segunda-feira, 3 de abril de 2023

Democracias políticas, ditaduras econômicas

“A dificuldade de um único país resistir a essa aceleração do roubo das classes trabalhadoras [reformas previdenciárias] se deve ao fato de que essas políticas neoliberais têm alcance global. Os países são reféns do grande capital que migra de um país para outro em questão de horas, aterrorizando as populações com a ameaça de outra crise econômica e obrigando seus governantes, democráticos ou não, a se ajoelharem diante desses senhores feudais”. A reflexão é de Jorge Majfud, escritor uruguaio.

>>> Eis o artigo.

Da França ao Uruguai, não por acaso, os governos neoliberais propuseram uma reforma previdenciária que eleva a idade da aposentadoria (dois na França; até cinco no Uruguai). A narrativa que justifica o aumento da idade da aposentadoria é dupla: (1) as pessoas vivem mais e, portanto, devem trabalhar mais; (2) se essas “reformas necessárias e dolorosas” não forem feitas, o sistema ficará sem recursos e o país perderá competitividade no mundo, pois outros países aplicaram essas mesmas medidas, necessárias para a classe financeira e dolorosas para a classes produtivas.

O mesmo discurso, acrescido de uma terceira ameaça, se repete há décadas nos Estados Unidos: (3) o Social Security (uma invenção do “presidente comunista” Franklin D. Roosevelt durante a Grande Depressão) não é sustentável, razão pela qual é preciso elevar a idade de aposentadoria e, na medida do possível, privatizá-lo. Não importa que seja e sempre tenha sido autossustentável. Os seguros sociais são isso: seguros, não investimentos de risco.

A privatização foi colocada em prática pela primeira vez em países periféricos. A destruição da democracia socialista de Allende há cinquenta anos e a imposição da ditadura de Pinochet tinham a intenção declarada de preservar a liberdade do capital e usar este país como laboratório para as teorias neoliberais de Hayek e Friedman. O “milagre chileno” se destacou por suas crises sociais e econômicas, apesar do tsunami de dólares que afluíram para lá de Washington e das grandes corporações. O modelo de pensões semiprivadas foi levado para o Uruguai em 1996 e levou apenas vinte anos para fracassar. O maldito Estado teve que vir em socorro dos prejudicados pelos gênios dos investimentos.

A dificuldade de um único país, seja a França ou o Uruguai, resistir a essa aceleração do roubo das classes trabalhadoras se deve ao fato de que essas políticas neoliberais têm alcance global. Os países são reféns do grande capital que migra de um país para outro em questão de horas, aterrorizando as populações com a ameaça de outra crise econômica e obrigando seus governantes, democráticos ou não, a se ajoelharem diante desses senhores feudais.

Por outro lado, as maiores instituições financeiras do mundo, como o FMI e o Banco Mundial, são aliadas dessa máfia. O Banco Mundial se define como um banco de desenvolvimento, mas sua prática indica o contrário: está a serviço dos benefícios do capital, informando em tempo real quais países planejam votar uma lei para proteger seus trabalhadores ou controlar os bancos com legislações. Assim, seus sócios e clientes podem proteger seus investimentos transferindo seus milhões de um país soberano para outro mais friendly, melhor colocado no ranking de “liberdade de negócios”, outra daquelas velhas ficções funcionais.

Desde a década de 1980, a produtividade dos trabalhadores nos Estados Unidos e em todo o mundo tem crescido constantemente, enquanto seus salários permaneceram estagnados ou perderam poder de compra. Não precisa ser um gênio para entender onde foi parar essa diferença entre produtividade e salário. Mas eles querem mais.

Outra explicação para legislar contra a vontade do povo consiste na ideia clássica de que não são os sindicatos que governam, mas os governos eleitos. Mas só na França, 70% da população é contra a reforma previdenciária e seu “governo eleito pelo povo” se recusa a ouvi-la. Essa surdez é clássica e, por sua vez, é justificada por outra ideologia: “o governo deve agir com responsabilidade, não com demagogia”. Novamente: responsabilidade perante o capital do assédio; demagogia para o exercício da democracia, dando ao povo o direito de decidir.

Tudo isso poderia ser resolvido com um sistema de democracia mais direta, algo sobre o qual muitos de nós escrevemos há décadas, especialmente com as novas ferramentas digitais. Se os franceses pudessem decidir em referendos regulares, as manifestações em massa e os quebra-quebra urbanos que duram semanas não teriam ocorrido na França. Mas o cidadão comum não tem outra ferramenta eficaz senão a rebelião, em alguns casos violenta. Obviamente, essa ideia de democracia direta é perigosa porque é uma ideia a favor de uma democracia real.

Como mostra a história, o capitalismo é por natureza antidemocrático. Ele se desenvolveu a partir da brutalidade e da carnificina em suas colônias; fortaleceu-se com a escravidão; e consolidou-se com as múltiplas ditaduras militares na Ásia, África e América Latina. Mesmo ultimamente, tem se sentido mais do que confortável com o comunismo chinês.

Quando o capitalismo conviveu com as democracias liberais, não foi porque fosse um sistema democrático, mas porque é um grande manipulador, a ponto de convencer meio mundo de que democracia e capitalismo são a mesma coisa, já que ambos se baseiam na liberdade. O que ele esquece de esclarecer é que a democracia se refere à liberdade do povo e o capitalismo a entende como a liberdade do capital, ou seja, da elite ditatorial que hoje não apenas detém a maior parte da riqueza mundial, mas também o controle do sistema financeiro global e o quase monopólio da mídia dominante.

Os franceses têm uma longa tradição de protestos sociais, mas também podem se dar ao luxo de se rebelar nas ruas, já que poucos os acusarão de subdesenvolvidos. Os uruguaios, apesar de sua longa tradição de instituições democráticas como a educação, a saúde e os direitos individuais, são muito mais tímidos em suas reivindicações. Sua oligarquia, como todas, também tem uma longa tradição de estigmatizar os avanços da democracia real, acusando qualquer reivindicação popular de comunista (receita inoculada pela CIA nos anos 1950 e que sobrevive trinta anos após a Guerra Fria) no mesmo tempo que fazem isso em nome da democracia e da liberdade.

A (re)solução para a França não é fácil num contexto internacional sequestrado pelos senhores do capital que exigem e até convencem os seus escravos a trabalharem mais anos pela mesma ração e, ainda por cima, a fazê-lo por vontade própria. Para o Uruguai, por seu contexto e tamanho, é mais do que difícil. Mas em ambos os casos, se a resistência aos ditames econômicos for bem-sucedida, eles podem se tornar exemplos perigosos.

Por essas razões, a única solução de longo prazo é a união de uma nova corrente de Países Não Alinhados ou associados por interesses comuns (culturais e econômicos) como, por exemplo, a América Latina.

Mas claro, todos sabemos que a solução centenária do capitalismo imperial tem sido a desunião, a desmobilização e a desmoralização das colônias e de seus próprios trabalhadores. Tão longa é esta inoculação ideológica que hoje, nas ex-colônias, os movimentos nacionalistas estão em ascensão. Com um detalhe: não são o nacionalismo anticolonialista dos anos 1960 na África, por exemplo, mas um reflexo sipaio e parasitário do nacionalismo imperial em suas próprias colônias.

 

Ø  Existe outra modernidade possível? Entrevista com Pablo Blitstein, no Clarin

 

Responder às perguntas de uma entrevista pode ser um trabalho versátil. Você pode começar, digamos, em um bar, diante de um computador. E continuar no metrô, de um celular, para terminar na metade do caminho entre um táxi e um avião que cruzará os Andes, de Buenos Aires a Santiago do Chile.

É assim que se dá o diálogo com o pesquisador argentino Pablo Blitstein, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e especialista em história da China medieval e imperial tardia (séculos XIX e inícios do XX). Blitstein também trabalha em outra área: a modernidade.

Assim, antes que o copinho de café derrame por causa de uma turbulência no voo, o estudioso responderá às perguntas da revista Ñ, antecipando sua presença na Noite das Ideias.

·         Em que momento de sua formação acadêmica a China medieval se transformou em um tema a ser explorado e que aspectos dele foram determinantes em sua escolha?

O meu interesse pela China chamada “medieval” (aproximadamente dos séculos III a X) surgiu durante a minha primeira estadia em Taipei, quando ainda não havia terminado a licenciatura na Faculdade de Filosofia e Letras (UBA). Naquela época, eu tinha uma dupla inquietação: por um lado, uma curiosidade antropológica por mundos desconhecidos, com linguagens e modos de raciocínio próprios; por outro, a necessidade de compreender a pluralidade de itinerários históricos que moldaram nosso mundo.

A China medieval me permitia satisfazer as duas inquietações: era um contexto suficientemente alheio para poder desnaturalizar meus próprios modos de pensar o mundo, e importante o suficiente na história para compreender, através das suas peripécias, como um “medieval” diferente poderia dar lugar a uma “modernidade” diferente.

As instituições chinesas contemporâneas, da organização territorial e administrativa até a relação entre as elites políticas e a população, não são produto do acaso, mas de uma série de trajetórias. Muitas dessas trajetórias remontam aos séculos XIX e XX; outras, ao mundo pós-conquistas mongóis, no século XIV; e outras, finalmente, à Idade Média e à “alta” Idade Média (220-589). Então, eu me interessei por esta última. Hoje, trabalho tanto sobre esse período quanto sobre os séculos XIX e XX.

·         A economia chinesa é o principal motor do capitalismo atual, senão ao menos um deles. É possível compreender esta evolução e este presente, a partir do estudo da China Medieval?

Depende de como você aborda o problema. Se alguém deseja entender o capitalismo chinês hoje, é claro que o mais importante é entender a conjuntura após a Reforma e a Abertura (a partir de 1978). Para entender essa conjuntura, é preciso entender como uma série de líderes com formação marxista pôde recorrer a mecanismos de mercado para transformar a sociedade.

Contudo, se alguém deseja entender os movimentos históricos de longo prazo, a “Idade Média chinesa” (uma categoria historiográfica popularizada por uma corrente historiográfica japonesa) é fundamental. Esse período medieval marcou a forma como a chamada China “imperial” e outras regiões do Leste Asiático organizaram suas instituições políticas até o século XX. Em alguns casos, foram marcadas pelo tipo de instituições que deixou, por exemplo, na forma de constituir uma administração (modelo histórico das chamadas “meritocracias” atuais); em outros casos, pela forma como as elites posteriores se posicionaram em relação às forças herdadas do mundo medieval.

O fato de o capitalismo ter encontrado seu lugar em uma China politicamente unificada, e não em um território dividido em múltiplas unidades políticas (como é hoje a Europa e como era a China da “alta” Idade Média), deve-se em grande parte aos esforços em preservar a herança medieval da unificação política.

Em relação ao capitalismo, os primeiros a pensar o capitalismo contemporâneo na China foram as elites imperiais do século XIX, e muitas de suas referências intelectuais, políticas e jurídicas provinham da época medieval. A Idade Média havia deixado importantes experiências históricas de regulamentações jurídicas, de políticas fiscais e de gestão pública da terra.

Já desde a antiguidade, as elites se perguntavam quanta supervisão política a produção de riqueza deve ter, quanto as considerações éticas devem pesar na produção e distribuição de riquezas, como a posse da terra e os frutos do comércio devem ser tratados e como os preços podem ser regulados. Suas respostas deram origem, em seu momento, a soluções eficazes para resolver os problemas de conjuntura.

Mesmo quando os atores reivindicam uma descontinuidade com esses modos de pensar, é possível reconstituir como certas reflexões e disposições políticas e econômicas passaram das elites imperiais às elites republicanas, e das elites republicanas às da República Popular. Um fio condutor é que, para grande parte delas, a economia não é uma esfera autônoma, mas simplesmente uma dimensão de toda construção política.

·         Em alguns de seus artigos, propõe a pertinência de estabelecer uma releitura do conceito de modernidade. Por que considera esta releitura necessária e que elementos precisam ser revistos ou deixados de lado?

Ao menos desde o século XIX, tenta-se definir a modernidade como se fosse algo fechado e definível ou, pior, como se fosse uma coisa que se pode ou não possuir. Diante dessa ideia de modernidade, com meus colegas sociólogos e historiadores, no seminário “Paradoxos da modernidade”, identificamos duas atitudes a partir da terminologia de Claude Grignon e Jean-Claude Passeron: a atitude miserabilista, que a partir de uma definição predeterminada do “pacote” moderno, classifica diferentes grupos e regiões com base no que lhes falta para serem modernos; e a atitude populista, que rejeita o “pacote” moderno como alheio a esta ou aquela “cultura” ou “nação”.

As duas atitudes pensam a modernidade como uma coisa ou um tipo ideal definível e, de fato, apesar de sua oposição mútua, ambas compartilham uma mesma linguagem. Contra esta ideia, propomos um conceito metodológico: a modernidade-presente. Ou seja, propomos tomar a humanidade tal e como é no presente, na unidade social e histórica que lhe confere o fato de pisar em um mesmo solo e compartilhar uma mesma atmosfera terrestre. A partir dessa constatação, propomos considerar que tudo o que acontece no mundo é moderno, pois tudo o que existe caracteriza nosso presente comum no globo.

Com base neste conceito puramente metodológico, a questão, então, não é se perguntar quem é moderno e quem não é, ou como o moderno substitui o não moderno. A questão é explorar como o movimento do presente se inscreve em uma pluralidade de trajetórias sociais que remontam a diferentes passados, e que desembocam em futuros também diferentes.

·         É justamente nesse seminário que você analisa os paradoxos que as mudanças que conduzem à modernidade tendem a gerar nas práticas sociais. Quais são esses paradoxos e tensões?

Um desses paradoxos aparece com as definições tipológicas da modernidade. Por um lado, a modernidade tem sido tratada como se fosse um tipo ideal, uma substância, uma coisa que alguns possuem e outros não. Por outro, é claro que a modernidade não só tem pontos de partida diferentes (se alguém estuda a história dos concursos e das “meritocracias” acabará chegando à China medieval...), como ainda não sabemos se podemos conferir a ela um final. E conforme o tempo segue o seu curso, o que ontem poderia parecer um traço específico e duradouro da modernidade, hoje, dissipa-se e nos obriga a repensar nossas definições.

Se alguém tivesse perguntado a um veneziano ou genovês, da primeira modernidade, o que caracterizava sua modernidade política, talvez teria dito a “cidade-estado”; se tivesse perguntado a um membro das elites monárquicas chinesas, em inícios do século XX, teria olhado para o Japão de Meiji e dito: a monarquia constitucional. Contudo, a forma “Estado-nação” substituiu a forma “cidade-estado” em quase todo o mundo, e a China, diferente do Japão, tornou-se república.

Se hoje nos perguntassem pela modernidade política, será que deveríamos dizer que é o Estado-nação? Não correríamos o mesmo risco de um veneziano em relação à sua cidade-estado? O que garante que o Estado-nação não seja um fenômeno efêmero, um parêntese em um processo mais longo e complexo? É muito cedo para pensar em definições que encerrem nosso presente. No momento, só nos cabe pensar neste presente aberto, com sua pluralidade de trajetórias, e ser conscientes de que nosso mundo atual, longe de ser a medida de todas as coisas, é apenas uma configuração efêmera de movimentos mais amplos.

·         Na programação da “Noite das Ideias”, anuncia-se que sua apresentação abordará a abundância entre o Leste Asiático e as Américas. Qual é a origem do mandato que nos incita a crescer e produzir sem parar e de que modo a China e a América respondem a esse imperativo?

Não estou certo de que seja possível pensar em uma origem dessa ideia, mas, sim, em quando se torna predominante no mundo. Esse momento-chave é o século XIX. É um momento em que as elites europeias, com suas preocupações provincianas, passam a dominar os desenvolvimentos políticos, econômicos e intelectuais do resto do mundo. Não se trata apenas da colonização, sem dúvida um fenômeno central e já velho de vários séculos, mas do aprofundamento das interconexões sociais, políticas e intelectuais entre regiões muito distantes. As elites liberais europeias e americanas pensam o mundo com uma espécie de otimismo civilizatório, convencidas de que o progresso humano é retilíneo, os recursos ilimitados e a riqueza multiplicável ao infinito.

Entre as elites do Leste Asiático, o otimismo é mais moderado, sobretudo após as Guerras do Ópio, em meados do século XIX, mas entra no mandato produtivista a partir de outros fundamentos intelectuais, em particular do pensamento legalista sobre a “riqueza e a força” e uma renovação do pensamento confuciano (penso em um personagem central como Wei Yuan). Em resumo: não houve na China “importação” do mandato produtivista, mas, sim, convergência de ideais a partir de trajetórias históricas diferentes.

·         Tomo, aqui, uma das questões propostas nessa conversa com Jimena Caravaca: você considera que existem formas de pensar a abundância fora das categorias da ciência econômica?

Sim. Em primeiro lugar, porque tanto as elites do Leste Asiático como as elites europeias, muito antes do surgimento da “economia” como ciência, durante séculos, pensaram a produção e a gestão de riquezas, e isso não apenas em contextos “simples” como os da produção agrícola, mas também em contextos complexos de desenvolvimento mercantil.

Em segundo lugar, como bem sabiam os próprios fundadores da ciência econômica, os intercâmbios que chamamos de “econômicos” nada mais são do que intercâmbios sociais, que supõem uma série de comportamentos orientados não apenas pela maximização do lucro, mas também pelos marcos sociais, históricos e jurídicos da produção e do intercâmbio.

·         Por exemplo, não há nada de natural no fato de que o direito de propriedade seja definido como ususabususfructus, este princípio retomado do direito romano, e que possa destruir o produto do trabalho só porque tem um título legal que permite isto. Por acaso, não é possível abolir o “abuso” da propriedade ou limitar a livre disposição do “fruto” de um “capital”?

No Leste Asiático, como em vários lugares da Europa do Antigo Regime, essas questões podiam ser levantadas como um problema social e político, e podiam ser motivo para repensar um melhor uso da natureza e dos frutos do trabalho humano. A partir do século XIX, certas vertentes da ciência econômica (não todas) reduzem suas análises ao funcionamento do mercado e apagam de seus livros considerações mais gerais sobre a história, a sociedade e a natureza. Esquecem-se das particularidades das coisas, do tipo de objeto que vale a pena produzir, da limitação dos recursos, dos tempos das necessidades sociais e vitais, da interconexão das atividades humanas, remuneradas ou não. Suas análises costumam ficar reduzidas a pedidos de princípios: “se as coisas fossem como supõem os axiomas de nossa disciplina...”. O problema é que as coisas são o que são.

 

Fonte: Página/12. Tradução do Cepat, para IHU

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário