ONU: Situação no
Haiti é comparável à de países em guerra
A
insegurança na capital haitiana, Porto Príncipe, atingiu níveis semelhantes aos
de países em guerra, afirmou a ONU nesta segunda-feira (24/04), em um
relatório no qual destaca o aumento de assassinatos e sequestros no país
caribenho e pede o envio de uma força internacional para a ilha.
"O
povo haitiano continua enfrentando uma das piores crises de direitos humanos em
décadas e uma grande emergência humanitária", destaca o relatório do
secretário-geral da ONU, António Guterres.
"Devido
ao elevado número de mortos e ao crescente número de áreas controladas por
grupos armados, a insegurança na capital atingiu níveis comparáveis com os de
países em situação de conflito armado", acrescenta.
O
número de homicídios registrados no Haiti aumentou 21% nos últimos meses,
passando de 673 no último trimestre de 2022 para 815 entre 1º de janeiro e 31
de março deste ano. Já o número de sequestros cresceu 63% nesse mesmo período
de referência, de 391 para 637.
De
acordo com o relatório, grupos armados "continuam a competir para expandir
o controle territorial em toda a região metropolitana de Porto Príncipe,
espalhando-se por bairros até agora poupados". O documento também observa
o aumento da violência e da frequência de confrontos " entre gangues e com
a polícia, que têm custado a vida de muitos civis.
Como
resultado, "a situação de habitantes de áreas controladas por grupos
armados continua bastante ruim" e, em áreas recentemente alvo desses
grupos, as condições "pioraram significativamente". O relatório
destaca em particular a situação catastrófica dos habitantes de Cité Soleil, na
região metropolitana da capital, onde franco-atiradores posicionados em
telhados atacam pedestres nas ruas.
"Os
moradores se sentem sitiados. Não podem mais sair de casa por medo da violência
armada e do terror imposto pelas gangues", disse a coordenadora
humanitária da ONU para o Haiti, Ulrika Richardson, num comunicado no
domingo.
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Mais de 70 mortos em seis dias
Entre
os dias 14 e 19 de abril, os confrontos entre gangues rivais deixaram quase 70
mortos, incluindo 18 mulheres e pelo menos duas crianças, e 40 feridos.
"Reitero
a necessidade urgente do envio de uma força armada internacional
especializada", em particular para ajudar a polícia a restabelecer a
ordem, defendeu Guterres no relatório.
O secretário-geral
da ONU havia retransmitido em outubro um pedido de ajuda do primeiro-ministro
do Haiti, Ariel Henry, apelando ao Conselho de Segurança pelo envio dessa
força. Embora alguns países tenham indicado vontade de participar, nenhum se
apresentou para assumir a liderança da missão.
Nos
últimos seis meses, ataques armados deixaram mais de 400 mortos no país,
segundo um relatório da Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos do Haiti
(RNDDH), que exige explicações das autoridades diante do aumento dos ataques
contra a população civil. Desde novembro do ano passado, ao menos oito ataques
contra a população foram promovidos por gangues que disputam territórios na
região metropolitana da capital.
Ataques
armados esporádicos e massacres contra a população haitiana se intensificaram
no país desde o início de 2023. A RNDDH relata que, além dos assassinatos, as
gangues promovem estupros coletivos de mulheres e meninas. O relatório da rede
destaca ainda que mais de 50 regiões conhecidas antigamente pela
tranquilidade sofreram ataques desde o início do ano.
Entre
os dias mais sangrentos da atual onda de violência, está a noite de 29 para 30
de novembro, quando 72 pessoas foram mortas e 29 mulheres e meninas foram
estupradas em Sous Matela. Centenas de casas foram incendidas.
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Clima de terror
A
RNDDH condenou o clima de terror instaurado no país e acusou a coligação
política no poder de proteger os criminosos e dar carta branca às gangues para
atacar a população civil. A organização pediu que o governo volte atrás de
medidas aplicadas entre fevereiro e outubro de 2022, que teriam levado à intensificação
do conflito.
Com
o recebimento de equipamentos e veículos da comunidade internacional,
principalmente dos EUA, a Polícia Nacional do Haiti decidiu ocupar e controlar
territórios para confinar gangues em seus redutos, dificultando a movimentação
dos criminosos. Mas "a revogação pelas autoridades estatais desse plano
estratégico de controle permitiu às gangues armadas controlar a região
metropolitana", destaca a RNDDH.
·
Linchamento público
Diante
da violência de grupos armados, uma multidão em Porto Príncipe espancou e ateou
fogo nesta segunda-feira 13 supostos membros de gangues até à morte, depois de
retirarem esses homens da custódia da polícia, disseram agentes policiais e
outras testemunhas.
A
Polícia Nacional do Haiti disse, num breve comunicado, que agentes pararam e
revistaram um ônibus do transporte público em busca de contrabando e
confiscaram armas dos suspeitos antes de estes "serem infelizmente
linchados pela população". A declaração não deu mais detalhes sobre como a
multidão conseguiu controlar os suspeitos.
Uma
testemunha que se identificou como Edner Samuel disse à agência de notícias
Associated Press (AP) que a multidão levou os supostos criminosos para longe da
polícia e que estes foram espancados, apedrejados, cobertos de gasolina e queimados.
A
terrível violência evidencia a raiva da população em relação à situação em
Porto Príncipe. Gangues assumiram o controle de 60% da cidade desde o assassinato
do então presidente Jovenel Moïse, em julho de 2021.
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Grave crise socioeconômica e política
O
Haiti vive uma grave crise socioeconômica e política, que se intensificou nos
últimos meses. O país sofre com uma espiral de violência e com o reaparecimento
da cólera, num surto que já deixou 669 mortos desde outubro.
O
primeiro-ministro haitiano, Ariel Henry, pediu ajuda militar internacional para
combater as gangues em outubro de 2022, mas ainda não obteve uma resposta.
Max
Leroy Mésidor, arcebispo da capital do país, Porto Príncipe, disse nas redes
sociais que a situação no país "piora a cada dia" e que o Haiti está
"mergulhando no caos absoluto". O arcebispo acusou o governo de
"indiferença" para com as vítimas do surto de cólera e dos grupos
armados que têm cometido crimes de violência sexual e sequestro.
O
Comitê Internacional da Cruz Vermelha também pediu respeito pela missão médica
no país e afirmou que a atividade da organização tem sido dificultada pelas
restrições de circulação impostas devido ao risco "de ser apanhado em fogo
cruzado", o que limita em grande medida o acesso aos serviços de saúde.
Nos
últimos meses, os Estados Unidos e o Canadá aplicaram sanções a vários líderes
políticos haitianos pelo envolvimento com o narcotráfico, lavagem de dinheiro e
financiamento de algumas dessas gangues.
A
crise provocou um aumento da migração do Haiti, através de rotas marítimas
perigosas, para os países vizinhos. Um relatório da Anistia Internacional,
apresentado no início de abril, aponta que 40% da população do país está em
situação de emergência alimentar.
Ø Haiti caminha para
a completa anarquia? Por Jan D. Walter
O Haiti está preso há
anos em uma crise política e humanitária permanente. Esta semana, policiais à
paisana atacaram a casa do primeiro-ministro interino, Ariel Henry, quando ele
voltava da cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e
Caribenhos (Celac). Depois,
manifestantes, muitos dos quais disfarçados de policiais, invadiram o aeroporto
da capital Porto Príncipe para esperar o primeiro-ministro.
De
acordo com o sindicato da polícia haitiana, supostos membros de gangues mataram
15 policiais apenas nas últimas duas semanas. Furiosos, os agentes acusam o
chefe do governo de não ajudá-los - alguns até especulam que ele esteja aliado
às gangues. De acordo com a organização haitiana de direitos humanos RNDDH, 78
agentes de segurança foram mortos desde que Henry assumiu o cargo em julho de
2021.
·
Situação política desoladora
Ariel
Henry foi nomeado como primeiro-ministro pelo então presidente Jovenel Moïse.
No entanto, apenas dois dias depois, antes mesmo de Henry ser empossado, Moïse foi
assassinado.
Não há Parlamento que possa confirmar constitucionalmente Henry no cargo - os
haitianos não elegem um desde 2015.
As
eleições gerais e presidenciais de novembro de 2021 não ocorreram porque Henry
dissolveu o comitê eleitoral por alegações de parcialidade. Desde então,
manteve-se no cargo. E, por essa razão, é considerado por muitos haitianos como
um governante ilegítimo. Muitos suspeitam de maquinações estrangeiras por trás
de sua chegada ao poder, bem como por trás do assassinato
de Moïse.
Mesmo
antes do assassinato do presidente, a situação política no Haiti era
considerada desoladora. Anos atrás, o governo efetivamente perdeu o controle de
partes do país para criminosos. Na capital, Porto Príncipe, gangues controlam
mais da metade dos distritos. Tendo em vista a situação de segurança catastrófica,
observadores também acreditam que eleições democráticas dificilmente seriam
viáveis.
·
Tropas estrangeiras vão intervir?
Em
outubro de 2022, Henry pediu à Organização das Nações Unidas (ONU) e aos países
amigos que enviassem tropas para combater as gangues. No início desta
semana, o secretário-geral da ONU, António Guterres, enfatizou a urgência de
enviar forças armadas ao país caribenho para proteger a população e garantir
caminhos para ajuda humanitária.
Apesar
disso, parece que ninguém quer assumir essa responsabilidade. "Os riscos
são altos, as chances de sucesso são duvidosas", explica Judith
Vorrath, da Fundação de Ciência e Política, da Alemanha.
Mesmo
que fosse possível repelir as gangues e garantir infraestruturas críticas como
o porto e importantes vias de acesso, isso não seria uma solução permanente.
"Ninguém sabe como poderia deixar o país se não houver progresso
no processo político", destaca Vorrath.
·
Resistência interna
Além
disso, tropas estrangeiras provavelmente teriam que enfrentar uma resistência
considerável - não apenas das gangues, observa o International Crisis
Group. A oposição política e grande parte da população haitiana rejeitam
qualquer nova intervenção. As experiências anteriores com operações da ONU
foram péssimas.
Os
capacetes azuis da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti
(MINUSTAH, na sigla em francês), de 2004 a 2017, realizaram ações brutais
contra membros da oposição, estupraram moradores e participaram da exploração
sexual de menores. Após o devastador terremoto de 2010, trouxeram a cólera -
mais de 500 mil pessoas adoeceram e até 10 mil sucumbiram à epidemia.
Na
maior parte do tempo, as forças de paz foram comandadas pelo Brasil, com a
participação de contingentes de vários outros países.
A
missão política da ONU BINUH (Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti),
que está no país desde 2019, também sofre com a desconfiança.
"Muitas
pessoas, inclusive em outros países onde a ONU opera, não
necessariamente diferenciam entre missões de manutenção da paz,
presença da ONU e outras missões que são cobertas pelo Conselho de
Segurança da ONU", explica Vorrath.
·
Narrativa imperialista
Soma-se
a isso a narrativa do imperialismo racista dos EUA, predominante na América
Latina, que também mobiliza os haitianos contra intervenções estrangeiras que
tenham alguma conexão com a potência mundial do norte. Muitos no Haiti assumem
que o assassinato do presidente Moïse foi articulado ou mesmo executado por
serviços secretos estrangeiros.
"Essas
enormes reservas certamente também são um motivo para a relutância em países
que, como o Canadá, poderiam ser considerados para uma missão no
Haiti", diz Vorrath.
O
governo de Ottawa forneceu ao país uma ajuda de 98 milhões de dólares
somente no ano passado - entre outras coisas para fortalecer as forças de
segurança e o judiciário. Em meados de janeiro, enviou à polícia haitiana
veículos blindados para usar na luta contra as gangues.
·
As gangues controlam a política?
As
gangues haitianas realizam crimes típicos deste tipo de grupo: roubo,
extorsão, tráfico de drogas etc.
Por
essa razão, lutam pela supremacia em territórios relativamente limitados. De
acordo com um relatório da ONU, elas também intimidam a população com violência
sexual, espalhando terror.
No
entanto, muitas das incontáveis gangues estão agora organizadas
em duas grandes coalizões. Os confrontos no verão passado mataram cerca de 500
pessoas, a maioria civis. O líder da aliança de gangues "G9", Jimmy
"Barbecue" Chérizier, está nas listas de sanções da ONU e de vários
Estados-membros.
Agora
parece que com a disseminação e organização mais forte das gangues não
apenas a violência está aumentando, mas também sua influência.
"As
gangues sempre foram usadas politicamente, por exemplo, para manipular
eleições ou eliminar adversários políticos", explica Vorrath. "A
questão agora é se, à medida que se tornam mais poderosas, elas vão se separar
de seus clientes e protegidos na política, mesmo que provavelmente ainda não
tenham sua própria agenda política no sentido mais estrito", explica.
O
fato de as gangues estarem cada vez mais populares também se deve à pobreza. O
Haiti é o país mais pobre do hemisfério ocidental. A organização de ajuda International
Rescue Committee classifica a crise humanitária lá entre as dez piores
do mundo.
Fonte:
Deutsche Welle
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