segunda-feira, 1 de maio de 2023

Fogo no Cerrado atinge vegetação nativa 88% das vezes

De 1985 a 2022, 88% dos 729 mil km² que queimaram ao menos uma vez no bioma tinham cobertura natural. É o que mostra a série de dados da Coleção 2 do MapBiomas Fogo que mapeia as cicatrizes do fogo no Brasil, lançada na quarta-feira (26). O mapeamento é realizado pela rede MapBiomas em parceria com o IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), que também é responsável pelo mapeamento da Amazônia e do Cerrado.

A área de Cerrado que pegou fogo ao menos uma vez nos últimos 38 anos corresponde a 40% do bioma, ou a mais de três vezes o estado de São Paulo. O fogo foi mais frequente na maior parte das regiões: cerca de 64% da área afetada foi queimada mais de uma vez no período. Desde 1985, em média 79 mil km² são atingidos pelo fogo anualmente no Cerrado ‒ uma área maior que a da Irlanda.

Vegetações savânicas, com gramíneas, árvores e arbustos, foram as mais afetadas pelo fogo no período. O segundo tipo mais atingido foram as vegetações campestres, que podem ter arbustos, plantas herbáceas e gramíneas, além de rochas. Os outros 12% do fogo ocorreram em áreas antrópicas, de uso humano, como pastagens.

“A predominância do fogo em formações campestres e savânicas se deve à vegetação herbácea, composta por gramíneas, que principalmente na época da seca se torna um excelente combustível. Além disso, o fogo é mais restrito na formação florestal com árvores e arbustos de grande porte devido à elevada quantidade de água na biomassa viva, e as consequências para o ecossistema são muito mais devastadoras”, explica Vera Arruda, pesquisadora no IPAM e no MapBiomas Fogo.

Em 38 anos, o Cerrado concentrou 42,7% de tudo o que foi queimado no país. Praticamente a mesma proporção vale para a Amazônia, que abrigou 43% de toda a área queimada em território nacional. Os dois maiores biomas da América do Sul foram afetados por 85,7% do fogo que se alastrou pelo Brasil desde 1985.

·         Temporada de fogo

O mapeamento da área queimada também mostra a época do ano em que há maior incidência de fogo. No Cerrado, a “temporada de fogo” coincide com os meses de seca: 89,5% da área atingida foi queimada entre julho e outubro. Com 37% das ocorrências, o mês de setembro é o que registra mais fogo no bioma.

Depois de meses com nenhuma ou pouca chuva, é em setembro que a vegetação do Cerrado se encontra mais propícia para o alastramento das chamas. Por ser um bioma que “evoluiu com o fogo” ao longo de milhares de anos, o senso comum pode tender a relevar a gravidade da ocorrência de fogo no Cerrado. Na verdade, o fogo natural no bioma é causado por raios, na transição entre as estações chuvosa e seca. Quando ocorre estritamente durante a seca, a ignição é humana.

“O fogo só é ruim quando é utilizado de forma inadequada e em biomas que não dependem do fogo para se manter, como a Amazônia. Em biomas como o Cerrado, o fogo tem um papel ecológico e ele deve ser manejado de forma correta para não virar um agente de destruição. Para isso, as práticas relacionadas ao Manejo Integrado do Fogo (MIF) são importantes pois elas podem, através das queimas prescritas e controladas, reduzir a quantidade de material combustível e evitar grandes incêndios”, acrescenta Ane Alencar, diretora de Ciência no IPAM e coordenadora do MapBiomas Fogo.

·         Estados e municípios

Mato Grosso e Tocantins são os estados que mais acumularam área queimada no Cerrado no período, com 183 mil km² e 160,6 mil km² atingidos pelo fogo. Na sequência estão: Maranhão (114 mil km²); Goiás (96,8 mil km²); Bahia (73,9 mil km²); Piauí (69,8 mil km²); Minas Gerais (57,6 mil km²); Mato Grosso do Sul (22,4 mil km²); Pará (5,9 mil km²); São Paulo (4 mil km²); Distrito Federal (2,4 mil km²); Paraná (639 km²) e Rondônia (517 km²).

Os dois municípios que mais tiveram áreas afetadas pelo fogo de 1985 e 2022 foram Formosa do Rio Preto e São Desidério, localizados no oeste da Bahia. Acumularam 13.392 km² e 11.701 km², respectivamente. Na sequência, ficaram os municípios mato-grossenses Cocalinho, com 11.404 km², e Paranatinga com 11.123 km² queimados.

Municípios na região do rio Araguaia, bem como na fronteira agrícola do Matopiba – que compreende os estados Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – tiveram mais de 80% de suas áreas com presença de fogo no período.

 

Ø  A guerra mundial contra a Mãe Natureza: crônica de uma derrota anunciada. Por Róger Rumrrill

 

“A guerra mundial contra a Mãe Natureza não tem acordos de paz possíveis e parece que será uma guerra definitiva e total. Tínhamos a ilusão de que a pandemia de coronavírus, que fez balançar o castelo de areia da civilização ocidental e produziu mudanças em tudo, também mudaria a consciência da espécie humana. Contudo, não foi assim”, escreve Róger Rumrrill, ensaísta, escritor, poeta e jornalista especializado na questão indígena da Amazônia peruana, em artigo publicado por Otra Mirada, 24-04-2023. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

No sábado, 22 de abril, celebrou-se o Dia Internacional da Mãe Terra. Mais do que uma celebração, deveria ser um dia de conscientização, de luto e mais do que isso, um dia em que todas as pessoas que amam a vida devem levantar a voz e organizar a resistência contra a guerra mundial que a própria espécie humana desencadeou contra a Mãe Natureza, Gaia, a Terra.

Esta guerra global contra a Terra ameaça a sobrevivência da espécie humana.

É verdade que as guerras fratricidas provocaram milhões de mortes. Só as guerras mundiais do século XX, a Primeira e a Segunda, custaram a vida de 100 milhões de pessoas e a guerra Rússia-Ucrânia-Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o Cavalo de Troia dos Estados Unidos, já soma um quarto de milhão de mortos, segundo estatísticas divulgadas por Washington.

Contudo, a guerra mundial contra a Mãe Natureza não tem acordos de paz possíveis e parece que será uma guerra definitiva e total. Tínhamos a ilusão de que a pandemia de coronavírus, que fez balançar o castelo de areia da civilização ocidental e produziu mudanças em tudo, também mudaria a consciência da espécie humana. Contudo, não foi assim. Pelo contrário, a morte se tornou um negócio tanático das multinacionais farmacêuticas e laboratórios que produzem as vacinas.

Neste momento, a guerra na Ucrânia é uma oferta orgiástica e desvairada de compras e vendas. A Lockheed Martin, uma das maiores fabricantes de armas dos Estados Unidos, acaba de assinar um suculento contrato com o Pentágono no valor de 950 milhões de dólares para a fabricação de mísseis para a Ucrânia. A mesma coisa fez outra produtora de armas de guerra, a Raytheon Technologies, que produzirá armas para a Ucrânia por 2 bilhões de dólares.

Diariamente, são investidos 4 bilhões de dólares em armas. Na realidade, como diz o analista Diego Herranz, todo o orçamento militar global disparou estratosfericamente, sobretudo nos Estados Unidos e seus aliados da Ásia e da União Europeia. O Japão colocou para si o epitáfio de país pacifista: seu orçamento militar crescerá 60%. A Alemanha aumentou seus fundos em armas em 100 bilhões. A ganância e a idolatria pelo dinheiro não têm limites. E tudo à custa da vida humana.

·         A orgia da destruição da Terra

A guerra mundial contra a Mãe Natureza está provocando “uma orgia de destruição” no planeta Terra, afirmou, sem rodeios, o próprio secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres.

Os sinais, provas, testemunhos e resultados desta “orgia de destruição” são visíveis para todos e milhões de seres humanos que sofrem e padecem suas consequências e efeitos: ondas de calor infernais, chuvas e inundações diluviais, tempestades, ciclones, aquecimento e poluição das águas oceânicas e outros impactos na vida de todos os seres vivos que povoam a Terra.

Os números deste apocalipse são intermináveis, mas citemos apenas alguns que são os registros do Antropoceno ou, melhor, do Capitaloceno: as geleiras que alimentam o lençol freático, rios e lagos e que fornecem água doce para o consumo humano, a agricultura e a indústria já descongelaram em até 50% e, atualmente, 40% da população mundial sofre com a escassez de água. Em nível global, estima-se que 69% das populações silvestres já foram perdidas, entre os anos 1970-2018. Na América Latina, onde o extrativismo decretou uma sexta extinção em massa, nesse mesmo período, 94% dessas populações silvestres foram perdidas.

De acordo com a organização World Wildlife Fund (WWF), só entre 2004 e 2017, 43 milhões de hectares de florestas foram derrubadas no mundo, a maior na América Latina, África Subsaariana, sudeste da Ásia e Oceania. Florestas cujos serviços ambientais são vitais para todas as espécies vivas: o ser humano, insetos, aves e animais silvestres. Só em agosto de 2019, foram causados 72.000 incêndios, destruindo 600.000 hectares de florestas. No ano de 2022, ocorreram 983 incêndios que transformaram em cinzas 1 milhão de hectares de florestas na Amazônia: 72% no Brasil e 12% no Peru.

As florestas são o pulmão do mundo, uma das maiores fábricas de água doce e o território ancestral dos povos indígenas que, apesar desta onda de destruição, continuam sendo os jardineiros da natureza e seus saberes, práticas, cosmologias e cosmovisões são uma das tábuas de salvação da Mãe Natureza, incluindo a espécie humana.

Só nos primeiros 100 dias de governo de Luiz Inácio Lula da Silva, entre janeiro e março de 2023, apesar de todas as suas medidas para controlar o desmatamento, os agronegócios, os garimpeiros e outras atividades ilegais desmataram 860 km de floresta amazônica.

Nos incêndios que assolaram a Amazônia brasileira, em 2019, durante o governo do ultradireitista e negacionista da mudança climática, Jair Bolsonaro, os cientistas estimam que 500 milhões de abelhas morreram devido ao fogo e ao uso de agrotóxicos nos megalatifúndios de soja e outras monoculturas. Em nível global, 75% dos produtos alimentícios dependem da polinização das abelhas e outros polinizadores.

Um quinto dos ecossistemas da Terra está prestes a entrar em colapso. Um desses ecossistemas, vital para a saúde humana, a produção de alimentos e outros serviços, são as áreas úmidas. Elas cobrem 6% da superfície terrestre e esses ecossistemas são o habitat de 40% das plantas e animais. Mas as drenagens, os aterros para a agricultura, a construção urbana, a poluição, a superexploração de sua riqueza e a mudança climática já destruíram 35% das áreas úmidas do planeta.

·         Nada detém a guerra contra a Mãe Natureza

É possível que com a nova configuração geopolítica que está sendo tecida no mundo, com um novo epicentro de poder na Eurásia e onde os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) terão um peso geoeconômico decisivo, a hegemonia dos Estados Unidos fique ainda mais fragilizada e haja a possibilidade de um acordo de paz na Ucrânia. Para os Estados Unidos, a guerra com a Ucrânia tem um objetivo geoeconômico e a paz não é o seu objetivo estratégico.

Contudo, no caso da guerra mundial contra a Terra, não há indício de paz, mas, sim, de uma derrota anunciada contra a Mãe Natureza e a própria sobrevivência humana. Os últimos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas e outros organismos independentes estão revelando e demonstrando que não há fundos para salvar a natureza da destruição, mas, sim, para a guerra. Os acordos das 27 COPs estão só estão no papel e, pior que isso, as ditaduras do petróleo, carvão e gás e as multinacionais extrativistas estão modificando e se esquivando dos acordos das COPs.

Sem meias palavras, os cientistas e especialistas qualificam as chamadas “soluções baseadas na natureza” como falácias e como “armadilhas letais” o “conceito de emissões zero”. A chamada “economia verde é um oxímoro usado para legitimar os interesses dos grupos de poder”, escreve o especialista equatoriano Alberto Acosta. Além disso, quase unanimemente, os especialistas qualificaram os acordos da COP 26 de Glasgow como “fraudes”.

Um exemplo, o carro-chefe da descarbonização da economia: o sistema de comércio de emissões (SCE). Contudo, o SCE se tornou um instrumento para distribuir lucros entre as multinacionais. Como demonstração, na Austrália, as centrais térmicas estão recebendo 1,2 bilhão de dólares. Ou seja, o princípio de “quem polui paga” se transformou em “quem polui recebe”.

“Sob o guarda-chuva da ação climática, esconde-se um paraíso empresarial que só leva ao aumento da injustiça social. As grandes multinacionais e as entidades conservacionistas que se dedicam a plantar árvores serão as grandes beneficiadas”, escreve o especialista Víctor Resco de Dios, em uma reportagem publicada por The Conversation e compartilhada por Servindi, no dia 12 deste mês.

A Mãe Natureza agoniza por causa do extrativismo, da obscena mercantilização dos bens da natureza (a água agora é negociada na bolsa de valores de Wall Street) e o Acordo de Paris para deter o aquecimento climático em 1,5 grau, até 2030, já é inalcançável. A visão e concepção eurocêntrica da natureza faz dela apenas uma matéria, um bem comercializável.

Enquanto toda esta catástrofe bate à nossa porta, ninguém se atreve a tocar sequer com uma pétala de rosa no modelo econômico e de consumo, uma espécie de pedra filosofal econômica e política, um sistema que é uma fábrica de pobres e uma máquina trituradora da natureza (Thomas Piketty, dixit).

Muito pelo contrário, como é o caso da ultradireita global: cerram fileiras e defendem com unhas e dentes e com todas as armas ao seu alcance o capitalismo fóssil e canibal que está levando a espécie humana à beira do cataclismo.

 

Fonte: IPAM-AM/eCycle/Otra Mirada - tradução  do Cepat, para IHU

 

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