quarta-feira, 31 de maio de 2023

Lula diz ter 'firme convicção' de que é preciso 'reavivar compromisso com a integração sul-americana'

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) abriu nesta terça-feira (30) a cúpula de presidentes dos países da América do Sul, no Palácio Itamaraty, em Brasília.

A reunião foi organizada pelo presidente Lula com o intuito de retomar a cooperação entre as nações vizinhas.

No discurso, Lula ressaltou a vontade do país de retomar instrumentos de integração regional, como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).

"A América do Sul tem diante de si, mais uma vez, a oportunidade de trilhar o caminho da união. E não preciso recomeçar do zero. A Unasul é um patrimônio coletivo. Lembremos que ela está em vigor, sete países ainda são membros plenos. É importante retomar seu processo de construção, mas, ao fazê-lo, é essencial avaliar criticamente o que não funcionou e levar em conta transições", disse.

No discurso de abertura, Lula sugeriu uma série de propostas para o desenvolvimento da América do Sul. Entre elas, investimentos em:

        projetos de infraestrutura e fomento;

        enfrentamento às mudanças climáticas;

        cobertura vacinal;

        constituição de um mercado de energia;

        programas de mobilidade acadêmica;

        e na área de defesa.

        Além da 'divergência ideológica'

Segundo o presidente brasileiro, nos últimos anos, o governo permitiu que diferenças ideológicas afastassem o Brasil dos fóruns regionais de integração.

"Na região, deixamos que as ideologias nos dividissem e interrompessem o esforço de integração. Abandonamos canais de diálogos e mecanismos de cooperação e, com isso, todos perdemos", disse Lula.

"Tenho firme convicção de que precisamos reavivar nosso compromisso com a integração sul-americana. Quando assumi a presidência, em 1º de janeiro deste ano, a América do Sul voltou ao centro da atuação diplomática brasileira", seguiu.

"Os elementos que nos unem estão acima de divergências de ordem ideológica. Da Patagônia e do Atacama à Amazônia, do Cerrado e dos Andes ao Caribe, somos um vasto continente banhado por dois oceanos. Somos uma entidade humana, histórica e cultural, econômica e comercial, com necessidades e esperanças comuns", continuou Lula.

        Guerra, pandemia e atos golpistas

No discurso de abertura da Cúpula de presidentes dos países da América do Sul, como é chamado o evento, Lula também citou os impactos da invasão da Rússia sobre o território da Ucrânia para os países sul-americanos.

Enumerou, ainda, a pandemia da Covid e atos antidemocráticos no Brasil e no exterior como causas de retrocessos para indicadores sociais na América do Sul.

"Todos sofremos as consequências da guerra. O conflito da Ucrânia desestabilizou o mercado de energia e fertilizantes, e provocou a volatilidade dos preços dos alimentos, deteriorando nossas condições de vida. Quando as cadeias de suprimentos globais foram afetadas por esses fatores, nossas carências em infraestrutura e nossas vulnerabilidades externas foram expostas", disse.

"A região parou de crescer, o desemprego aumentou e a inflação subiu. Alguns dos principais avanços sociais logrados na década passada foram perdidos em pouco tempo. No Brasil e em outros países, recentes ataques às instituições democráticas, inclusive às sedes dos poderes constitucionais, nos ofereceram uma trágica síntese da violência de grupos extremistas que se valem de plataformas digitais para promover campanhas de desinformação e discursos de ódio", seguiu.

        Copa 2030

Durante sua declaração, Lula ainda citou a candidatura conjunta de Uruguai, Paraguai, Chile e Argentina para sediar a Copa do Mundo de 2030.

De acordo com o presidente brasileiro, a iniciativa “talvez seja a expressão mais acabada dessa identidade sul-americana em construção” e da capacidade da região de “cooperar para além do campo de futebol e de nossas próprias fronteiras”.

        Reforma nas instituições

No discurso, Lula também enumerou algumas diretrizes que considera importantes para a reforma dos mecanismos de integração regional, como a Unasul.

"Nossas decisões só terão legitimidade se tomadas e implementadas de forma democrática, mas a regra do consenso poderia estar restrita a temas substantivos, evitando que impasses na esfera administrativa paralisem nossas atividades", declarou.

Lula também pregou que esses fóruns não se restrinjam aos governos, mas incluam empresários, acadêmicos, parlamentares e a sociedade civil.

A reforma de mecanismos como Unasul e Celac deve ser um dos temas tratados ao longo do dia na Cúpula do Sul.

 

       Embaixador argentino defende integração sul-americana

 

Pré-candidato à Casa Rosada, o embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli, enxerga na integração cada vez mais profunda entre os dois países como um jogo em que todos saem ganhando. Mas, para o ex-governador de Buenos Aires e diplomata, isso não gira em torno somente da promessa que Luiz Inácio Lula da Silva fez, no começo deste mês, ao presidente Alberto Fernández de trabalhar por investimentos e no desenvolvimento de projetos conjuntos com o país vizinho. Para Scioli, a conexão mais estreita entre Brasil e Argentina freia a agressiva política comercial da China e, conforme frisou, serve de exemplo para a construção de um modelo de integração na América do Sul que pode se estender para a América Latina. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio Braziliense.

        O que a Argentina espera da promessa de apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, feita na visita do presidente Alberto Fernandes, no começo deste mês?

O que a Argentina solicita é que o Brasil encontre um mecanismo para financiar suas indústrias para maior volume de exportações. A Argentina não quer dinheiro, mas, nesta conjuntura de restrições nas reservas de dólares, que o Brasil encontre um sistema de financiamento para seus exportadores, que vendem para a Argentina insumos, matérias primas, autopeças… Essa cúpula de presidentes da América Latina é para recriar, atualizar o espírito de integração, para sermos mais fortes juntos. Dará oportunidade, também, de avaliar os avanços deste momento positivo para a indústria brasileira, como disse recentemente o presidente (Josué Gomes) da Fiesp (Federação das Indústria de São Paulo).

        O senhor foi considerado muito habilidoso em vencer a resistência do ex-presidente Jair Bolsonaro na relação bilateral com a Argentina. Mas, agora, o que mudou?

Minha missão aqui começou em agosto de 2020, com o objetivo de reconstruir a relação com o Brasil. Uma agenda comum, positiva, para que o Brasil volte a ser o parceiro número um de Argentina. Depois do primeiro ano, solucionamos disputas comerciais e tivemos um recorde no comércio internacional nos últimos nove anos. Passada essa etapa, agora com o novo governo, com o compromisso que Lula tem com o Mercosul, com a relação privilegiada com a Argentina, com o desejo de recriar a Unasul, agora se está construindo um acordo executivo profundo decidido em 23 de janeiro, com a visita do presidente brasileiro a Buenos Aires. Definimos quase que a totalidade e estamos, agora, concluindo os últimos pontos do acordo, que é a integração financeira. Outro, é a integração energética, com a liberação de restrições para que o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) avalize o financiamento dos dutos para continuar com o segundo tronco do gasoduto (de Vaca Muerta) que beneficiará muito o Brasil, que comprará gás com preços melhores e de forma mais sustentável. A Argentina também vai se beneficiar, pois em vez de importar gás, passará a exportar a partir dessa obra de infraestrutura.

        As críticas no Brasil são grandes quanto a projetos de infraestrutura que foram realizados em países vizinhos, cujos financiamentos não foram pagos…

Sei que isso é muito sensível por questões do passado, mas, hoje, o que se avalia é que o Brasil financie apenas os tubos que se fabricam no Rio de Janeiro, com uma empresa brasileira, com trabalhadores brasileiros — só isso. A obra civil, a engenharia, será financiada pela Argentina; o Brasil só financiará os materiais que são produzidos aqui. Esse projeto não começou agora. No governo anterior, um dia me ligou o ministro (da Economia) Paulo Guedes, que me disse sobre o grande interesse do BNDES em financiar a segunda etapa do gasoduto. Iniciamos os trabalhos técnicos, também falamos de garantias. Agora, mudou o governo e damos continuidade a este grande objetivo de integração energética.

        Quais garantias? E se a Argentina não conseguir pagar por esses investimentos brasileiros?

A Argentina só solicita que o Brasil estude mecanismos para financiar suas empresas, suas indústrias. Esse é o ponto. Senão, o Brasil perde o mercado para a China, que vende para a Argentina muitos produtos semelhantes com financiamento. Geopoliticamente é muito importante aprofundar a integração e encontrarmos juntos mecanismos para potenciar o comércio de fertilizantes, de semicondutores. É possível produzir nos nossos países para ter uma maior autonomia e independência. Argentina e Brasil têm, juntos, um grande projeto, que se realizou anos atrás, em Minas Gerais, com investimento privado argentino. Queremos reativar esse projeto para não dependermos de comprar semicondutores. Nosso objetivo é criar uma complementação maior do ponto de vista industrial, do ponto de vista financeiro, do ponto de vista do abastecimento da nossa região.

        O contribuinte brasileiro quer saber quem paga a conta. O senhor acredita na saída pelos BRICS? A Argentina espera participar do grupo?

Dependerá da vontade dos outros países. O que podemos dizer sobre as garantias é que a Argentina não tem problema estrutural de dólares. Tem problema conjuntural, porque sofre a pior seca dos últimos 90 anos. Perdeu a entrada de US$ 20 bilhões que estavam previstos. Quando se normalizar esta situação, as perspectivas de um futuro próximo são muito boas em mineração de lítio e cobre, no agro, nos alimentos, em energia, em turismo, na economia do conhecimento. A Argentina tem aquilo que o mundo precisa — alimento, energia, minerais para o novo tempo da mobilidade elétrica. Sobre o financiamento para exportações, convido que fale sobre isso com o presidente da Marco Polo (fabricante de carrocerias de ônibus), Daniel Rondon. Estão reclamando que o Brasil encontre uma solução. A solicitação de financiamento das exportações não é uma demanda da Argentina; é uma demanda legítima dos empresários brasileiros.

        O que se pode esperar da participação do presidente Fernández na cúpula (que começa hoje)? A Argentina já formatou a proposta de acordo para o Brasil quanto às garantias para as exportações?

Estamos trabalhando para encontrar uma solução para o financiamento das empresas brasileiras. Certamente Fernándes deve demonstrar a gratidão com os esforços do governo do Brasil para encontrar essa solução para as suas empresas e por apoiar a Argentina nas negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

        O apoio do Brasil, tanto na negociação com o FMI como na busca de uma garantia do Banco do BRICS, será suficiente?

O acordo com o FMI, fechado pelo então ministro da Economia, Martín Guzmán, no artigo 22 tem uma cláusula sobre questões extraordinárias, como a seca. Isso abre a possibilidade de reconsiderar as metas e os objetivos. A respeito do que está para começar esta semana na China (reunião do Banco dos BRICS), creio que quando há vontade política e compreensão das razões justas, se alcançam as soluções.

        Qual a perspectiva da Unasul na sua opinião?

Creio que no contexto de crise da globalização, é fundamental fortalecer a América do Sul com uma agenda de integração energética, de infraestrutura — dois aspectos muito importantes. Acredito que o que vai acontecer entre Brasil e Argentina, com um profundo acordo de integração, será uma referência inspiradora. Devemos encontrar os pontos de interesses comuns entre todos os países da América Latina. E creio que nesta terça-feira, com a apresentação de cada presidente, se mostrará um grande progresso para se alcançar esse objetivo.

        Essa integração profunda passa pela moeda única para o Mercosul?

O ministro Fernando Haddad afirmou que esse é um dos objetivos, de médio prazo, para uso comercial. É um tema que será necessário um profundo debate pelos bancos centrais, com os ministros da economia. Minha missão, agora, é com um futuro próximo, esperando que o povo argentino me dê a oportunidade de ser seu presidente.

        O senhor pretende, novamente este ano, disputar a Casa Rosada, depois de perder, em 2015, para o ex-presidente Ricardo Macri. Caso vença, qual a saída para a profunda crise vivida pela Argentina?

Em 2015, perdi por algo entorno de 1%. Acredito na Argentina, acredito nas suas forças produtivas, acredito que os problemas de agora têm solução. O povo argentino conhece a minha experiência, minha trajetória minha previsibilidade, minha sensatez, minha moderação, minha capacidade de diálogo com todos os setores da vida política, no meu país e no mundo, como demonstrei no Brasil. Cada eleição é nova demanda e o povo argentino demanda isso. Quando depositar o voto, privilegiará isso — a experiência que propõe um grande projeto de futuro e que solucione os problemas imediatos.

        O senhor contará com o apoio do kirchnerismo?

São as pessoas que votam. Obviamente, a vice-presidente (Cristina Kirchner) tem um grande peso político. Com a criação da lei das primárias para todos os partidos políticos, decidi participar delas, pois acredito que o melhor é a vontade popular para orientar as candidaturas.

        O senhor está otimista para as primárias?

Muito. Tenho a escola do esporte, que quando se sai em campo para o jogo, deve-se estar convencido que vais ganhar. Estou convencido que, com minha experiência, meu programa de governo, será o que triunfará — apesar dos problemas com a inflação, com os baixos salários, da pobreza. Se focarmos um maior esforço em produzir, e cada vez mais com o Brasil, a Argentina será um ator relevante no contexto internacional.

        Como o senhor tem dividido o tempo entre Buenos Aires e Brasília com a campanha presidencial?

A melhor campanha é resolver os problemas. O povo me conhece muito bem. Não necessito fazer campanha tradicional como os outros candidatos, que prometem soluções milagrosas, felicidade e grandes salários. A minha é diferente. Quero agradecer porque o Brasil me deu a oportunidade de desenvolver toda a minha experiência. Com o governo anterior (de Jair Bolsonaro), apesar da grande diferença política e ideológica, mas com grande pragmatismo e responsabilidade, fomos reconstruindo a relação. Agora, com o governo do presidente Lula, vivemos um tempo de integração profunda com todo o Brasil.

 

Fonte: g1/Correio Braziliense

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