o jornalista Robert Samuels recebeu
o Prêmio Pulitzer por seu livro His name is George Floyd (Seu
nome é George Floyd). Em entrevista à DW, ele afirma que Biden, inclusive após
assumir a presidência dos EUA, prometeu diversas vezes implementar grandes
reformas na polícia, mas nada aconteceu.
"As coisas nunca são tão fáceis em
Washington", diz Samuels. "Embora haja muita solidariedade neste país
para acabar com o racismo estrutural e evitar que algo assim volte a ocorrer, a
reforma ficou atolada em lutas de poder burocráticas."
Segundo o jornalista, nem mesmo as inúmeras pessoas
que saíram às ruas seriam capazes de mudar isso. "Eles acreditavam que,
depois de um assassinato tão horrível, poderia ter surgido uma chance de o
mundo mudar", afirma, mas foram confrontados com a triste realidade dos
EUA. "Assim que se fala em racismo estratégico, as pessoas se sentem
acusadas, expostas e não querem falar sobre o assunto de verdade."
Samuels aponta para o fato de a cor da pele, ainda
hoje, continuar determinando quem vai ser preso pela polícia ou até mesmo levar
um tiro. "Vemos que a história se repete", lamenta, citando o
ressurgimento das discussões sobre o direito de voto, que há muito eram tidas
como superadas. "Existem leis e projetos de lei que dificultam o voto dos
negros neste país. Realmente não está claro como as coisas serão daqui para
frente."
·
"Americanos negros estão mais vigilantes"
No fim das contas, foi em vão a luta por justiça
após o caso George Floyd?
Na política, alguns nomes se destacaram por colocar
no topo da agenda o combate ao racismo estrutural e à discriminação. Um deles é
o de Zaynab Mohamed. No início de 2023, a então jovem de 25 anos chegou ao
Senado representando o estado de Minnesota, onde fica Minneapolis, como a
primeira parlamentar de ascendência somali.
Para Mohamed, houve avanços desde a morte de Floyd.
"Os americanos negros em nosso estado, mas também no resto do país,
tornaram-se muito mais vigilantes", disse ela à DW. "Também
conseguimos melhorar algumas leis. Conseguimos, por exemplo, impedir que grupos
neonazistas se infiltrassem em nossas autoridades policiais."
A senadora ainda considera adequada a jurisprudência
do caso Floyd: "Que bom que Derek Chauvin foi condenado e está atrás das
grades."
Mas ela destaca que a verdadeira justiça
ainda está longe de ser alcançada: só existirá "quando fizermos
mudanças sistêmicas em todos os departamentos e na política como um todo.
Somente quando formos capazes de entender por que essas pessoas estão cometendo
esses crimes e quando pudermos responsabilizá-las. Essa é a verdadeira mudança
de que precisamos."
Fonte: Deutsche Welle
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