Boa
noite, Cinderela: Centrão explora letargia do governo e avança agenda de
retrocessos
Antes de chegarem aos estágios da descoordenação
motora aguda e do entorpecimento total, as vítimas do golpe “boa noite,
Cinderela” passam por
etapas de euforia e leve desinibição. Na noite da
última terça-feira (23/5), quando avançava na Câmara dos Deputados um movimento
do Centrão para desfigurar a estrutura do ministério desenhada por Lula, o
ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, achou por
bem comemorar. Chamou de “contribuições” as emendas impostas pelo
relator, Isnaldo Bulhões (MDB-AL), que esvaziam os ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, golpeiam o
do Desenvolvimento Agrário e retiram o
COAF da Fazenda, para devolvê-la ao Banco Central. Considerou o
trabalho “equilibrado” e orientou as bancadas do governo a votarem a favor – o que efetivamente
ocorreu.
As mudanças podem levar à renúncia das
ministras Marina
Silva e Sônia Guajajara. Em outra frente, o governo corria o risco de perder o apoio do deputado
André Janones, por evitar
indicá-lo à CPI do 8 de Janeiro. Os arroubos do Centrão
foram além. Em 24/5, por iniciativa do bloco, a Câmara acelerou a
tramitação do projeto de lei (PL 490/07) que consolida o
“marco temporal” contra novas demarcações de terras indígenas. No mesmo
dia, os
deputados aprovaram medida provisória (MP 1150/22) proposta no
tempo de Jair Bolsonaro, que abre novas
brechas à devastação da Mata Atlântica, o bioma mais
ameaçado do país. Ainda assim, o governo seguiu à beira do entorpecimento. A
jornalista Mônica
Bergamo relatou, na quinta-feira (25/5), que assessores próximos de
Lula recomendam-lhe ceder à maioria conservadora no Congresso, rifar a pauta
ambiental e perseguir apenas o que chamam de “desenvolvimento econômico” –
medidas como subsídios
fiscais à indústria automobilística.
A trajetória de recuo do governo é desconcertante,
mas suas origens estão numa contradição
já estudada. Ao longo da campanha eleitoral e do período de
transição, Lula mostrou-se consciente de que a devastação do país se aprofundara,
de que seria necessário partir para a reconstrução nacional com base na
igualdade e de que seu terceiro mandato precisaria ser “muito melhor” que os anteriores (veja a partir do minuto 29). Mas, para espanto,
pareceu acreditar que poderia fritar o omelete sem quebrar os ovos. Em
especial, sem mobilizar a sociedade para fazer frente aos privilégios dos
rentistas e à chantagem da maioria conservadora no Congresso. Ou seja: o
governo desafiou as forças que promovem a regressão e a mediocridade do país;
porém, está se despojando das armas que tinha a seu dispor para enfrentá-las.
Daí a ferocidade com que estes setores reagem e a enrascada em que se colocou o
Palácio do Planalto.
Para promover a recuperação dos serviços públicos –
Saúde e Educação, em especial – e do investimento em infra-estrutura – capaz de
gerar milhões de empregos – o governo dispunha do orçamento. Mas em respeito
aos dogmas neoliberais, o ministro da Fazenda propôs o “arcabouço fiscal”,
que amarra o
gasto do Estado. Ofereceu a alma ao diabo e este, como observou o
deputado Lindbergh Farias, sequer
respondeu. Uma baixa significativa da taxa básica de juros,
objetivo declarado do ministro Fernando Haddad, não está à vista, avisou o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.
No campo das relações com o Centrão, repetiu-se o
mesmo enredo de lisonja e desprezo. Cálculos do jornalista José Roberto Toledo
mostram que, para aprovar o “arcabouço” fiscal o Planalto liberou R$ 1,2 bilhão
em emendas parlamentares – R$ 3,2
milhões por voto obtido – queimando cacife importante. Foi o
estranho caso em que um ente político paga para atarem-lhe as mãos… Mas, ao
invés de satisfazer-se, o bloco fisiológico viu no gesto fraqueza e sinal para
avançar. A sequência de derrotas imposta ao governo nas horas seguintes indica
dois movimentos. Por um lado, o Centrão executa sua agenda de novos retrocessos
e confirma seu ímpeto de “passar a boiada”. As medidas contra as terras indígenas
e a Mata Atlântica atendem a interesses óbvios do ruralismo mais brutal. Por
outro, quer-se castrar o governo a longo prazo. É óbvio que um Lula 3 despido
de Marina Silva e Sônia Guajajara perderá muito de seu brilho internacional e –
ainda mais grave – de seu apoio popular.
Nos episódios de “boa noite, Cinderela”, o grau de
atordoamento apresentado pelas vítimas variam. Lula continua brilhando nos
fóruns internacionais – voltou a
fazê-lo na reunião recente do G-7. Mas não se sabe até
que ponto ele se mantém esclarecido acerca dos efeitos que o “arcabouço” pode
produzir sobre seu mandato. A mais de um interlocutor recente, manifestou
desejo de capitalizar o BNDES, para que o banco possa impulsionar a retomada da
economia. Pareceu não se dar conta de quanto o novo teto fiscal limita esta
ação. Acima de tudo, não atenta para o fato de que – conforme analisou
Gilberto Maringoni – perdeu a capacidade de se impor aos
rentistas pressionando-os apenas por meios retóricos. Enquanto não criar fatos
novos, eles o verão como um tigre sem dentes.
Já o trio de coordenação política do Planalto no
Congresso parece estar num estágio em que a alienação é produzida por um misto
de euforia e arrogância. Transcorridos seis meses de mandato, é quase
inacreditável que a modorrenta comunicação do governo não seja capaz de tirar
proveito do auxílio
luxuoso do deputado André Janones. Mas é ainda mais
estranho que não se tenha oferecido a ele um lugar na
CPI do 8 de Janeiro – onde teria por certo papel
de destaque contra o bolsonarismo. E que dizer da atitude das lideranças nas
duas casas, que cantaram “vitória” quando o Centrão desfigurou, de forma inédita, a organização do
ministério? Apaixonaram-se por seu sequestrador? Já não veem chance alguma de
enfrentar as bancadas fisiológicas, e agora comemoram qualquer mínima
concessão? (Membros da bancada governista declararam-se satisfeitos por ter-se
evitado que a MP que reorganiza o ministério caísse e o governo voltasse à conformação
que tinha sob Bolsonaro…).
Existirá saída para a sinuca em que o Planalto se
enfiou? Na política, há mais chances de escapar do “boa noite, Cinderela” que
na babel das cidades. Num artigo publicado em 25/5, Luís Nassif lamenta muito a aprovação do
“arcabouço”, mas frisa que ele não representa o fim do governo. Há outros
instrumentos de política econômica disponíveis, lembra – como os bancos
públicos ou os esperados projetos da Petrobras. A capacidade de aplo de Lula é
inegável e sua popularidade mantém-se alta o suficiente para permitir
iniciativa política e, mais que isso, correção de rumos.
Mas é preciso acordar a tempo, porque a lucidez e o
capital político não são inesgotáveis. Textos publicados neste mesmo espaço (1 2) já alertaram para a necessidade de uma nova atitude. Não se trata, é
claro, de afrontar as instituições. Mas de convocar ao xadrez político um novo
ator – a mobilização social – e superar a ideia obtusa segundo a qual a
política se resume aso salões atapetados do poder. A própria construção do PT e
a ascensão da esquerda brasileira contemporânea devem-se a terem sido capazes,
em muitos momentos, de romper esta lógica restrita. Terão desaprendido?
Nos casos de “boa noite, Cinderela”, resta sempre a
esperança de intervenção externa salvadora. Mesmo quando a vítima ultrapassou
um ponto sem retorno, pode ser socorrida por alguém que se aperceba de seu
transe. Cresceram muito, nos últimos dias, nas conversas presenciais ou em
redes, as percepções de que o governo está em apuros e perdido. É difícil
passar deste ponto à ação, porque faltam instrumentos políticos capazes de
articulá-la. Mas às vezes, é preciso improvisar segundo a necessidade. O
Centrão não terá ido longe demais?
A indignação que emergiu nos últimos dias e horas
não poderia concretizar-se em algum tipo de resposta, nas ruas e nas redes? A
resposta não está dada. Surgirá – ou não – em futuro próximo. Mas algo parece
certo: o futuro próximo do país, e de sua frágil democracia, depende de um
despertar.
Fonte: Por Antonio Martins, em Outras Palavras
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