segunda-feira, 3 de abril de 2023

Como a Argentina saiu da hiperinflação há 30 anos e qual a viabilidade de se repetir a fórmula

Viver com inflação alta não é novidade para os argentinos.

No momento, o país está atravessando uma onda histórica de aumentos de preços — mais de 100%. Mas não é a primeira vez que a Argentina, dona da terceira maior economia da América Latina, supera os três dígitos de inflação.

Há 30 anos, a situação era muito pior. O Índice de Preços ao Consumidor (IPC) chegou a registrar uma taxa anual de 3.079% em 1989 e 2.314% em 1990. O país enfrentava uma grave crise financeira e altos níveis de pobreza entre a sua população.

Mas, cinco anos depois, no segundo mandato do presidente Carlos Menem, o IPC caiu para 0%.

O que fez a Argentina naquele momento para combater a hiperinflação? Essa mesma solução teria bons resultados hoje?

·         A Lei da Convertibilidade

No início da década de 1990, a espiral inflacionária que atingia a Argentina parecia incontrolável.

Para enfrentar a crise financeira, o então ministro da Economia de Menem, Domingo Cavallo, realizou profundas mudanças na organização econômica do país, incluindo a famosa Lei da Convertibilidade.

A medida começou a valer em abril de 1991, depois de ser aprovada pelo Parlamento argentino. Ela estabeleceu a paridade fixa entre o peso argentino e o dólar norte-americano. Ou seja, um peso passou a valer um dólar.

Os argentinos chamaram popularmente esse período de "uno a uno" (um por um).

Para possibilitar a medida, o Banco Central da Argentina tornou-se virtualmente um "comitê monetário". Sua função era de garantir cada peso em circulação com um dólar americano.

Com isso, a Argentina conseguiu, em pouco tempo, reduzir drasticamente a inflação e estabilizar a economia. O que se seguiu foi um longo período de estabilidade dos preços.

"[A convertibilidade] colaborou para que o país estabilizasse seu déficit — embora não totalmente —, recebesse investimentos e aumentasse sua produtividade", explica o economista e acadêmico argentino Eduardo Levy-Yeyati à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Levy acrescenta que essa política econômica foi diretamente beneficiada pelo plano Brady, que reestruturou a dívida contraída pelos países em desenvolvimento — incluindo Argentina, Brasil, Equador, México e Venezuela — junto aos bancos comerciais norte-americanos.

E ela também foi beneficiada por outras reformas lideradas pelo ministro Cavallo, como a abertura comercial e a privatização de empresas públicas, e pelo ciclo global do dólar.

É preciso relembrar que, nessa época (início dos anos 1990), muitos países da América Latina estavam criando programas de estabilização da economia depois da crise da dívida dos anos 1980, considerada um dos "episódios econômicos mais traumáticos" para a região. A crise trouxe fortes consequências sociais, incluindo um aumento considerável da pobreza.

Não foi por acaso que aquela época foi chamada de "a década perdida".

Mas, segundo a economista e diretora da consultoria Eco Go, Marina Dal Poggetto, a Argentina foi o único país latino-americano a sobreviver àquele caos utilizando o dólar como "âncora rígida", com a paridade cambial.

Esta, para ela, é uma das principais razões pelas quais a convertibilidade acabou sendo um fracasso, provocando um dos maiores colapsos econômicos, políticos e sociais da história da Argentina.

·         Mas por que fracassou?

"Passamos de uma economia fechada, altamente inflacionada e muito protegida, para uma economia aberta e com inflação muito baixa, mas que começou a ter problemas a partir de 1996”, explica Dal Poggetto.

O que aconteceu então com o modelo de convertibilidade que parecia tão bem sucedido, mas que começou, pouco a pouco, a mostrar suas primeiras fissuras? As razões do colapso são várias, mas os economistas concordam que os "choques externos" tiveram papel fundamental — entre eles, o vigor do dólar.

"O vigor do dólar, gerado pelo aumento da taxa de juros nos Estados Unidos, acabou provocando uma crise em países emergentes, como a Argentina", destaca Dal Poggetto.

Ao mesmo tempo, a crise asiática, que se estendeu rapidamente para outras regiões do mundo, e a forte desvalorização do rublo (a moeda nacional da Rússia), também trouxeram fortes impactos ao sistema econômico do país sul-americano.

Mas o golpe mais importante veio do Brasil, em 1999. Depois de uma forte crise marcada pela fuga de capitais e pela queda da atividade econômica, o país decidiu desvalorizar o real em relação ao dólar.

A Argentina então viu suas exportações para o Brasil caírem, o que prejudicou profundamente diversos setores, como o de automóveis, tecidos, laticínios e calçados.

"A desvalorização do real em 1999 foi a pá de cal da convertibilidade", segundo Dal Poggetto. "A Argentina deveria ter também desvalorizado sua moeda naquele mesmo ano, como fez o Brasil, mas não conseguiu devido ao regime rígido que estava em vigor."

Nos dois anos seguintes, a crise financeira da Argentina foi se aprofundando cada vez mais. Os argentinos precisaram enfrentar uma forte recessão, com aumento recorde do desemprego. Três em cada 10 trabalhadores argentinos ficaram desempregados.

·         O 'corralito'

Em 2001, a demanda por dólares havia superado enormemente a capacidade da Argentina de gerar divisas.

Com a economia paralisada e sua moeda local, o peso, caro e pouco competitivo, a Argentina dependia cada vez mais do financiamento externo. O país chegou a ter 97% da sua dívida externa em dólares.

Preocupados com a situação econômica asfixiante, muitos argentinos começaram a desconfiar da solidez do sistema e passaram a enviar seus dólares para contas no exterior, especialmente para o vizinho Uruguai.

Com as reservas do Banco Central em queda, o governo do presidente Fernando de la Rúa pediu ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI), negociando a reestruturação da sua dívida. Mas a crescente fuga de capitais e o descontrole econômico fizeram com que o FMI decidisse suspender seus desembolsos poucos meses depois, provocando uma corrida ainda maior aos bancos argentinos.

Neste contexto, De la Rúa assinou, em 3 de dezembro de 2001, o decreto 1570. Ele foi idealizado pelo "pai da convertibilidade", Domingo Cavallo, para tentar estancar a sangria de dólares sofrida pelo país.

Rapidamente apelidada de "corralito", a medida impôs restrições à retirada de depósitos bancários, asfixiando ainda mais a população, paralisando o comércio e deixando a enorme economia informal do país sem condições de sobreviver.

A história que se seguiu é bem conhecida. Ocorreram saques e protestos da sociedade, que terminaram provocando a renúncia (e a fuga de helicóptero) do presidente De la Rúa. Estava aberta uma crise política e institucional sem precedentes no país.

Frente a essa complexa situação, no início de 2002, a paridade entre o dólar e o peso foi extinta, bem como a "pesificação" dos depósitos em dólares. A medida causou uma forte desvalorização da moeda local, que fez com que a pobreza disparasse, chegando a atingir dois em cada três argentinos.

O país também deixou de pagar sua dívida externa, declarando a maior moratória da história na época: US$ 144 bilhões (cerca de R$ 733 bilhões).

·         Seria possível um modelo similar nos dias de hoje?

O fim abrupto do modelo da convertibilidade faz com que seja difícil pensar nele como uma solução viável para a atual crise inflacionária que enfrenta a Argentina. Mas algumas pessoas trouxeram de volta essa discussão.

Uma dessas pessoas é o economista Javier Milei, deputado da direita libertária que aspira à presidência do país.

Milei afirmou que a paridade cambial foi um dos processos mais bem sucedidos para controlar as variáveis macroeconômicas e, por isso, seria fundamental desenvolver um modelo similar para alterar o rumo atual da economia argentina.

"A convertibilidade foi introduzida em 1º de abril de 1991 e, em janeiro de 1993, éramos o país com a menor inflação do mundo", afirma Milei. "Proponho a livre concorrência entre as moedas e a reforma do sistema financeiro. Assim, o mais provável é que os argentinos escolham o dólar e, aí, você dolariza [a economia]."

Mas os economistas consultados pela BBC News Mundo consideram que esta opção é pouco viável.

"O regime cambial não resolve o problema", segundo Marina Dal Poggetto. "Se você não tiver a correção das contas fiscais e o ordenamento dos preços relativos, não irá impedir a inflação. Então, você precisa de um programa de estabilização."

"Qual é o regime monetário cambial ideal? Para mim, não é uma espécie de câmbio fixo, não é o comitê monetário. A convertibilidade acabou mal porque o choque durou tanto tempo que não sobreviveu", afirma Dal Poggetto.

Já para Eduardo Levy-Yeyati, em termos práticos, uma nova lei de convertibilidade "só seria possível se fossem acumuladas reservas internacionais com antecedência".

"Se houver uma corrida, como a que vemos hoje com o Credit Suisse, não haveria forma de impedi-la, a não ser que o governo ou os bancos mantivessem reservas líquidas. Nos anos 90, tanto o Banco Central da Argentina quanto os bancos comerciais mantinham fundos de liquidez em dólares", explica Levy.

Em termos econômicos, Levy-Yeyati afirma que "a convertibilidade comprovou que serve para estabilizar, mas não substitui a necessidade de equilíbrio fiscal e de políticas de desenvolvimento".

"Pensar nela hoje como um atalho para a estabilidade me parece ingênuo", conclui o economista.

 

Ø  Nova parceria do governo Lula com a China pode estressar relações com EUA

 

Na lógica geopolítica do chamado “Sul global”, as relações com presidente Xi Jinping são as mais importantes para a diplomacia brasileira, porém, qualquer aproximação que possa ser interpretada como uma aliança principal podem estremecer as relações do Brasil com os Estados Unidos, cujo apoio foi decisivo para respaldar a eleição de Lula, garantir sua posse e frustrar a tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro. O adiamento é uma oportunidade de refletir sobre seus objetivos.

O Brasil está entre dois polos de atração da geopolítica global. A China hoje é o nosso principal parceiro comercial, para o qual exportamos algo em torno de US$ 88 bilhões, enquanto importamos US$ 47 bilhões, com um superávit da balança comercial de US$ 41 bilhões. Em contrapartida, importamos US$ 39 bilhões dos Estados Unidos, para os quais exportamos US$ 31 bilhões, um déficit comercial de US$ 8 bilhões.

Ocorre que o valor agregado de nossas exportações para a China é muito baixo, enquanto os produtos chineses estão matando a indústria nacional, que perdeu também seu mercado para os chineses na América do Sul.

É preciso levar em conta o contexto em que isso ocorre. O eixo do comércio mundial se deslocou do Atlântico para o Pacífico. Nossa infraestrutura foi montada originalmente em conexão com a Europa e os Estados Unidos; agora, está sendo lentamente convertida para se integrar ao Pacífico, mas a barreira dos Andes encarece os custos logísticos.

Até 2007, o Brasil acompanhou o boom da demanda mundial, na esteira da desvalorização cambial. A partir da crise de 2008, a indústria brasileira sucumbiu à concorrência internacional, aos aumentos de custo de produção em reais (principalmente salários) e à forte apreciação do câmbio nominal e real.

A expansão do PIB observada no pós-2008 foi toda baseada em serviços não sofisticados e na construção civil (quadro típico de “doença holandesa”). A demanda por bens industriais foi totalmente suprida por importações.

Houve enorme perda de complexidade produtiva. A produtividade da economia caiu e continuará caindo, até que as manufaturas domésticas se recuperem. A desvalorização cambial de 2015 não produziu a reconstrução do setor de bens com maior valor agregado.

A tentativa de adensar as cadeias produtivas, verticalizando-as em vez de integrá-las de forma complementar às cadeias globais de valor, provocou a perda de produtividade e competitividade da nossa indústria.

Nos últimos 20 anos, os produtos minerais e agropecuários ultrapassaram em três vezes o valor das exportações de bens de baixa, média e alta complexidades. A principal causa é o comércio com a China, que triplicou o valor de nossas exportações, mas confinou o Brasil à vocação natural de exportador de minérios e produtos agrícolas na nova divisão internacional do trabalho.

A expansão do comércio com a China é global. Seu principal parceiro comercial são os Estados Unidos, que exportaram tecnologia e empregos para a potência asiática, da qual passaram a importar toda sorte de produtos, desde os mais primários aos eletrônicos de última geração e redes sociais.

A perda contínua de mercado para os chineses, inclusive no seu próprio mercado interno, provocou a reação política e militar dos Estados Unidos contra a expansão da influência chinesa no mundo.

Esse cenário havia sido previsto por Henry Kissinger, o negociador do restabelecimento das relações entre os dois países durante o governo Nixon, no seu livro “Sobre a China” (Objetiva), cujo final é muito perturbador.

O ex-secretário de Estado norte-americano assinala que o século passado foi pautado por uma disputa pelo controle do comércio no Atlântico entre uma potência continental, a Alemanha, e uma potência marítima, a Inglaterra, que provocou duas guerras mundiais. Segundo ele, com a mudança de eixo do comércio para o Pacífico, essa disputa está se repetindo, neste século, entre os Estados Unidos, uma grande potência marítima, e a China, a potência continental emergente. Como isso se resolverá?

 

Fonte: BBC News Mundo/Correio Braziliense

 

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